Uma casa nunca é reencontrada da mesma forma. Pela manhã, primeiro o sol ilumina cada reentrância do telhado, move sombras sobre as janelas entreabertas, deposita o quanto pode seu amarelado nas madeiras dos móveis e dos ladrilhos, rebrilhando. A casa se acorda e se lá dentro alguém vive foi acordado pelos sons dos bem-te-vis que vazam para dentro e deste vento que em algum momento despercebido passou também a soprar como se desejasse ventilá-la do interminável sono noturno. Mas se ela sobrevive sem quem a viva, ela mesma parece assumir uma forma paquidérmica, trapezoidal, como um imenso animal dorminhoco que ao abano do sol ensaia erguer as pestanas e então vai pouco a pouco voltando ao estado letárgico do sono profundo, mais adequado para onde não há ninguém. Para aparentemente onde não há ninguém.
Ao voltar para casa, não se pode encontrar o que os outros veem, só o que nós mesmos vemos. Ali estão os chapéus desde a última vez que foram pendurados ao cabide, após o último verão, antes da última chuva que tocou o solo e pintou as folhas do jasmineiro com pintas de suçuarana, e depois inundou tudo levando o que vivia ao subterrâneo.
A casa nunca sabe de quem se trata cada qual que se assoma aos degraus e à sua entrada. É o filho mais velho, os inúmeros filhos do meio, e o último deles. Qual foi que guardou alguma coisa na última visita? Quem roubou retratos com a esperança de manter vivas as mais apagadiças memórias? Também não sabemos. Em seu testemunho silencioso, o que ela diz nem todos entendem. Ela, que viu uma a uma as tentativas de partida e os passos de quem nunca voltou, é indiferentemente majestosa e parece guardar em segredo a ideia de que todos sejam como suas paredes e que dali de dentro ninguém nunca sai completamente.
Mas como se tivesse vida própria, com olhos às janelas ela expulsa o que não lhe pertence e se purifica do alheio. Disso é que se dá a sua vida. Ela prefere manter-se de saudade, só, e nada mais, do que de quem a depenaria em pedaços. E espera quieta, como sempre, e por que a encontrem num passeio sem pressa, numa visita ao acaso. Entre os ramos das árvores mais altas, a fisionomia hercúlea de quem suportaria tudo e voltaria a amanhecer ainda que as cidades sejam cada vez menos gentis, que não a encontrem menos severa do que o esperado e que guarda ainda em seus armários doces de um lado, venenos do outro.
Ao adentrá-la depois de tanto tempo, quem ela pode reconhecer? Quem a reconheceria? Não importa… Na noite escura, quando mesmo a lua desiste de dar as caras, ela vai se confundindo pouco a pouco ao fundo de uma moldura que escapa ao tempo. E desaparece.
II
Aqui nasceste
sem que alguém
te dissesse
bem vinda ao mundo.
E te apropriaste
do tutano das paredes,
faminta. A sede
que havias saciado
no azul do céu
cegou-te de tudo o mais:
deveres, pesares
e de quem te habitava.
Do nada me flagro
pensando: o que dirias
ao notar que não vicejo?
Eu não sei… Apenas
vejo as paredes ruindo
e, tu, nossa história.
Muito lindo e poético texto. Depois dele, meu olhar para casas ficou mais profundo em ternura. Adorei a franja de Jasmim Manga!