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http://saci.org.br/index.php?modulo=akemi¶metro=25596
Um exercício bem infantil de julgamento, acho que minha mãe ou algum de meus irmãos me ensinou há muito tempo atrás, é o tipo da coisa que dá um nó na garganta e nos faz voltar atrás de uma decisão. O exercício é simples e todo mundo já fez alguma vez na vida (embora eu acredite que uma vez seja pouco demais): consiste em tentar colocar-se no lugar do outro. O outro, o outro ser humano, qualquer um. Não se trata do próximo, a quem devemos estender nossa compreensão e legar nossa culpa. Estou falando do outro. O outro que somos nós mesmos pela visão do outro.
Na vida há outros e outros. Uns e outros. Nós e os outros. Tirando nossa família e pessoas muito queridas, tudo o que acontece com os outros é como se acontecesse com alguém que mora no outro extremo do diâmetro terrestre. É alguém que nos interessa por curiosidade, talvez, e só. Não nos atinge, mas no fundo, no fundo, nos aflige porque, querendo ou não, somos uma família apenas sobre o globo, embora nossa cor seja diferente, nossas contas a pagar, nossos deveres e, sendo realistas, inclusive nossos direitos. Se comemos bem ou passamos fome. Se estudamos ou mendigamos. Se compreendemos o mundo ou recusa-mô-lo. Se estamos livres ou presos.
Talvez por influência da propaganda excessiva que consumimos, substituímos essa capacidade de colocarmo-nos no lugar do outro pela fantasia de estarmos na pele de sujeitos indefectíveis. Assim, nos sentimos melhor imaginando-nos dirigindo um carro conversível do que esmolando no sinal. Sentimos que podemos ser felizes se fantasiarmos a vida sinestésica de alguém que sublima por completo nossa condição humana num spot televisivo, num clipe, numa imagem lírica, numa fotografia de um lugar em que ninguém nunca esteve. Por isso, não perderemos o sono se imaginamos estar na cama com a Madonna, como sugere fantasiar o espetáculo que a cantora produziu e vendeu mundo afora nos últimos anos. Mas iremos perdê-lo se imaginarmos estar na jaula com o Zaqueu.

O Zaqueu é um jovem de 25 anos que tem vivido numa jaula. A jaula foi improvisada nos fundos da casa pela sua família. O Zaqueu tem algum tipo de deficiência intelectual e a sua família é bastante pobre. Segundo a cobertura jornalística, o Zaqueu tem um comportamento violento. E isso “por culpa” da sua deficiência. Talvez, para o Zaqueu, seja difícil compreender a vida entre quatro paredes, sem janelas. Mas aqui já estou eu me colocando na pele do Zaqueu. Esqueci que deveria estar imaginando-me na cama com a Madonna ou numa estrada com penhascos dirigindo um carro conversível. Ao contrário disso, estou na jaula com o Zaqueu. Por que insisto em meter-me em frias? É que o Zaqueu precisa ser avisado que todos somos uma família e estamos presos com ele naquela jaula, dentro ou fora dela.
* Leia esta notícia para conhecer um pouco da história do Zaqueu: http://www.cosmo.com.br/noticia/28915/2009-05-21/rapaz-com-deficiencia-mental-volta-para-casa.html
Ou aqui, se o link estiver off-line
** Coincidentemente, no Novo Testamento, Zaqueu hospedou Jesus em seu lar. http://pt.wikipedia.org/wiki/Zaqueu_de_Jerusalém
Pois é, Lucio. Mas se ao Zaqueu não foi permitido nem saber sobre sua própria família consanguínea, o que dirá sobre a família humana global… Muito triste!
Relendo meu comentário anterior, achei que ficou confuso e dá margem para interpretações erradas. Eu quiz dizer que a família biológica do Zaqueu não age como tal, não o acolhe como uma família. Por isso, ele não está podendo experimentar uma vida familiar (o que, provavelmente, é a causa-primeira de sua violência). Sendo assim, fica muito difícil pra ele compreender a humanização das relações que, pelo menos idealmente, deveria existir entre todos.
Será que agora deu?
Abraços ainda tristes!
Oi Katia
Não queria exatamente causar tristeza, no máximo dividir minha perplexidade.. É que qualquer coisa parece futilidade diante de uma condição de vida dessas.. É essa futilidade contemporânea que eu pretendia atacar, não a família do Zaqueu..
Abs
Lucio
Prezado Lúcio,
Excelente, o seu texto sobre o caso do Zaqueu.
E venho divulgando bastante, para reflexão das pessoas (com os devidos créditos, é claro).
Olhe, penso em publicar o texto em nosso Boletim Alagoas Inclusiva, que é um veículo de comunicação em inclusão que mantemos em Alagoas, como forma de nos manter atualizados, aqui nesse pequeno e pobre estado.
Gostaria de seu nome e um pequeno currículo (três ou quatro referências, se possível). Pode ser?
No aguardo, com a maior brevidade possível, que o boletim será colocado no ar no comecinho da semana. Um abraço.
Rita, de Maceió.
Lucio, o Zaqueu nao esta mais sozinho. Nao deixaremos que ele seja esquecido.
Ja havia visto o video de um caso muito parecido que aconteceu numa cidade satelite de Brasilia ha alguns anos.
E como estes outros tantos…
Espero que mais denuncias como a que revelou sua historia acontecam para podermos todos dormir com a consciencia mais tranquila.
Esse rapaz, o Zaqueu, aparentemente é autista não-diagnosticado. A sua expressão, na foto, seu histórico de agressividade indicam isso. Autistas têm dificuldade de conversar e, assim, acabam vivendo muto irritados – já pensou ter uma dor qualquer e não poder pedir ajuda, por exemplo? Você fica revoltado! Essa família precisava de apoio social para acolher seu filho.