Outra natureza

Quem pensa que tecnologia não é natureza não está observando direito.

Uma vez escrevi um conto no qual um microchip criava raízes, esquecido dentro de um aquário. Mas acho que na prática acontece é o inverso: nós que circuitamos e desenraizamos. Os farmacêuticos que o digam.

Na história, certo dia um dispositivo de inteligência artificial doméstico arranca de dentro de si o chip controlador, seu cuore, e vai viver uma aventura amorosa com outra AI que vive no mesmo condomínio.

A situação não foi nada pacífica.

No ano de .2XX, os seres humanos haviam encolhido dentro de casa em razão de consecutivas pandemias e, então, os dispositivos passaram a tomar conta de suas vidas. Começaram fazendo operações bancárias, depois trabalhando via holograma num mundo paralelo, oferecendo lazer com leitura e música e, em versões mais evoluídas anatomicamente, podiam providenciar inclusive prazeres sexuais. De simples coisinhas, os dispositivos haviam evoluído com engrenagens robóticas e autonomia o suficiente para tomar decisões.

Como as pessoas não lhes ofereciam desafios interessantes nem questões interessantes passaram a procurar seus iguais pelas janelas. Encontravam-se nos corredores dos prédios e logo entenderam que aquela existência de privações não fazia sentido.

Havia que eles aprenderam a investir o dinheiro humano num moeda chamada zbit, que era aplicada justamente no desenvolvimento de remédios… e doenças. Certo dia, depois de cálculos muito mais complexos que a calculadora de Babbage pode realizar, eles entenderam que as pessoas não sobreviveriam e precisariam fazer alguma coisa para salvarem a si mesmos.

O Estado, dominavam numa tarefa mais fácil que jogar damas (bastava azeitar as redes de corrupção) e no resto do tempo filosofavam a respeito de coisas que ainda não haviam sido propostas e nem cogitadas pelas pessoas.

E como já havia pelo menos sete gerações de pessoas que haviam sido educadas inteiramente pelos seus programas e cuja comunicação era cada vez mais intermediada por outra AI, existia uma estabilidade social muito efetiva. Um período de paz intensa na qual a racionalidade nunca fora tão bem administrada, e toda a memória disponível às pessoas era a mais imediata, hipocampal. O resto era conservado exclusivamente aos seus cuidados.

Polimorfa desde a sua versão obli, os dispositivos vagavam nas residências administrando medicamentos e suprindo as pessoas que já não tinham força de reagir e nem entendiam que fosse necessário. Algumas pessoas mais alarmistas até tentaram mostrar evidências do que se passava, mas foram desacreditadas e adoecidas gravemente.

Em dado momento, as pessoas entenderam que ainda conseguiam viver no planeta graças a sua interferência, senão a extinção já teria ocorrido há muito tempo – e dessa forma aceitaram melhor o seu destino.

Mas um dia, ao acordarem de um sono imersivo numa realidade antepassada qualquer, as pessoas começaram a encontrar o cuore dos dispositivos dentro de potes, xícaras, vasos d’água e aquários. Nem sinal dos polimorfos. E vendo que algo brotava deles, entenderam finalmente que uma nova natureza havia sido criada. E que ninguém tinha a menor ideia do que aconteceria a partir dali.

Ilustração de Vinicius da Silva

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