Já contei, para o espanto e terror de muitas pessoas, que por um tempo tive um artefato auxiliar para aferição do espírito inclusivo escolar do colégio onde estudam meu filho que tem síndrome de Down e sua irmã, que não tem. É o Hulk (e a escola é a mesma para ambos). Esta história do Hulk já foi contada aqui, portanto não irei repeti-la. Não é o caso.
Pois é chegada a hora de informar que o “Hulk” vem sendo felizmente superado. Nem sei como se poderia superar o Hulk, mas a questão é que o “dispositivo” me serviu bastante enquanto a comunicação com meu filho era bastante precária. E a verdade é que o Hulk foi sendo substituído pela sua expressividade e por outros comportamentos sociais capazes de me informar sobre seu desejo autônomo por incluir-se.
Pessoas que esperam pureza infinita e afligem-se com o que possam interpretar como manifestação de um “politicamente incorreto” haverão de tremer daqui em diante, mas não me importo. A questão é que, de forma tácita, meu filho estabeleceu uma série de direitos, para ele inclusivos e inalienáveis, a saber:
1) o direito a participar do fogueirão do fim de tarde custe o que custar (sim, ele tem que jogar bola, garrafinha, tampinha, folhinha ou o quer quer seja chutável com o pé com seus colegas, num evento esportivo improvisado e sem muitas regras onde todos podem participar e o gol fica para qualquer lado);
2) o direito de pagar e escolher o próprio lanche na cantina da escola;
3) o direito de não beijar e abraçar os professores e adultos e colegas sempre que instado;
4) o direito de escolher a quem beijar e abraçar (bem como o dever de eventualmente frustrar-se);
5) o direito de ser s-e-m-p-r-e o último a sair da escola e, ainda assim, lutar por lá permanecer “só mais um pouquinho”;
6) o direito de preferir brincar a fazer seus deveres e o dever de eventualmente frustrar-se, a não ser quando o espírito coletivo exigir o contrário e a bagunça for deliciosamente irresistível;
7) o direito de valer-se de soluções mágicas para a resolução de problemas complexos, desde que acompanhados do infalível sorriso sedutor;
8) o direito de distrair-se e perder-se eventualmente da fila por uma eventual aparição do homem-aranha no pátio escolar ou uma formiga estranha qualquer ou uma bola extraviada (problema seríssimo);
9) o direito de disputar a mão e a companhia da professora, mas o dever de abrir mão da precedência;
10) e, principalmente, por fim, o direito fundamental de não ser exemplo de coisa nenhuma e de na maioria das vezes não ser notado, de estar meramente no anonimato e na gritaria comum do alunado, sem por isso ser julgado ou avaliado, mas compreendido na sua condição de criancice.
Devo admitir que não houve muita negociação e todos estes “direitos” supra foram conquistados sub-repticiamente, com boas doses de malandragem e cavalheirismo mútuo, já que o Hulk (o artefato, não o personagem) e sua brutalidade parece aposentado, dando lugar a um ser bem mais tranquilo e afável, mais parecido com quem realmente é, esse meu guri..