Se antes a vida estivesse boa, eu nem atinava de perceber o quão ruim ela anda agora, nesses dias fechados, engavetados, reprisados de outros idênticos. Tem dias que nem mesmo o sol amarelo-azulado do inverno, à contra luz, conduz a minha vontade às ruas. Isso que a planura do Menino Deus quase não sacrifica meus joelhos nem o quadril titânico, onde acabei vindo morar.
Porém agora eu encontrei com o que me ocupar na falta do jogo de canastra dos vizinhos e dos livros e filmes aborrecidos. É que eu não tolero mais encontrar na televisão os atores do TCM, velhos quando eu ainda era um menino, perpetuamente jovens, bonitos e saudáveis. Sem pinos e nem ressalvas especiais na vida.
E também os livros me enfaram de uma tal maneira que nem é bom comentar ou pensar, afinal, vá que se ofendam os fantasmas desses gigantes todos e decidam por me punir de alguma maneira, eu não sei, quitando a minha memória num golpe só, que no fundo eles são bandidos mesmo. Esses sujeitos. É que cansa sobremaneira (se eu te contasse) ter de topar com a sombra dos outros, esses semideuses.
Eu antes preferia as pombas de longas tardes à toa, que pelo menos parecem nunca serem as mesmas. Pombas avulsas em frente ao banco onde vinha tomar meu punhado de sol antes de substituí-lo definitivamente por cápsulas de vitamina e recomendações de mais cautelas e quietudes intermináveis. Eu sei que vai chegar o dia em que vou preferir as cápsulas, mas, enquanto posso, deixo que o sol banhe a estrutura do corpo. Com a fronte protegida de qualquer coisa, é claro. E um comprimido de aspirina no bolso da frente pro caso de um enfarte. Quem é que sabe?
Mas eu vinha dizendo que a vida era suportável, agora melhorou muito com esse trumbico que o vendedor me instalou no aparelho novo, presente dos netos. Diz ele que é de “encontros”. E me deu, de atrevido, um perfil falso. Pra mim, é diversão pra horas e também a coisa de ir pra cima e pra baixo dá uma noção de movimento, de algum movimento nessas tardes pachorrentas, intermináveis.
Agora, quando até respirar virou quase desaconselhável e as figuras vão mudando, como num interminável menu de gente, e se repetindo, eu me confundo a elas e parece que desapareço da mesma forma que no footing do Centro, ainda que não se compare vida de verdade com isso.
Só convite mesmo nunca pensei que pudesse acontecer, de alguém, por me conhecer. A foto que depois troquei não é má, mas tampouco realista. Deveria me sentir um enganador por isso? Não… Também não faço ideia se essa Maria Helena é essa pessoa mesmo, apesar de que, se tem uma coisa que velho não se engana, é o ouvido (apesar da surdez). Mesmo rareando, lá dentro a gente sabe quando a voz se encolhe na garganta, rascante, e atinge as ondas sonoras com seu traço inconfundível de ave antiga, naquela rouquidão que sempre entende de se instalar e inundam as cordas vocais às vezes, e as embaraçam.
A Maria Helena não há de ser golpista e, mais a mais, vai me roubar o quê? Minha niqueleira? Os documentos? O cartão da formidável aposentadoria? Prejuízo sem monta, que me leve tudo se for mesmo mais sábia que eu (o que também não é difícil), e souber que podemos por um momento também congelar o tempo, como num beijo de três segundos, Cary e Ingrid. Ou três vezes três…
E, se for golpe, sequestro, o que seja, pelo menos olhei pra cima um pouco, tirei o mofo e me iludi. Não dizia aquele outro que a vida é sonho? Ah.. Maria Helena, olhe pra mim… O meu estado de nervos. E não repare em nada. Olhe em meus olhos, não seja tola de me comparar. Não é verdade que todo mundo fica perfeito quando não é comparado? Agora, se for pra me roubar, que roube direito, com gentileza. Porque tem muito diferença entre ser enganado ou bem roubado.