Tenho lido em diversas publicações culturais dicas e conselhos de maior e menor relevância para novos autores de ficção. Normalmente, são provenientes da benemerência de escritores consagrados, publicados, premiados, reeditados e até mesmo multitraduzidos. Em sua maioria, são conselhos autoconsiderados e reputados como “indispensáveis”. Penso que boa parte deles pode-se seguir tranquilamente, mas, se isso resultará em algo produtivo, eu reservo-me ao direito de duvidar e digo porque sou daquelas pessoas que costuma manter-se em dúvida até mesmo quando não tem mais certeza se deve fazê-lo, ou seja, não tenho problemas de acumular dúvidas. Talvez melhor mesmo fosse simplesmente robotizar-me em busca das soluções alheias, mas duvido que eu consiga. Olha a dúvida aí de novo!
Diante disto, resolvi eu mesmo aconselhar-me a este respeito, correndo o risco de que possa parecer apenas um laivo de magnânima soberba, mas, na verdade, trata-se de uma alternativa forjada duramente… Tendo-se em vista que, como se sabe, conselho é de graça e diz a voz do povo que, por isso mesmo, se fosse bom seria é vendido. Com os meus não poderia ser diferente. São de graça e bastante duvidosos, como se verá a seguir.
Bem, ao invés de entrar em embate com as ideias alheias, parto direto às minhas próprias. Já que elas têm me servido para manter-me vivo, a chance de que elas tenham alguma utilidade deve ser grande. Então, por itens, vamos ao que segue:
1) personagens;
vai gastar seu tempo precioso pensando na personalidade humana? Bobagem. Simplesmente vá escrevendo. Sendo um gênio da literatura, as melhores decisões se abrirão como o Mar Vermelho abriu-se para Moisés. Recomendo, inclusive, que procure não se ater muito aos detalhes psicológicos dos personagens. Se ele começou esfuziante e entusiasmado com a geopolítica mundial, por exemplo, transformá-lo em um cético ou em um ativista xenófobo não é um problema de monta, talvez nem de coerência. Despreocupe-se! Pior seria se ele tivesse mudado de gênero no decorrer da história, e não estou pensando em identidade de gênero nem em procedimentos médicos, o que seria diga-se passagem perfeitamente compreensível, mas esquecimento mesmo. Como se você tivesse começado com “Maria” e na página 114 transformado-a sem maiores explicações em “Mario”. Veja bem que, mesmo nestes casos, pode-se tentar consertar a problemática. Dependendo do público a que se destina, é possível que boa parte nem perceba essa transformação. Então, considere simplesmente deixar quieto. Às vezes funciona.
Ainda sobre personagens eu aconselharia (tenho feito isso a mim mesmo) a não perder tempo com muitos personagens. Um só pode ser o suficiente, porque ninguém mais se importa com o egocentrismo, que é um atributo desejável até, em certa medida. Aliás, pode ser uma fonte de identificação das melhores. Se o livro for ilustrado ou você está pensando em um e-book, por exemplo, cogite ilustrá-lo com selfies. Jornadas pessoais sempre interessam, principalmente se marcadas pela glória da superação dos limites. Personagens derrotistas nem pensar, nem derrotados pelo “sistema”. Já tivemos muito disso no mundo com os beatniks. Uma época superada por essa nova, hi-tech e triunfante. Por outro lado, caso tenha-se em vista um público mais intelectualizado, uma certa depressão pode ser bem vinda, assim como um clima noturno, noir. Pode até exagerar, sem problemas (há quem creia que, quanto mais noir, maior a chance de virar cult). Se não quiser mover o personagem nem do quarto de dormir, ok. Mas lembre-se, viagens cheias de fotos são sempre mais propensas ao sucesso, especialmente se algum aprendizado supremo advir da trajetória.
Gente muito simples, corriqueira, não se esqueça disso, vende mal e não conquista prêmios. Então, entre um padeiro e um senador, você já sabe qual deve escolher.
Acho que dá para o começo sobre personagens. Vamos diretamente, então, ao ponto de vista;
2) ponto de vista;
o ponto de vista é uma questão, como se sabe, de livre escolha. Tanto faz! Se você acreditar que o ponto de vista de um gato ou de uma mesa é o suficiente para começar, mãos à obra! Múltiplos pontos de vista também são usuais. É possível também alternar a voz narrativa e o tempo narrativo. Utilizar as técnicas concomitantemente pode render um longo trabalho mental. É recomendável, portanto, decidir por isso e verificar as condições mentais previamente. Gerar alguma confusão no leitor também é garantia de que ele gaste mais tempo tentando entender o texto do que o contexto. Tratando-se do ponto de vista de uma mesa, pode ser uma solução interessante. É impactante, mas lembre-se sempre você mesmo do que estava pensando ao decidir. Ou não. Talvez jogar-se ao dadaísmo narrativo seja uma tendência literária emergente e, glória das glórias, você pode ser o precursor que estava faltando (talvez depois disso continue faltando). A História da Literatura pode estar aguardando-o. Coragem!
Vamos ao enredo. O ponto mais fulcral entre os cruciais: aquele que selará o destino do interesse da humanidade pela sua obra:
3) enredo;
pensar-se em enredos complexos tem seu risco, mas é uma aposta interessante. Enredos mais simples também têm um bom apelo e mercado considerável (enredo nenhum, como atestam os livros de colorir, então nem se fale). Também convém pensar no ineditismo, afinal não convém que duvidem da sua capacidade imaginativa ou o confundam com um outro qualquer. Ou, ainda, o pior dos horrores, que soe ou se confirme como um plágio. O plágio nada mais é que o opróbrio literário, mesmo que seja extensamente difundido e copiado. Algum aspecto vil da personalidade humana, talvez até mesmo um traço de psicopatia, pode render bons enredos. Personagens e situações boazinhas estão um tanto quanto out, mas jogo é jogo, já dizia o jogador. Na Bíblia, por exemplo, há diversas passagens disponíveis para releitura e aproveitamento. Só cuide de mudar a localização geográfica, anote isso! Passagens históricas e mitos diversos são fontes inesgotáveis de inspiração, mas jamais esqueça que as soluções requerem desfechos improváveis, surpreendentes. Se isso desviá-lo do argumento um pouquinho, o sacrifício compensa… Prefira sempre que possível uma ambientação sombria a uma outra solar, para evitar-se de parecer folhetinesco. Um equilíbrio entre densidade e leveza é fundamental. Está sem ideias? Tente lembrar-se das aulas de química inorgânica, pois a literatura é assim também: uma gota a mais de qualquer coisa e bum!! Foi-se o trabalho de uma vida…
Para prevenir situações horripilantes tais como essa, é bom pensar igualmente nos aspectos sociais da atividade, com o que penso em encerrar meu aconselhamento:
4) aspectos sociais e mercadológicos;
talvez já seja tarde demais para pensar nessas coisas e você esteja naquela situação de ter um volume pronto e um mundo para conquistar. Indispensável é pensar-se em um bom título. Já ouvi falar de livros que foram salvos pelos títulos… Antes de mais nada, talvez fosse interessante pensar que um livro sem leitores não tem o menor fundamento. Se você não pensa em contratar um serviço de marketing nem frequentar rodas literárias nem conhece pessoas influentes nem é professor de alguma faculdade nem tem a mínima ideia de por onde começar, não desanime! Como você acha que Cervantes começou? Ou Balzac? Ou Tolstoi? Assim mesmo: na coragem! Então, adelante! Procure pensar que nos tempos deles nem internet havia e eles conseguiram! .
Bem, chegado até aqui talvez seja o momento de admitir que não penso tão seriamente em seguir o que preconizo. Já muito me disseram e aconselharam e ainda hoje estou nessa confusão, mas certo de que jamais pensei em sacrificar a liberdade, coisa que, sem a qual, um livro não é um livro, mas um objeto. E objetos, convenhamos, não deveriam estar em livrarias e bibliotecas, mas infelizmente é cada vez o que mais há nesses lugares. Meu conjunto de conselhos talvez não dê em um livro que preste, mas em um objeto que vendesse eu não duvidaria nem um pouco. Ao trabalho que é disso que se trata e nada mais que isso.