Com a mesma vontade indolente
o osso espreita o cão.
Num momento como esse
até os alicerces do prédio
anseiam por debandar.
A lua nesse meio tempo
não entende o que faz
e se recusa a nascer.
A espera é esgotante
do tempo que ficou tarde.
O irremediável? O que fazer
senão tolerá-lo?
2
Ligo o rádio um instante
pelas notícias mais fúteis.
Preciso saber melhor
o clima que fazia ontem.
Quem disse o quê e porquê.
Alguém prestou atenção?
3
Uma vez um amigo poeta disse
que, na boa poesia, as musas estão dormindo
em nosso lugar, e assim é que nos sonham
potentes e capazes de arruinar
o medo e nossas incapacidades.
E que não se ouse acordá-las
porque então as metáforas se tornam
mortíferas, como analogias
desprovidas de imaginação.
Duras como a vida na verdade é.
A verdade sem metáforas.
4
Em algum momento – isso é claro –
o osso cederá ao cão.
É a mesma espécie de consolo
que nos oferece o tempo.
Os alicerces acomodarão a cervical
e as vidas acima voltarão ao calendário
a que estão habituadas.
5
Mas o estado de exceção em nós
é estranhamente reconfortante
do que nos mantém absortos, cativos.
Às vezes, isso só tem mais clareza.
Como se em contraluz.
E depois o desconforto das coisas invertidas
também se cansa de si, puxado pelas
mãos do real. Esgota-se inerte.
E porque não lhes resta alternativa
serão regeneradas
as coisas em sequência.
6
Eu olho melhor e tudo já parece mais óbvio
e ordinário. Como é preciso que seja.
7
Mas essa fome inquieta
do osso pelo cão
tem sua função também.
Ela que nos instrui
que nunca o prédio será
reconstruído como antes.
Sem forma original,
a vida é sempre modificada
para sempre.
Só mesmo a sede
dos que se encontram em Deus
consegue ser saciada
quer se chame o que seja isso “Deus”.
Bem aventurados os que entendem
a sua oferta silenciosa.