Um encontro com a deficiência social

Escultura em bronze de Kaspar Hauser na cidade de Ansbach, Alemanha.

Fui assaltado por um menino de 4 anos que ainda não sabe falar, mas já sabe assaltar. Não é por isso, contudo, que desfiarei um corolário de rabugices do tipo “a que ponto chegamos”, “o que mais falta acontecer?” ou o clássico “em que mundo estamos?”. Não farei isso porque esse é o tipo de constatação que só faz chover no molhado e não traz luz alguma a qualquer tentativa de compreensão dos fatos ou de análise, mas que comporta num desolamento passivo que acompanha desde sempre a miséria e que, entretanto, não chega a lhe desvelar nem alivia – sequer parcialmente – as suas chagas. Além do quê, isso diz muito pouco sobre o fato de que fui assaltado por um menino deficiente de 4 anos de idade, que ainda não sabe falar.

É possível esperar que esse mesmo menino venha a expressar-se através das palavras e perceber seus siginificados se precisou aprender a assaltar antes de aprender a pedir? Se recebeu ao invés da compreensão que deve existir no substrato de qualquer família a violência gerada pela necessidade extrema? Se talvez experimente a sensação de matar antes mesmo de entender a razão de estar vivo e pertencer a este mundo? Por si só, isso pode parecer ser terrível o bastante mas, mesmo esse terror, por petrificante que seja, obscurece o fato de que talvez, para esta criança, o tanto de habilidades comunicativas de que ela dispõe neste momento seja o suficiente para a complexidade da vida que pode ainda lhe restar a viver.

Mesmo sem figurar nas classificações da CID ou CIF, a deficiência social é um fenômeno cujo terreno fértil é a miséria e a falta de perspectiva, que geralmente lhe serve de adubo, principalmente em se tratando de países de extrema pobreza e desigualdade social, como o Brasil, e atinge discriminadamente os mais pobres entre os pobres, vitimizando-os duplamente: uma vez pela sua própria precariedade e a outra pela precariedade do mundo que a comporta e faz subsistir.

A face de crianças como esta que tentou me assaltar está invariavelmente nas fotos das campanhas humanitárias, nos vídeos que levam milhões de pessoas às lágrimas perto das festas de fim-de-ano mas que, no restante do tempo, não encontram com facilidade dois olhos que as olhem de frente e com mais dificuldade ainda uma sociedade que reconheça sua existência, aceite-as deficientes como são e, junto a elas, procurem imaginar uma outra vida possível. Essas crianças talvez tenham a sorte de um Kaspar Hauser que, como na figura do Professor Daumer, as recupere do ruído vertiginoso de suas emoções e da incomunicabilidade que as isola do mundo e, principalmente, de sua atenção e ação política.

Menino de rua recebendo “atenção” social no centro de São Paulo.

Tenho um filho de 2 anos de idade que nasceu com a síndrome de Down. Trata-se de uma intercorrência genética que traz consigo uma série de implicações, entre elas a condição de uma deficiência intelectual de natureza cientificamente ainda imprecisa mas, ao que tudo indica, seja muito determinada pelo conteúdo social oferecido à criança – da mesma forma que para todas as outras crianças. Meu filho de 2 anos de idade consegue, sem sombra de dúvida, expressar-se por palavras melhor que o meu pequeno assaltante de 4 anos, ainda que de forma rudimentar. Umas das razões para isso é que desde seu nascimento, além de procurarmos oferecer-lhe palavras, carinho e atenção, também lhe dedicamos um tipo de cuidado que é comumente denominado por “intervenção precoce” ou “estimulação precoce”. São terapias destinadas a potencializar capacidades comportamentais (incluem-se aí diversos tipos de especialidades terapêuticas) e cognitivas, numa explicação bastante simples. Também ele deve começar sua vida pré-escolar neste ano.

Muitas vezes sinto que há na sociedade a idéia de que um tipo de “intervenção precoce social” poderia dar conta do futuro de gerações que estão sendo destroçadas nas ruas, aos olhos de todos. Mas é importante lembrar que, em um ou em outro caso, é fundamental levar em conta uma lição de velhos marujos que ensinam a antever onde atracar o navio antes mesmo da partida. Por isso, uma intervenção precoce destinada a uma criança com deficiência ou a uma população de deficientes sociais, pensada nos termos de políticas públicas, deve sempre levar em conta que não deve ser tomada por resultados particulares e imediatos, mas por permanentes e efetivamente abrangentes.

É perturbante a idéia de que o mundo possa comportar a inclusão de pessoas com deficiência somática e, mais ainda, com deficiência social, de uma forma que sua problemática não esteja focada em si mesma, como “algo” a ser consertado. Essas pessoas não estão estragadas que mereçam conserto. Sua inclusão não deve ser uma inclusão particular, fantástica, com direito a capa de revista e foto no jornal, mas antes de tudo uma inclusão plena de todos os direitos que todos os cidadãos merecem ter, com respeito primeiramente aos valores fundamentais da pessoa humana. A sociedade não pode estar contente com propostas de inclusão social particulares, ad hoc, que não avancem a soleira da própria porta no âmbito familiar, educacional ou social em seu sentido mais amplo. A autonomia e a liberdade que pretendo para o meu filho, parafraseando Sartre, não pode ser uma condenação para os demais.

Àqueles que gostariam de saber o que aconteceu com o meu pequeno assaltante só resta dizer o que diz Kaspar Hauser, pelo menos pela mão de Werner Herzog: “Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?”

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