Por mais de um século, uma das grandes filigranas culturais destas paragens sulinas tem sido a origem do nosso gentílico. Sobre a etiologia e o significado do termo “gaúcho” debruçaram-se muitos dos mais respeitados historiadores, literatos, intelectuais, folcloristas, pensadores e opiniáticos do estado. Augusto Meyer, Moyses Vellinho, Manoelito de Ornellas, Guilhermino César, Carlos Reverbel, Barbosa Lessa e mais uma dúzia ou mais de uma dúzia de nomes ataram e desataram braçadas e nós da questão, como se sabe; isso sem contar com a vizinhança do Rio da Prata, que eventualmente alpercou-se na questão, como Ricardo Molas, Madaline Nichols e outros estudiosos.
Porém talvez tenha chegado o momento de trocar-se de preocupações, afinal a estas alturas parece de pouca serventia delimitar o valor de uma palavra quando até se duvida da existência do objeto correspondente. É um problema que, se consegue afligir a alguém ainda, o faz mais por afastar tudo o que envolve a vida real e presente das pessoas que vivem por aqui e por afetar, talvez, algum aspecto da estima socioafetiva da população do Rio Grande do Sul do que por nos provocar a pensar em quem somos, o que fazemos dessa identidade e porque nos enredamos tanto nisso, ainda hoje.
É como se, a este passo da história, fosse preciso ter de decidir entre chamar os romanos de romanos ou italianos. É como querer batizar alguém tomando-o por defunto sem sequer procurar saber se a criatura ainda respira ou não.
À parte os muitos interesses linguísticos, históricos e ideológicos, há um consenso mais ou menos patente de que se trata de um vulto emblemático e histórico, o tal “gaúcho”. Mas quanto tempo dura a história? E mais, há quem possa, de fato, decretá-la em marcos ou períodos sem que esteja igualmente submetido aos seus processos ou influenciado por tendências nem sempre claramente distinguíveis? Pelo sim, pelo não, a relevância da questiúncula etiológica é quase insignificante diante da que a ela vem se sucedendo e diz respeito, a saber, da existência real e observável do “gaúcho” e do que é feito de seus descendentes.
Ainda que constatar tal existência exigisse não mais do que um mero deslocamento geográfico, às vezes a impressão que tenho é de que se espera encontrar, numa incursão dessas, figuras mitológicas e personagens literários ou históricos. De fato, ambas as possibilidades são reais, mas a persistência da descrição mitológica empalidece a coloração real das pessoas e seu habitat. Sobrescreve-lhe o relevo, planifica suas ranhuras. Isso acontece, todavia, mais por um desejo externo e por uma falta de contato com a vida presente, com a vida do interior como ela é, do que por um desejo espontâneo de quem por lá está. Afinal, é sempre mais confortável pensar-se nos termos de uma teoria ou de um preconceito qualquer do que ter-se de lidar com a realidade. No mundo real, as pessoas sentem, vivem e dialogam com o tempo presente a despeito de qualquer idealização histórica e, em grande parte das vezes, sem interlocução alguma.
“Muchos no habrán oído jamás la palabra gaucho/Muitos não terão ouvido jamais a palavra gaúcho”, escreveu o argentino Jorge Luis Borges em seu poema “Los gauchos” (Elogio da Sombra, 1969). Talvez com mais precisão do que muitos estudiosos acadêmicos lograram obter, Borges passa uma ideia peremptória sobre como as pessoas costumam ter ideias a respeito de si mesmas, ou seja, é muito provável que a uma pessoa que sobreviva ainda hoje da atividade pastoril viva sem saber-se ser ou chamar-se isso ou aquilo. Sem ter um nome para si mesmo. Em caso contrário, é bastante provável que, caso ostente o gentílico como definição identitária, esteja fazendo-o por ter incorporado uma noção alheia, provavelmente deslocada por elementos culturais transportados pelos meios de comunicação e bens culturais, tais como a música e literatura, por exemplo. Bem mais a música popular que a literatura, diga-se de passagem, levando-se em conta a profusão de intérpretes da música regional, em suas diversas vertentes.
De qualquer forma, é cada vez mais precária a compreensão da transposição para o presente dessa identidade que, originária dos acertos e conflitos de fronteira, vulgarizada e até certo ponto tomada como impropério, perdeu a maior parte de seus atributos originais, sujeitando-se de forma inevitável aos processos históricos. No imaginário popular, entretanto, acabou por empedrar-se numa espécie de criogenia perpétua. Ou então tornar-se uma espécie de auto-caricatura, num reconhecimento de deslocamento, como evidenciando um mal-estar na contemporaneidade de sujeitos tipificados como há duzentos anos atrás. É uma dúvida comum a todo gaúcho (aqui no sentido de gentílico) que se preze pensar-se representado ou por um resquício solerte de um Capitão Rodrigo Cambará ou pelo carisma do Guri de Uruguaiana, passando-se por uma galeria de muitos outros tipos curiosos. A hipercaracterização cultural do tipo humano associada à hiperinterpretação acadêmica, que o condena a sobreviver como uma espécie de fantasma de si mesmo, amargando o peso de uma história violenta onde se aglutinam degoladores, caudilhos, estancieiros, contrabandistas, escravos, peões, nos faz remeter à barbárie, enquanto somos apenas humanos. Esse direito elementar, entretanto, nos foi interditado. É preciso reconhecer isso. E sobreviver a isso.
Mesmo que ainda se esteja longe de um consenso qualquer sobre a etiologia da palavra “gaúcho”, se o tipo ainda existe subliminarmente ou foi extinto da mesma forma com que seria uma espécie animal qualquer, é preciso avisar àquelas pessoas que, desde os extremos ao sul de Jaguarão até os altos de cima da serra, devem virar-se com o seu modo de vida. Se não evidentemente glorioso, mas notadamente complexo, principalmente por ser necessário lidar com os fantasmas que se lhes impõem e dos quais eles sabiamente não costumam importar-se à onipresença. No tempo histórico dilatado das mentalidades, no entrevero entre o centauro do pampa, o monarca das coxilhas e o gaúcho a pé, vamos gastando a faca. E, de vez em quando, o verbo.