Do pink ao punk: o buraco negro da pré-adolescência

camisetas

“For what is a brat, what has he got
When he wears hats and he cannot
Say the things he truly feels
But only the words, of one who kneels (…)”

Sid Vicious, My way

Há pelo menos uns vinte anos venho recebendo a notícia sistemática de que a infância está encolhendo e a adolescência alargando-se, naquilo que parece ser um movimento inexorável e inevitável. No começo, as manchetes diziam que a infância terminava aos doze anos de idade, mais ou menos. Depois aos dez e, mais recentemente, simplesmente quando a própria criança assim decidisse, num momento impreciso entre os seis e os dez, tendo em vista que os mais especializados especialistas do ramo parecem ter desistido de arriscar na quantia, tal é a imprecisão do gênero humano, esta sim inacabável.

Devo esclarecer que não comecei a escrever pensando em responder qualquer coisa ou anunciar que encontrei finalmente o momento crucial da cisão do mundo infantil rumo ao adulto. Esse parece um elo perdido ainda mais remoto do que aquele que nos separaria dos primatas. Na verdade quero falar do que não encontrei. E também um pouco a respeito desse buraco negro onde estão essas pessoas que chamam de “pré-adolescentes”.

Seria uma tolice incomensurável chamar referências a um Stephen Hawking para explicar o que são buracos negros. Já usei muitas mídias nessa tentativa e muito rapidamente cheguei a conclusão de que estou naquele vasto percentual que só sabe dos buracos negros o nome “buraco negro”, coisa que pode enganar a alguns desavisados, mas nem por isso por um tempo muito longo. A ignorância, ao contrário da sabedoria, revela-se na velocidade da luz, seja lá o que for isto também… Confesso que a física, mesmo a pré-newtoniana, é um trauma da minha própria pré-adolescência, se é que um dia ela existiu. Mas não é daí que vem minha empatia com os teenagers. É que de incompreensibilidade eu sou mesmo bom e, por isso, reconheço que tenho muito de teenager em mim mesmo, ainda que não fisicamente e, veja bem, isso está longe de ser uma lamúria.

Porque o destino quis assim, minha casa e minha vida (isso não é nenhum trocadilho com o programa habitacional do governo) estão prestes a ser ocupadas por um exemplar dessa faixa etária. Mas já aviso, como medida de prudência, que pretendo deixar o tal buraco negro do lado de fora, que lá ele já é imenso o bastante. Isso não evitará de que minha filha e ele se encontrem muitas vezes. E porque sei que preciso conhecê-lo bem, vou a ele também. E mais inadvertidamente do que desejaria.

Minha primeira experiência com o buraco negro aconteceu há poucos dias. Estava matando tempo em um shopping center e senti vontade de presentear minha filha. Uma roupa, pensei. Um bom pai, nestes tempos, requer desenvoltura nisso. Escolher uma roupa para presentear uma filha deveria ser uma tarefa fácil. No shopping há várias lojas de todos os tipos, como se sabe. Desde as boutiques de grife até as lojas de departamentos. Como prefiro a autonomia ao auxílio caudaloso das lojas femininas, fui passando as vitrines, espichando o olho e pensando no que ficaria melhor na sua silhueta de menina ou moça, que isso é quase como uma variação lunar, eu diria. Então me dirigi a uma loja de departamentos, com a desenvoltura de quem sabe que não terá seus sentidos invadidos por amostras infinitas e peças economicamente desproporcionais à realidade. Então, não mais que de repente, eu o vi.

Ali, entre o corredor tomado de vestidos e roupas pink e o próximo corredor, tomado de motivos punk e roupas pretas, o buraco negro. Nem digo que parecesse ameaçador, mas tenho certeza que ele ficou incrédulo de que eu o flagrasse. Anda mais dentro de uma loja de departamentos, ainda mais dentro de um shopping center, e assim por diante. Mesmo assim, não se abalou e, caso eu fingisse que não o estivesse vendo, ele se estenderia implacavelmente sob meus pés, impondo o corredor punk diante aos meus olhos, com suas caveiras, feras e simbologias que, como um tornado, arrancariam minha menina do mundo cor de rosa da Barbie e, de um golpe só, a jogaria aos pés de um Sid Vicious, por exemplo. Sim, nesse momento tremi, mas não por causa do Sid Vicious, e sim, pela extensão da travessia que aquela loja de departamentos, uma das mais conhecidas do Brasil, reduziu a menos de um metro, como se essa fosse a distância que uma criança deve atravessar até chegar a adolescência. Da Barbie ao Sid Vicious. Do pink ao punk, sem paradas e nem tempo para um refresco sequer.

Falar em excluídos e invisíveis hoje não é mais um privilégio da sociologia, como se sabe. Os pré-adolescentes, contudo, estão longe de ser uma minoria obscura ou obscurecida. E não é só o buraco negro que os observa. O mercado também o faz. Políticos rejuvenescidos pelo marketing também. Artistas de toda a ordem que querem lhe devorar os trocados, sem falar nos inventores de tralhas digitais, que acreditam mesmo serem seus sócios inatos e cobram míseros dólares de milhões de pessoas para extrair seus lucros que proliferam como vírus, só que neste caso legais. Muito legais. Very cool, na realidade. E lá, no finzinho da fila, os pobres pais também observam, ainda atônitos por ter de entregar ao mundo como ele parece ser os seus babies. Pior para os que, como eu, sabem que não há alternativas nem esperanças de que as identidades por que se pode comprar nas lojas dos shoppings acolham com a mesma força do braço parental. Definitivamente, a pré-adolescência é fase da desproteção. De filhos e pais.

Mas, sem chorumelas, por favor. A vida é assim mesmo e já foi muito pior, caso você precise de algum consolo. Houve época, por exemplo, em que nem existia adolescência. Simplesmente se encaixotavam as crianças e as enviavam aos internatos e, daí, a qualquer vida possível. Isso para quem podia pagar por internatos, obviamente. Os demais rumavam direto ao trabalho mesmo, este verbete que é execrado pelos defensores do direito à infância e ao brincar. É por isso que muito comumente, quando olhamos retratos antigos de crianças, parecem que são miniadultos. Hoje ainda parecem, em alguns casos, na verdade, mas somente porque os adultos os mimetizam como se com isso pudessem encontrar um tipo mágico de fonte do rejuvenescimento. E, porque esses são tempos líquidos, como gostava muito de afirmar o polonês Zygmunt Baumann, há adultos que parecem crianças e vice-versa. Tudo depende do desejo que há em cada um. Seguro é apenas o fato de que ninguém quer estar no buraco negro da invisibilidade, mesmo que o preço a pagar seja adotar uma identidade caricatural ou não adotar nenhuma, adquirindo todas.

O vestuário não é, evidentemente, o único meio pelo qual um pré-adolescente fixa uma identidade para si. A identidade pré-adolescente parece ser na maioria das vezes volátil, inclusive. Isso depende muito do que lhe está disponível, tanto em matéria de roupas nas lojas quanto a bens culturais em vigor nas mídias e redes de trocas simbólicas. Há poucos dias, minha única opção de vestuário para uma menina pré-adolescente era o motivo punk. Ninguém me garante, entretanto, que amanhã não seja outra aparência. Uma roupagem futurista, de repente. Ou gótica, sei lá. E isso acontece na música também.

A maior ilusão que os pais de crianças criam para si mesmos é que poderão determinar ou pelo menos orientar o gosto musical dos filhos, assim como as suas demais opções estéticas. Porque a música traz em si elementos muito intensos de identidade, quer pelas letras ou pelos ritmos e estilos, muitos pais creem que podem livrar os filhos de preferir o que a eles soam como abominações detestáveis. Não é viável essa ideia e forçá-la é muitas vezes apenas o exercício de poder travestido de boas intenções. Se uma pessoa é mesmo um pré-adolescente, eu sinto informar, mas ela tem como um radar anti-lobos-travestidos. Isso não impede de que ela seja eventualmente conquistada por sonoridades e significantes anteriores à sua época histórica. É uma boa oportunidade de diálogo real, essa. Mas, se virar rapidamente uma lição de bom gosto, pode esquecer. O Sid Vicious, por mais temível que pareça, é mais sedutor que o seu melhor e mais comovente discurso. Então é preciso cautela para que você não seja o responsável por jogar seu filho dentro do tal buraco negro, porque a mão que faz isso nunca é a mesma que o tira de lá. E isso não é lei da física newtoniana. É batata.

Lá no comecinho eu avisei que esse texto não era bom de soluções, mas recheado de problemas obscuros como a física quântica e a temível pré-adolescência. Ah, vestir-se de punk também não irá ajudar muito, cumpre frisar. Sendo o caso, o melhor mesmo é apostar em certo auto-estranhamento e confiar (ô palavrinha difícil) que é assim mesmo que alguém, mesmo um pré-adolescente, pode tirar a cabeça de dentro do buraco e nascer para a vida mundana, com os pais ou fantoches que lhe estiverem a mão. Esse vestuário, no caso, cabe apenas aos pais decidir.

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