Nina se foi ontem. Sob a porta da casa fechada, posso distinguir a tranca que esteve nestes dias mantendo sempre uma das folhas da porta dupla entreaberta. A casa mesmo como uma concha aberta pela força do mar de encontro às pedras pretas da praia.
Olhando pelas poucas frestas, posso ver a areia que eu trouxe ali para dentro e ali ficou, acomodando-se no piso machucado, nas madeiras que o tempo e a maresia sulcam e enrugam como a pele de dentro do lugar, porque a casa de Nina é um corpo também. Um corpo com a única diferença de ter um endereço e, só às vezes, uma alma ocupando-o com as músicas dos seus discos, o bater das suas panelas, o tilintar das suas louças e a sua voz rouca. A casa de Nina é o seu corpo que permanece depois que ela se vai. Um espectro de tijolos e tábuas de quem sempre se vai sem nunca avisar a ninguém.
Eu disse que ela cantarolava em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 o tempo inteiro? Cantarolava também e especialmente sempre que não queria me responder qualquer coisa. Eu sabia que perguntar o que quer que fosse de nada adiantava mesmo e a verdade é que quase tudo a incomodava. Mas ela cantava e sorria eu acho que para não me chatear. Quem não gosta de ser chateado também não gosta de chatear aos demais.
Ao alto, agora o voo das fragatas ensaia ir novamente de encontro à praia, mas seus pescados e mariscos também partiram – igual ao que ela fez: sem deixar recados com ninguém. Afora as lembranças, vestígio nem um.
Decidido a não pronunciar mais o seu nome até que ela voltasse, no próximo verão, um instante só pensei em buscar com o vendedor do armazém em frente por notícias suas. Mas e se ele também a procurasse? Melhor não. Obviamente desisti sem me aproximar, mas nos dias seguintes me procure sentado ali, bebendo gim duplo até a hora de escurecer.
Eu também não queria saber nem aonde ela teria ido, ao encontro de que vida, se uma vida com rotina ou o quê, mas isso não parecia possível, eu nunca soube o que ela fazia longe dali. E pensava que só o que se admitia tratando-se dela é que estivesse enchendo o ar com seus pequenos risos e cantos silenciosos.
Também se a sua vida não fosse exatamente assim noutro lugar, melhor seria não saber de nada. Melhor guardar só a sua imagem, nem a sua imagem, seu vulto assomando à noite alta e morna de verão o calor tépido que trazia sempre consigo, como uma túnica, e a voz em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 cantando-me “já chega agora/o tempo vai passar, se acalme/só não vamos deixar que ele passe em vão…”