A casa de Nina

Não, nunca nem sonhei com Nina, é o que respondo ao dono do armazém e só então ele carrega as duas doses de gim de hábito no meu copo.

De pé ao meu lado, com o pano de pratos sobre um dos ombros, olhamos quem passa sem muito interesse. Poderiam ser clientes, mas o seu armazém esvaziou-se quase até a precariedade nos últimos tempos, sem como enfrentar a concorrência. A não ser quem procure afogar as mágoas, quase ninguém mais aparece, só às vezes um moleque em busca de cebolas para um jantar apressado, a pedido de alguém, e ainda mais agora que começa a esfriar e as casinhas da praia encolhem-se para dentro das persianas e portas fechadas.

Quase diante de nós, a casa de Nina é igual a um caramujo que não ousa dar sinal de vida. Sem ruídos internos, o vento de abril atravessa as frestas das janelas e produz um canto triste, noturno e fantasmático. Por um instante, aquilo me lembra do modo que ela tinha de cantarolar sempre com a boca fechada, exprimindo pelos olhos e sobrancelhas os acentos das canções obscuras que nunca entendi.

“Dizem que a casa é assombrada, não dizem?”, indago enquanto ele já começava a se afastar. Ele então retorna parando dessa vez rente à mureta baixa que separa o armazém da rua, perpendicular a mim. “Dizem muita besteira por aí…” assevera. E logo continua, reticente: “Mas quem é que vai saber?…”

O vento sopra um pouco mais forte e traz consigo um tanto da areia seca que foi se depositando sobre o chão da ruela. Um pouco disso entra em meus olhos, forçando-me a fechá-los e, quando volto a abri-los, ele já se foi para o interior do armazém ou para qualquer outro lugar. Quase ao meu lado, um gato mia como se eu tivesse algum pescado para lhe alcançar, mas logo se afasta e justamente na direção da casa de Nina. Patinha por patinha, passa por baixo do cercadinho de arame e some detrás das paredes.

Sem que eu saiba o porquê, intuição talvez, entendo que ele está me indicando que devo segui-lo, que ele sabe um modo de entrar na casa sem arrombá-la e que me mostrará o melhor modo de fazê-lo se eu não me demorar muito.

Deixo o copo quase sem tocar e saio em seu encalço.

Em dada altura, nem o bichano posso mais enxergar porque uma neblina vinda do litoral começa a escurecer tudo, à exceção de uma janela nos fundos da casa da qual parece emanar uma luminosidade sutil. Levo a mão de encontro à veneziana e uma de suas faces escorrega para dentro, como se abrindo espaço para que eu entre finalmente. Apesar da escuridão, não sinto medo, apenas curiosidade em entender o que há ali que antes, em sua companhia, eu não tenha visto.

“Nina?”, pergunto. Não ouço nada. Mesmo o vento choroso que parece viver ali também permanece quieto, como se aguardasse também a minha atitude. “É você, Nina? Por que não aparece?”, volto a indagar e o mesmo silêncio prossegue na sua emissão nula, concreta, imóvel.

Com os dois pés na sua sala, sinto o vento agora silencioso roçar os pelos das pernas. Olho para baixo e noto que a areia amontoou-se também dentro de casa e se transformou numa espécie de tapete, abafando os passos de quem quer que ande ali dentro.

Mas havia alguém?

Se havia, não se mostrava a não ser nos rastros muito delicados, há tempos sulcados na areia, e que me levaram a segui-los até dar num pequeno aparador muito rústico, de madeira, onde ela guardava as chaves de casa numa concha de cerâmica e um vaso com flores. Ali elas permanecem envoltas pela mesma neblina que há do lado de fora. As chaves também. E um retrato muito antigo de Nina, linda e imensa como a própria casa, sorria em minha direção para me receber.

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