Lambaris

De corretivo, nada de pesca, nada de pandorga, de bulitas, de coisa nenhuma. A não ser a cópia infinita num borrão, até a perfeição das lições mal aprendidas, nadica de nada.

Sem poder arredar o pé de casa, era até bom que o inverno chegasse de uma vez, assim ficavam sacramentados três ou quatro meses de chuva sem fim, sem pátio, sem nada o que fazer a não ser a maldita e sagrada obrigação que me levaria num milagre do esforço à correção da correção, à perfeição da perfeição.

Mas quem explicaria isso ao Miguel ou conseguiria convencer o diabo de que é preciso respeitar o que a mãe diz, caso contrário, Deus o livre, nem é bom pensar na fúria de que ela vai se tomar?

A mãe brava não queira ver… Tu já viu? Até o pai, naquela sua gabolice, enfia o nariz dentro da gola da camisa, se esquiva, desaparece. Até a chuva cessa um tanto a fim de ter certeza se é certo que continue a cair ou espere a fim de receber por novas ordens. Assim é que são as coisas.

Mas o Miguelito, no seu modo de pensar, ele não entende porque raios a punição para as minhas notas miseráveis no colégio deveriam se estender até a sua vida. É claro que ele tinha razão, porém ter razão não adianta de nada; quando a mãe decide, só sendo um desatinado pra desobedecer.

Apenas que esse guri maldito, o meu irmão mais novo, era mesmo um desatinado e resolveu fugir pela janela disposto a desafiar cada letra das proibições sumárias que ela editou logo ao ver o meu boletim, aquele documento que atestava que, apesar de estar há quase um ano vivendo por aqui, eu continuava um selvagem, alguém com tanta experiência de vida quanto um recém nascido e que do nada precisava se entender com o mundo, colegas, professoras, regras, regras e mais regras. Regras de todo mundo: entra aqui, sobe ali, senta quieto, come direito, te ajeita nessa cadeira.

Eu vi mesmo que ele andava há dias espreitando sobre a mesa da cozinha cada mosca que pousava ali, mas não atinei no que ele queria, pensei que andava só brincando. Igual a um felino, vigiava as bichinhas e, quando vê, zás, tapava-as com um copo ou com a mão emborcada. E fazia umas armadilhas com açúcar e um pouco de água, uma gosminha doce, e as moscas vinham, juntavam-se como num ritual em torno daquilo e ele implacavelmente pegava todas, até as mutucas, colocando tudo num pote de iscas.

Eu perguntava a ele, nem sei por quê, o que ele andava planejando. “Nada, me deixa”, ele respondia e seguia sua coleta sistemática. Nem sei como deixei que ele continuasse com aquilo, um troço nojento, mas era claro o que ele queria, era pescar lambaris, só que eu andava muito mais apavorado com as contas de fração que agora tinham resolvido de cobrar na prova de recuperação.

O certo é que eu não pensava em pescar nem em nada, só na prova e, não devo mentir, em alguém que do nada me tirou as vontades de brincar de uma vez só e como que me estaqueou na garganta uma dor estranha, dor sem dor, que eu ainda não entendia o que era, mas que também parecia que ia estragar meu ano porque tudo de repente dava errado na minha vida e os outros me levavam por diante como se eu fosse um jabuti do arroio que a molecada vai chutando pela frente na falta do que fazer.

O Miguel era só mais um que vivia indiferente aos meus problemas e nem sabia que eu tinha agora uma colega nova, vinda de Pinheiro Machado, e que tinha uns olhos cor de goiaba, uns cabelos encaracolados de uma cor de melado, que sei eu, que me impedia de entender qualquer coisa a não ser ela, a sua figura entrando na sala, a sua figura saindo, indo-se embora pela alameda sem que eu me animasse a me aproximar, imagine acompanhá-la.

Mas isso tudo era problema meu. O dele, era que havia decidido de qualquer modo que iria pescar porque, afinal, maio se aproximava e, caso não aproveitasse agora, depois só de novo na primavera. E aí já passou tempo demais pra alguém de nem cinco anos trancado dentro de casa tal uma jaguatirica engaiolada, um demoniozinho que logo também seguiria para o colégio, o coitadinho.

Já do lado de fora de casa, ele me olhava inconformado com a sua atitude; eu, a ele com a sua. Porém não me restou alternativa a pular a janela e seguir a trilha que os seus pés deixavam no caminho marcado dentro do pequeno pátio até o cercado que delimitava nossa casa do restante do mundo que entendíamos: o arrabalde onde viéramos para viver há menos de ano. A metros dali, cruzando o caminho de chão, a essas horas o arroio sesteava e nos esperava com suas bacias de pedra e criadouros de piabinhas, cascudos e carás.

Mas no meio do caminho, vinda detrás de nós, de casa provavelmente, a mãe nos gritou: “Migueeeeel! Antooooonio! Mas onde vocês pensam que vão?!!”

Nada mais nos competia fazer a não ser atirar no pastiçal o caniço de pesca e tudo o mais que pudesse nos incriminar, porque cada coisa flagrada conosco era um agravante potencial que ampliaria a pena e a punição em dobro, triplo, quíntuplo… As penas da mãe sempre descomunais, calculadas em cóleras que, às vezes, do nada passavam em seguida, como se aplacada por um senso repentino de justiça ou súbita clemência. Pensava que tomara fosse daquela vez também a nossa sorte!

Mas se eu era meio selvagem ainda, nem sei o que se poderia dizer do Miguelito… Tentando livrar-se inutilmente do pote no seu bolso de trás, ele conseguiu apenas arrancar a tampa da coisa com os seus dedos gordinhos. A cena não parecia de situação normal, mas parte das moscas e insetos que ele havia juntado começaram do nada a voar por sobre as nossas cabeças, do modo de um desencantamento.

Parada a meio caminho, a mãe parecia procurar entender o que se passava e nisso o Miguel viu que dentro do pote ainda sobravam algumas cujas patinhas haviam sido destruídas ou amassadas, e por um senso de proteção estúpido passei os dedos no fundo do pote, peguei tudo o que podia e num supremo desafio à autoridade da mãe enfiei aquilo tudo na boca tirando a mão de volta mais nua que a lua nova.

Sim…

Bem em nossa frente, ela me olhava como se perguntasse o que eu fazia ali que não estava estudando. E logo nos ameaçou com visível impaciência: “Vocês são uns diabos… Sempre teimando comigo…”, mas parecia já ter entendido o que se passava e se acalmado. Olhava para o céu como num lamento solene e divino que às mães é dado a aprender junto ao nascimento dos filhos.

“Pensei que estavam indo pescar…”, disse. E em seguida continuou: “E até que não é má ideia, mas parece que perderam as iscas…”, tomando do chão o caniço de taquara que eu havia tentando ocultar por ali. Segurou a mão do Miguel que me olhava boquiaberto e disse: “Vou com vocês dessa vez, pra não perderem muito tempo”, mas logo pensou melhor e redistribuiu as ordens: “Pensando bem, vou eu e tu, Miguel. Antonio, tu volta pra casa pra estudar pro teu exame!”

Pensava nos pobres lambaris que teriam de se entender com aquele tipo de gente que enxergava ao longe passando o arame e indo ao seu encontro. Então meu estômago revirou e me fez expurgar os vestígios do crime pelo qual já me encontrava, a essas alturas, até absolvido e fui de volta para casa e voltei às minhas contas incompletas. Sem poder me concentrar, olhava pela janela e pensava que finalmente um dia estaria longe dali, adulto, e até casado com essa minha nova colega, desde que ela nunca soubesse de todos os segredos que minha boca guardava.

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