
Em meio ao gesto automático de enrolar o crioulo nas palhas mantidas junto às patacas do cinturão, o relincho do tostado por um momento fez com que Santiago despertasse do devaneio em que se encontrava. Mesmo sem pensar no que fazia, escolhera a que parecia mais verde entre todas as tiras de palha. O cigarro dessa forma duraria mais tempo aceso e então poderia refletir melhor sobre as casas no pequeno mato no horizonte a nascente, o que lá deixara e a razão de sua partida.
Mais um relincho e o homem percebeu a uma distância relativamente pequena a correria desembestada de uma manada. Por sorte capara ele mesmo o potro um ano antes, caso contrário teria encrenca com o redomão. A fama que tinha nas redondezas, quando cavalo inteiro, era que fosse dos mais ladinos e que até se jogava aos arroios se lhe chegasse às narinas indício do cio das éguas e potrancas orientais, dos campos dos parentes uruguaios de Don Aristides. No meio da fumaça expelida na baforada que parecia condensar-se no ar, Santiago pensava que mesmo com a vista de velho podia contar os animais da manada, no entanto não havia maneira de que lembrasse para qual caminho prosseguir, se havia mesmo comido alguma coisa ou quando e de como se esquecera das lições que na paróquia o padre dispensara aos interessados em aprender a ler e fazer contas. As contas ele ainda sabia fazer, pois praticava todos os dias ao recorrer os campos do patrão, mas as letras agora lhe pareciam apenas desenhos sem qualquer sentido.
Dobrando pela metade o bilhete de Don Aristides e guardando-o de volta junto à guaiaca, tinha noção de que em algum lugar alguém o esperava, mas onde? O mundo agigantado em contraste aos campos cobertos de unhas de gato e outros matagais parecia-lhe incompreensível. A vista oferecida pelos coxilhões era de lonjura para qualquer lado que pudesse escolher e sombras havia pouquíssimas. O cavalo, impaciente, pateava as moscas e bufava; por conhecer o idioma dos animais desde criança, sabia que assim ele acusava sede e estafa. “Te aquieta, matungo…”, disse alto no idioma que, por sua vez, o cavalo ignorava por completo. Talvez pelo tom de voz ou pelo jeito de dizer, a mensagem surtiu efeito e o animal aquietou-se por um tempo mais. Mas ele, continuando a baforar, decidiu que não arredaria o pé dali enquanto não recobrasse a certeza de seu destino.
Sobre uma das raízes robustas e onduladas do ombu sentou-se e mais uma vez puxou do bilhete. Apenas conseguia lembrar-se da primeira letra, igual a um pássaro em voo, e da letra “o”, igual a um caroço, que se repetia de tanto em tanto. Além disso, mais nada. Tinha certeza, no entanto, de que era importante. Ou até mais: vital. Mas o papel, como uma folha qualquer de árvore, ocultava-lhe da mesma forma que um segredo intransponível o que intuía ser um dever importante e para o qual havia recebido de véspera a paga nas novas moedas de bronze cunhadas com o brasão da Coroa, a imagem do Imperador e outras letras que não entendia e que lhe pesava por baixo dos panos do xiripá.
Por sorte, pensava Santiago, que não havia se acompanhado dos perros. Com fome, os animais lhe fariam desembestar a qualquer lugar em busca de comida e então se perderia para sempre do seu destino. Por outro lado, o cavalo bastava soltar-lhe o freio e ele se virava solito a pastar. O problema do cavalo era outro: a sede e o calor que aumentava indicando-lhe que o sol a pino se aproximava. Na guampa que trazia junto aos arreios havia alguma, mas mal dava para si mesmo. Teria de poupá-la e decidir de uma vez por seguir adiante.
“Dime, loco… Donde vamos?”, perguntava alto enquanto coçava a bochecha do tostado sem esperar que o animal lhe respondesse, não estava louco a esse ponto, mas, se ele desse uma indicação que fosse, talvez seguisse o conselho do cavalo. Um menear de cabeça, um apontar de orelhas nalguma direção… Por instinto, sabia que dependia muito do cavalo e que lhe confiar a decisão, na zonzeira em que estava, não seria má ideia. Pensando nisso, decidiu desencilhá-lo completamente e deixá-lo livre. Encostou bastos, xergas e pelegos ao ombu e correu com o cavalo dali. O animal, porém, não se afastou muito. Deu uns poucos passos e parou onde uma coxilha se dobrava em duas e principiava um declive mais profundo entre as lacunas verdolengas do campo. Por ali não havia sinal nem de esterco vacum, então era possível que já estivessem bastante longe de San Isidro, sede e residência da família de Don Aristides. Deu um passo mais e olhou em sua direção como se o chamasse, mas Santiago entendeu que o cavalo deseja fazer o caminho de volta à estância.
“¿Por qué no te vas, desgraciado?“, gritou com o cavalo e então o outro seguiu aos poucos o caminho que escolhera por conta própria, desparecendo aos poucos no declive que, por certo, o levaria de encontro a uma aguada e, depois, talvez para casa. Ou, talvez, buscasse a manada que vira mais cedo. Quem pode entender o que passa na cabeça de um cavalo?
Aos poucos, o cigarro apagou-se em seus lábios e Santiago encostou-se bem ao lado do tronco da árvore, descansando a cabeça sobre os braços cruzados por detrás da nuca. Olhava o céu e as nuvens enfarruscadas lá em cima, sinal de que o vento dissipava a chuva antes mesmo que se formassem as nuvens mais pesadas. Mas o vento mesmo ficava lá em cima. Onde estava não ventava quase nada e acordou com a roupa encharcada de suor de um sono que nem imaginava o quanto durara. E também não imaginava o que estava fazendo ali, com os aperos arriados na árvore. Nem faca e nem adaga haviam sido roubadas ou tinham marca de sangue, sinal de que houvesse se metido em entreveros. E o tostado? Nem sinal…
Coçando a barba e ajeitando as melenas debaixo do sombrero de feltro em farrapos, Santiago ajeitou-se de pé e enfiou o tecido da camisa para dentro do xiripá, sujeitando o traje com a guaiaca castelhana. Podia estar numa situação miserável, de a pé e louco da cabeça, mas sempre aprumado. Sentiu o peso das moedas e pensava no que conferia la plata. Uma doma? Algum serviço encomendado? De repente, notou o bilhete e puxou-o novamente em direção aos olhos. Que diriam aquelas letras rebuscadas? “Infierno…”, pensou alto e olhou por tudo para tentar localizar movimento nos campos, mas nada. Nem os quero-queros atiçavam os zorros que lhes perseguiam os ninhos ou avisavam de movimento de gente. Haveria de fazer algo, pois Santiago não era do feitio de entregar-se ao devaneio simplório nem de lamuriar-se em vão. Sem ideias e sem esperança de recobrar sequer o próprio nome, tomou do laço e o enrodilhou em torno a um entroncamento robusto do ombu e, subido no amontoado de raízes externas da árvore, forçou-o para avaliar se aguentaria, afinal, o seu peso, porque os galhos não poderiam.
E como se estivesse mais uma vez no Chaco, peleando contra os paraguaios ao lado de seus irmãos orientais, ou brincando com eles de enfrentar um tigre ou simular um duelo, como quando criança, fez pela última vez o que de melhor sabia para ter vivido por tanto tempo: jogou-se adiante. Não chegou a ver o tostado retornar o caminho e partir mais uma vez, na outra manhã. Desta, pela última vez.
Meia-pataca
2017
Sob a sombra
dos galhos secos
de um ombu,
Santiago
olhava nas mãos
o bilhete.
Ao seu lado,
o cavalo arfava
com sede
e pela boca
borbulhava
espessamente.
Sua missão
era nunca
esquecer
o que viera
fazer ali,
mas esquecera.
As letras
nada
lhe diziam
e, em suas costas,
inclemente,
o sol ardia.
Pobre Santiago
que aceitara
a incumbência
de agir
para os outros
sem entender.
Do laço
puxou
e o pendurou
na árvore.
Pensava
mais com os olhos
do que com a mente
entre a distância
de fugir,
a sede do animal
e a vontade
de morrer.
Perto dali
(se bem lembrava) havia
um riacho seco.
Era com o que
o cavalo
teria de se haver.
Livre da carga,
ele o esperava
junto à corda toda esticada.
Santiago,
índio vago
a quem
meia-pataca
contrata
el empleo
de vida
ou de morte
e cuja memória,
depois
de acabado
seu último serviço,
será esquecida
como se tratasse
de ninguém.