Ah, sim… Você também acha estranho ver alguém falando sozinho nas ruas! É mesmo uma cena melancólica. Às vezes, eu falo também, mas pouco. Logo percebo e paro. Você também, provavelmente. Daí a estranheza e/ou o receio de fazer uma projeção qualquer. Imaginar-se no lugar daquele senhor que faz algo ainda mais estranho: ele não só cumprimenta o totem que expede os tíquetes do estacionamento quanto agradece na volta, ao sair e descer a rampa em direção às ruas.
Não tenho como sabê-lo (ninguém tem), mas eu sei que os dias lhe são cada vez maiores. Eu imagino só e isso me é suficiente. Assim como as manhãs começam antes da aurora, à noite o sono só chega mesmo após muitos comprimidos. Eu não o vejo (ninguém vê), mas eu sei que às vezes ele os ingere em dobro. A esperança é que dessa forma possa acordar com o o sol já melhor colocado no céu. Talvez até já sob aquela luz líquida que atravessa os furinhos da persiana e cria como uma cortina intangível de partículas. Você sabe do que estou falando: os grânulos da poeira acumulada que parecem ter vida própria, uma espécie estranha de vida, verdade, minúscula, mas, sem dúvida, autônoma.
Em sua família eu não penso nem imagino nada. Não ousaria ser invasivo a esse ponto. As possibilidades são tão múltiplas quanto imprevisíveis. Solteiro, viúvo, pai, avô, etc. Ou nada disso. Seria ainda mais estranho se tivesse uma família constituída e falasse ao totem somente por educação. Uma educação extremada como a daquelas pessoas antigas que, ao acender-se a luz pela noite diziam a ninguém e todos o cumprimento solene “boa noite”. E assim sacramentava-se o final de mais um dia. A imagem não resulta bem. Prefiro – ou é mais fácil dessa forma – decidir que é um velho homem solitário e regrado na sua vida. Educado ao ponto de responder atendentes de telemarketing, e-mails falsos e tótens com vocalizadores. Se bem que assim não seria tão estranho, afinal, ninguém nunca sabe como essas coisas esperam que a gente se comporte.
Como cliente, nada consta de errado. Um dia quando estava no almoxarifado conferindo os prazos dos extintores de incêndio, pedi ao Josué, que cuida ali dos computadores, que checasse pela placa do automóvel nome e compras do homem.
“Mas o que você quer saber”, ele indagou antes de atender ao pedido. “É curiosidade, só…”, expliquei-lhe. Curiosidade é uma intenção que entre nós não diz nada e, por isso, logo abriu a ficha cadastral na tela do seu equipamento.
A imagem cadastrada era a da identidade do sujeito. Já calvo e com a barba sempre bem feita, tinha um olhar complacente e severo ao mesmo tempo, se é que é possível a combinação. Eu achei que era. A data de nascimento, naturalidade interiorana e a digital bem gravada davam uma ideia sólida de um indivíduo. Aposentado, sem dúvida. Um senhor de idade, como eu já disse. Nem tão velho que assocializado e nem tão jovem que dispensasse a minha ajuda eventual com as sacolas e caixas de leite. Algumas vezes eu o ajudei nisso e ele tinha a mesma efusividade neutra ao me agradecer que tinha para com o totem. Mas a minha vida é assim mesmo. Há quem nem agradeça e a verdade é que isso também não me causa mais nem uma sensação. Antes causava, sim, um pouco; agora, não.
Com o Josué rolando a tela abaixo, no rol de compras regulares, já que era sempre às segundas e sextas-feiras que ele aparecia, não notei nada que chamasse a atenção por um esdrúxulo. O produto mais comprado era farinha de trigo. Era um tanto mais que o normal e também muto regular: cinco quilos a cada visita. Uma ingesta e tanto de carboidratos e certamente problemas com o glúten ele não tinha. Mas não era gordo, o seu Giovani. Este o seu nome completo: Giovani Teles Battagglia. Natural de Barra do Quaraí, na fronteira com a Argentina, no ano de 1948, quase certo que de ascendência italiana. Estamos em 2022, logo ele tem 74 anos de idade. Está bem ele para a idade. Fala com o totem, mas não há quem fale com o gato ou com o cachorro?
“Obrigado, Josué! Vou buscar um café no refeitório. Quer que eu traga um pra ti?”, indaguei a ele quase saindo pela porta, mas ele respondeu que não precisava. Depois iria até lá e aproveitava para esticar as pernas.
Naquele dia, depois desci os dois degraus que suspendiam o container do almoxarifado do piso para o estacionamento e estava voltando para o meu posto quando ouvi que o totem havia provavelmente enguiçado outra vez e uma mulher de meia idade descera do carro e esmurrava a torre eletrônica. Devia estar travado ou não aceitado a validação do tíquete, é o que mais acontece com a geringonça.
“Senhora, calma!”, disse-lhe ao me aproximar. “Posso ajudar e abrir a catraca…”, assegurei-lhe. A mulher olhou para o meu uniforme e notou que eu era um funcionário da segurança. Respirou fundo, o que moveu os cabelos da franja para o lado, e me explicou que estava tudo bem com o tíquete dela. O totem é que não havia lhe agradecido. E sem mais dizer nem agradecer entrou de volta no automóvel e desceu apressada às ruas também.