O berro de fera

Foi através da música popular, não da literatura, que por primeiro tomei conhecimento do tensionamento existente entre a expressão cultural negra e sua receptividade social amplo senso no Brasil. A polêmica encarada frontalmente entre as figuras de Noel Rosa e Wilson Batista, nos anos 30, ainda hoje é demonstrativa da dificuldade de trânsito social das manifestações culturais entre a população, desmistificando em muito a noção freyreana de democracia racial e de nação mestiça. Não é curioso, portanto, que este tensionamento tenha persistido e volte a expressar-se na contemporaneidade mesmo sob manifestações culturais não necessariamente originadas no Brasil, como é o caso do rap (rythm and poetry). O fenômeno vem ocorrendo através das décadas, desde o surgimento de Gabriel o Pensador, passando por Marcelo D2 e desembocando em artistas mais recentes, tais como os grupos Haikaiss e Costa Gold, integrados exclusivamente por compositores e cantores brancos.

Por esbarrar ou mesmo adentrar o território das ciências sociais e da política, é muito difícil analisar-se a produção e recepção cultural do trabalho destes compositores sem tomar em consideração critérios sociológicos atualmente muito presentes nos debates públicos nos quais a questão étnico-racial do negro é entrevista. O que ocorre hoje, no entanto, não resulta diretamente da interposição de uma interpretação deslocada, mas da continuidade de discussões anteriores propostas por intelectuais negros e interessados nas questões raciais, tais como as noções de emparedamento, embranquecimento, eugenia e dissimulação. Trata-se de conceitos trabalhados mais ou menos desde os anos 50 do séc. XX e que, na atualidade, parecem ter desembocado numa concepção mais abrangente da vida social, envolvendo desde as práticas culturais até as políticas e micropolíticas.

Desde esse ponto de vista mais sociológico é que tem sido possível analisar em perspectiva a obra literária de nomes que fazem parte de todo o legado cultural brasileiro, como Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa, para ficar nos mais conhecidos. Seria, em minha opinião, uma miopia, uma espécie de deslocamento, a atribuição de um caráter premeditadamente político na obra desses escritores. Pelo contrário, a mim parece que se trata de processos criativos que ocorreram naturalmente a partir das condições e do desenrolar da própria vida (e também da visão de mundo) dos autores. Além disso, há que considerar a realidade política em que viveram e na qual cada um deles experimentou o drama da distinção racial e a tomada de consciência quanto a isso.

Mesmo que se quisesse, hoje seria impossível reconstituir as condições culturais do princípio do período republicano no Brasil. Por documentos e pela literatura pode-se ter uma noção aproximada do quanto a questão abolicionista mobilizou a vida política e cotidiana daquela época, mas, quanto a compreender-se a intensidade do tensionamento e do trânsito das ideias no âmbito das subjetividades, esta parece ser uma ponderação das mais complexas. Seja como for, a obra destes autores em sua época parece ter ocorrido muito mais por um movimento em direção ao universo hegemônico branco do que pelo contrário. Todos os elementos africanos, aliás, permaneceram marginais à cultura letrada e somente mesmo na música popular e no apogeu da era do rádio se fez notar pelo reconhecimento da musicalidade de origem negra, como o maxixe, o choro e principalmente o samba. Voltamos, dessa forma, ao pugilato verbal e musical entre Noel Rosa e Wilson Batista recentemente reencenado pelas discussões em torno da primazia dos negros no rap e do embranquecimento do estilo por artistas brancos.

Se desde um ponto de vista ideológico e contemporâneo a produção cultural dos autores negros da virada do séc XIX e princípios do séc. XX parece ter ocorrido sob uma tendência inexorável de modernização política, por outro parece muito claro que a legitimação dos elementos culturais negros no Brasil tem historicamente passado pelo crivo de intérpretes brancos. Não se trata de culpabilizar nem mesmo justificar a expressão discriminatória através do complexo contexto histórico de um mundo dominado pelas ideias eugenistas de superioridade racial, no entanto a manutenção dessas condições atesta em muito a falência do mito da democracia racial em horizontalizar as condições materiais e culturais de uma imensa parcela da população identificada como negra.

O fato notório de desperceber-se deliberadamente tais condições – como expressas atualmente em outros campos culturais -, apenas corrobora, portanto, a percepção de uma sociedade alicerçada nas distinções de classe, mas também raça, também gênero e também relevância política. É daí, penso eu, que a cultura literária negra ou afrobrasileira, não pretendo me deter aqui nessa distinção, aferre-se como patrimônio de uma identidade fragmentada, de um país que não hesita em vender-se externamente como exemplo mais-que-perfeito de convívio solidário, mas internamente sobrevive pela manutenção do status quo da discriminação e do preconceito.

Dessa forma, pelo menos em meu ponto de vista, penso com muita consideração na literatura e manifestações culturais contemporâneas de cunho mais militante, engajado. Não penso realmente que toda a literatura deva ser militante direta ou indiretamente, mas que se reconheça que este não é um fenômeno gratuito e que decorre da necessidade de denúncia e reconhecimento público de uma realidade constantemente sonegada: o racismo em suas diferentes formas. Discordo, todavia, que toda a arte produzida pelos negros deva necessariamente reivindicar este papel político e que não tenha por sua conta outros atrativos estéticos, porém reconheço a necessidade de que assim se manifeste sempre que desejar. É que simplesmente é intolerável que ainda hoje exista quem pretenda transformar a cultura negra e seus traços peculiares num “feitiço decente”, como desejava Noel Rosa e insistir em domesticar o tão salutar e necessário “berro de fera” “que vem de longe pra nos fazer companhia”, como cantou Milton Nascimento. É que estar junto, no mundo social, implica em muito em ouvirmos uns aos outros. Eliminando-se isso, o reconhecimento dessa necessidade, como poderíamos coletivamente nos entender e evoluir socialmente? Fica a dúvida. E é bom que fique.

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