Uma vez, não sei que vez, não sei há quanto tempo, li um crítico literário comentando, a respeito de determinado poeta, que ele seria alguém que tinha obsessão por escrever sobre o tempo. Sobre a passagem do tempo e o que o tempo faz ou deixa de fazer sobre as coisas e sobre as pessoas.
Para este crítico, o tempo seria apenas uma entidade dimensional, como uma categoria física, nada além disso. Para ele, o tempo e sua passagem eram um motivo poético frágil e superficial, mostra de pouco conteúdo dada a sua repetição episódica na produção escrita do outro.
Para aquele poeta, de outra forma, o tempo era a própria vida acontecendo, depositando-se na realidade, materializando-se nas coisas todas, em todas as paisagens, nas impressões sensíveis do ser humano sobre tudo, inclusive sobre si mesmo e na sua capacidade de perceber ao mundo inteiro.
Para o crítico, o tempo era apenas um intervalo cronológico sobre o qual ele analisava fenômenos literários como se fossem quantidades e não qualidades. Aqui tantas rimas, ali aquele outro tanto de metáforas e assim por diante.
Ambos sobreviveram nos livros. Um a notar que o tempo é determinante da vida, senão sua própria razão de ser. E o outro a dizer que aquilo nenhuma diferença fazia. Pura perda de tempo.
Para o poeta, sem o tempo não seria possível escrever poesia.
Para o crítico, não se tratava exatamente de poesia.
Para o poeta, não se tratava do que o critico acreditava ou não, mas do que ele sentia e tinha vontade de dizer/escrever.
Para o crítico, não interessava à poesia nem tempo nem sentimento, mas unicamente a eficácia da palavra.
Para o poeta, o tempo era mais eficaz que a palavra e se ele não o exibisse em contraste à vida, era o mesmo que não viver ou não existir vida.
Para o crítico, o tempo era apenas uma evidência entre tantas e como tal deveria ser tratada.
Cada um a seu modo, ambos viveram da mesma matéria, mas um vivia de comprová-la ou refutá-la enquanto o outro não procurava convencer de coisa nenhuma a ninguém.
Ambos estiveram sempre certos no que diziam e pensavam, pelo menos para si mesmos. Ambos tinham de certo modo razão no que pensavam, mesmo que fossem razões eternamente inconciliáveis.
Para a felicidade de ambos (e também de seus leitores), ao que se sabe nunca que eles debateram isso abertamente.
O tempo passou e os argumentos do critico enrijeceram-se, porque essa é sua natureza, como monumentos implacáveis. Os poemas do poeta entraram em ciclo, bem como as estações do ano ou as fases da lua. Eventualmente, um ou outro e de seus versos ainda prega um sorriso, ou causa espanto, ou flagra uma lágrima fortuita de um novo ou velho leitor. Tanto faz se novo ou antigo. Lá dentro dos seus parágrafos rigorosos, por mais sóbrios e acertados que fossem, os argumentos continuam sempre os mesmos, sisudos e compenetrados em terem razão e em parecerem razoáveis.
O tempo, seja ele o que for, tem efeito diverso, como se vê, até mesmo na palavra escrita, mas isso nunca é dado a ninguém prever como irá ou não acontecer. Para o crítico, trata-se sempre de conferir validade. Para o poeta, de mera transitoriedade.
Essa é mais uma das óbvias razões pelas quais um poeta também nunca deve perder tempo com um crítico, porque aquele normalmente já o está fazendo pelos dois. O benefício daquele poeta parece ter sempre sabido disso de antemão. E o malefício que o outro quis lhe atribuir na verdade estava atingindo era a si mesmo, porque parecia desconhecer que, tanto para a vida quanto para a critica e para a poesia, tempo é tempo e é matéria e é vida (que se substitui *) também.
* “Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.” A Passagem das Horas, Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.