Porque nunca me disseste, tive eu mesmo
de descobrir: não há nada dentro de ti
e o que te anima somos nós, a carne
em que te aferras, memórias que roubas
e o passado que nos jogas aos pés
a cada instante, vencidas as promessas
fúteis, de tua boca, tão mal cumpridas…
Não tentes me enganar. Eu sei que
a minha melhor figura não guardaste
nem conheceste. E se eu quero te contar,
nunca queres saber, como se eu fosse
um fruto estranho, só espinhos,
em quem não ousarias tocar.
Mas o que eu sou não importa.
Quem importa para ti? Com um sorriso
intransigente, abres tua imensa boca
e nos devoras por inteiro. Para ti, somos carne,
os músculos de quem te abriu as veias.
Mas também não te importa quem fôramos.
E quem te abriu os olhos não viu nada,
só um espelho às avessas
nos confundindo em espírito e vida,
em vida e espírito e, afinal, em morte.
Bastava entender tua voz
e inércia. Bastava mais aceitar
que compreender. Bastava
que te amasse desse amor servil,
mas aí encontramos um problema:
não dou para isso. Em troca,
redobras tuas punições. Não permites
que eu descanse. Adias o outono
e decretas um tempo de paz fantasiosa.
Na verdade, o tempo pouco te
deteriora, se comparado a nós.
Nos domingos pela manhã, encontro
a mesma velha mulher passando a vassoura
no piso. A noite não a interessa, só
mesmo aquele momento da aurora
em que as esperanças perduram. Ela passa
a vassoura outra vez e só então se descortina o dia.
Olhando em minha direção, vejo
que não reconhece quem sou (eu também não…).
Aqui mudei e fui mudado, mas não guardo
nada. Dei tudo o que sou. Que me impeça
o verão interminável, eu não aceito.
De ti, nada, Porto Alegre… De qualquer modo,
não vais te saciar comigo. Um dia,
se me procures, desço à porta, toco teu ombro,
e eu mesmo digo que não estou.