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Mariana Machado diante do mundo

Artigo publicado no Caderno DOC do jornal Zero Hora, 24/03/2023.

Junto aos demais nas prateleiras de uma livraria, numa tela da internet ou na coleção particular de alguém, um livro é sempre muito semelhante aos outros livros. Como se pode distinguir um de outro? Não é pela gramatura ou qualidade da celulose, certamente não, mas logo se intui que o peso de um livro reside mais na obra e no que dela é inerente do que no objeto e sua exterioridade. É por isso que todos conseguem atestar uma descompensação tanto no valor de venda quanto no valor intrínseco de objetos de aspecto tão semelhante. Semelhança apenas aparente, diga-se de passagem. Nem todo o livro é obra e quem o disse não fui eu, mas Jacques Derrida na sua Gramatologia. De fato, a diferença se dá à leitura e logo que se a inicie desencadeia-se um complexo processo analítico-comparativo.

É essa a balança que cada qual regula com sua experiência, preferências e disposição para a surpresa. Quando acontece, é como o tilintar das moedas de uma slot machine: já não se pode mais largar aquele livro único e inimitável.

Não foi por sorte que caiu em minhas mãos o novo livro da poeta gaúcha Mariana Machado. Eu a leio desde as suas primeiras publicações e sei que, portanto, este é um livro de uma carreira que em 2022 obteve com Cães e Astromélias (Mondrongo, 2021) o terceiro lugar no Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional. Agora, Mariana traz pela mesma editora um volume generoso de 250 páginas de sua poesia, com a publicação de Entre Mandalas, Espadas e uma Escada Caracol. Com o livro, o universo poético de Mariana ao mesmo tempo se arroja e densifica. Certamente, não pesaria mal em nenhuma boa livraria ou na prateleira de boa poesia de uma biblioteca.

Abertas as portas do universo expandindo do livro de Mariana, logo se parte ao encontro de uma recriação em versos do épico Sidarta, de Herman Hesse. Os 47 cantos do poema dão conta da busca por esclarecimento que o buda empreendeu a sós em sua bem conhecida jornada. Aqui, logo se pode ver que também Mariana empreende uma jornada em que se confronta consigo mesma e com o mundo numa tensão poética rara de se ver. E o esclarecimento de Sidarta, o que “quisera dar-se apaixonadamente a tudo”, e que cumpriu o destino por ele mesmo forjado e “deixou tudo para trás e foi-se embora”, não é senão a aprendizagem dos que se desapegam, nesse processo de decantação pelo qual também se transformam os poetas em poetas.

Ao recuperar os ecos antepassados das mulheres do Rio Grande do Sul ou ao combater e desvendar a densidade do mundo presente, Mariana combina sua voz mais coloquial com os recursos de uma excelente leitora de poesia. Isso se confirma ao conhecerem-se as traduções que ela também registra no livro e vão de Goethe a Jacques Prévert, alargando as margens do seu próprio universo ao universo de outros tantos poetas.

No poema A Lavadeira, a poeta rende a sua escuta poética às mulheres:

Quebrando a geada, pé por pé, no mato,
alta a trouxa de roupas – feito Atlas –,
pulando arames, chega à beira d’água
pra mergulhar os dedos, vê-los mortos
e desfazer na fibra seus caroços.

Sim, há mais escuta e um olhar acurado para a vida que um discurso em seus poemas. É uma escuta de memória e da trama dos motivos sutis da vida feminina, suas restrições históricas, desejos e ambições. Mas a poesia se dá apesar disso e quando se encontra com o que há de sublime no mínimo, vê-se também que a poeta nunca prescinde de sua integridade e dedica aos versos, além de técnica vigorosa e têmpera mental, a amorosidade áspera e táctil como é própria da dicção do sul. Livre do embaraço dialetal, a poesia de Mariana rebrilha de sua própria luz.

Mas é poesia que também se deixa notar no mais íntimo processo de maternidade e no encontro de uma plenitude inesperada entre o trivial e o religioso. Com um senso crítico por vezes cáustico, encara a própria rotina e a literatura desse tempo com o mesmo desembaraço com que se depara com as questões metafísicas da fé e de Deus. Seja com a leveza sintética do hai kai ou valendo-se da tradição das formas fixas, ela expande seu domínio do ofício sem que se encontre sequer uma repetição de motivos. Além de uma raridade, uma amostra de que este é um universo irrefreável. Vivendo em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, para nossa sorte o seu universo agora se torna acessível na forma de um livro que também é obra. Talvez por essa combinação pese bastante também na sua estante de livros.

Na floresta, no amanhecer

𝘈 𝘵𝘩𝘰𝘶𝘨𝘩𝘵 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘪𝘦𝘴 𝘢 𝘶𝘯𝘪𝘷𝘦𝘳𝘴𝘦
𝘈 𝘴𝘦𝘦𝘥 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘪𝘦𝘴 𝘢 𝘧𝘪𝘦𝘭𝘥 𝘰𝘧 𝘨𝘳𝘢𝘪𝘯
𝘓𝘰𝘷𝘦 𝘭𝘪𝘦𝘴 𝘪𝘯 𝘵𝘩𝘦 𝘢𝘳𝘮𝘴 𝘰𝘧 𝘤𝘩𝘢𝘯𝘨𝘦
𝘈𝘴 𝘢 𝘫𝘰𝘺 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘪𝘦𝘴 𝘢 𝘱𝘢𝘪𝘯
𝘈𝘯𝘥 𝘯𝘰 𝘰𝘯𝘦 𝘬𝘯𝘰𝘸𝘴
𝘏𝘰𝘸 𝘸𝘪𝘭𝘥 𝘵𝘩𝘦 𝘸𝘪𝘯𝘥 𝘣𝘭𝘰𝘸𝘴

𝘔𝘰𝘭𝘭𝘺 𝘋𝘳𝘢𝘬𝘦, 𝘏𝘰𝘸 𝘞𝘪𝘭𝘥 𝘛𝘩𝘦 𝘞𝘪𝘯𝘥 𝘉𝘭𝘰𝘸𝘴

1

Quando o vento se fechou em minha boca
vi minhas palavras dormindo no amanhecer.

2

Fora, uma longa estrada derrubada em minhas costas,
um lago tão escuro e denso e que não me devolviam nada.

3

Eu hoje esvaziei meus sonhos e finalmente agora
posso ver outras palavras acordando pela primeira vez.

4

Mais cedo expulsei as memórias pelas janelas de dentro.
Preciso de distância e só mais tarde ver o que irá acontecer.

5

Eu preciso ficar longe um pouco
e ver o que isso dirá em mim.

6

E não lamentar mais nada.
E deitar os velhos sonhos na estrada.

II

1

Agora, coisas soltas adormecem ao lado do sol
e nem uma árvore sorri. Tão diferente…

2

Um elemento novo, de assombro,
me apruma com um som de catástrofe.

3

Mas ninguém virá em minha busca
e o que eu sei é inútil, não me serve de nada.

4

Num momento solitário, como o dos frutos,
espero ter o que preciso.

5

Dessa vez não direi nada às memórias
e, em recompensa, elas nada me dirão.

6

O universo de antes se adiantará outra vez
como a mesma dentada do cão.

7

Mas eu já disse que nada me ataca. Só tenho futuro.
O passado resulta de uma conta errada.

Porto Alegre, 8

Porque nunca me disseste, tive eu mesmo
de descobrir: não há nada dentro de ti
e o que te anima somos nós, a carne
em que te aferras, memórias que roubas
e o passado que nos jogas aos pés
a cada instante, vencidas as promessas
fúteis, de tua boca, tão mal cumpridas…

Não tentes me enganar. Eu sei que
a minha melhor figura não guardaste
nem conheceste. E se eu quero te contar,
nunca queres saber, como se eu fosse
um fruto estranho, só espinhos,
em quem não ousarias tocar.

Mas o que eu sou não importa.
Quem importa para ti? Com um sorriso
intransigente, abres tua imensa boca
e nos devoras por inteiro. Para ti, somos carne,
os músculos de quem te abriu as veias.
Mas também não te importa quem fôramos.
E quem te abriu os olhos não viu nada,
só um espelho às avessas
nos confundindo em espírito e vida,
em vida e espírito e, afinal, em morte.

Bastava entender tua voz
e inércia. Bastava mais aceitar
que compreender. Bastava
que te amasse desse amor servil,
mas aí encontramos um problema:
não dou para isso. Em troca,
redobras tuas punições. Não permites
que eu descanse. Adias o outono
e decretas um tempo de paz fantasiosa.
Na verdade, o tempo pouco te
deteriora, se comparado a nós.

Nos domingos pela manhã, encontro
a mesma velha mulher passando a vassoura
no piso. A noite não a interessa, só
mesmo aquele momento da aurora
em que as esperanças perduram. Ela passa
a vassoura outra vez e só então se descortina o dia.

Olhando em minha direção, vejo
que não reconhece quem sou (eu também não…).
Aqui mudei e fui mudado, mas não guardo
nada. Dei tudo o que sou. Que me impeça
o verão interminável, eu não aceito.
De ti, nada, Porto Alegre… De qualquer modo,
não vais te saciar comigo. Um dia,
se me procures, desço à porta, toco teu ombro,
e eu mesmo digo que não estou.

Alquímico

Sequer um caminho
entre os espelhos
parece possível.

Só essa imagem antiga
que se persegue
como a uma sina.

Numa pintura, com uma pedra
foi tapada a única porta
para esta rua

e só por isso
o que eu entendo
é equivocado.

Mas tantas cidades couberam
eu meus sonhos,
tantas vidas felizes…

O que eu não tive
é meu
embora o recuse.

O que passa não me passa
e desdenho o bem e o mal
em minha desgraça.

Meu, o sonho errado.
Uma alquimia inútil
sem resultado.

Ei-la: a literatura artificial

Revista Parêntese, ed. 163

Os primeiros meses de 2023 parecem ter abreviado muito a distância entre as fronteiras da normalidade literária e do apocalipse autoral antevisto ainda na década de 60 nos textos clássicos de Michel Foucault (O que é um autor, 1968) e Roland Barthes (A morte do autor, 1967). Mas não provém de um estudioso ou intelectual público impactante o estreitamento em questão; de outro modo, veio “ao natural”, como consequência do incremento galopante do uso dos recursos de inteligência artificial no processo de criação literária.

Muito embora na literatura os estudos das interações homem-máquina venham sendo estudados há algum tempo (o estudo de John Searle sobre “o quarto chinês” é de 1980), são as notícias do mundo geek, por outro lado, que têm revelado a dimensão da colisão (ou confluência) em curso. 

Apenas nos últimos meses, com a disseminação viral dos aplicativos portáteis do chatbot desenvolvido pela OpenAI, o popularíssimo ChatGPT, parece mesmo que se conseguiu finalmente sentir o tamanho do estrago. Sim, verdade que a força de expressão traz embutido certo juízo de valor, mas é disso mesmo que se trata, ou como se poderia reagir à disseminação de manchetes que alardeiam a ferramenta como o “ajudante dos escritores”, responsável pela “criação de mais de 200 títulos”, “aceleração criativa” e co-autora em pelo menos meia dúzia de artigos destinados à literatura científica? Mas em que consiste, afinal, o “estrago” e o que se pode saber a seu respeito? É o que desejamos saber e passaremos imediatamente a palavra ao próprio ChatGPT.

* * *

[Pergunta] O ChatGPT pode ser considerado autor de um texto? [Pergunta]

[Resposta] Como modelo de linguagem, o ChatGPT é uma ferramenta criada para gerar textos baseados em padrões de linguagem identificados em grandes conjuntos de dados. Portanto, embora possa produzir textos que parecem ser escritos por um autor humano, o ChatGPT não é um autor no sentido tradicional da palavra.

O ChatGPT não tem uma identidade pessoal ou criativa, nem é capaz de ter suas próprias ideias, opiniões ou perspectivas. Em vez disso, ele é programado para gerar texto com base em padrões de linguagem encontrados em um grande conjunto de dados de treinamento, usando algoritmos matemáticos para gerar continuamente novas sequências de palavras que se encaixam nesses padrões.

Portanto, embora o ChatGPT possa ser uma ferramenta útil para gerar texto, é importante lembrar que o texto que ele produz é gerado a partir de um conjunto preexistente de dados e não reflete as ideias ou opiniões de um autor humano. [Resposta]

* * *

Em que pese qualquer precaução ou preconceito, deve-se admitir a competência do “réu” em defender-se. É apenas uma suspeita, mas é muito difícil imaginar que os próprios Roland Barthes e Michel Foucault discordariam dessa formulação. É praticamente o mesmo, mas mais perfeito se ele dissesse como Barthes em A morte do autor: “a escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem se perder toda identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve”.

Explica-se isso de uma forma muito simples: é certo que no repertório prévio do chatbot incluem-se as obras de Barthes, Foucault, Bakhtin e mais uma infinidade de outras teorias e proposições argumentativas. 

Se algo é certo sobre a inteligência artificial, é que sua capacidade de aprendizagem não tem o mesmo fastio e enfaro da concorrência humana. Desse modo, ela não apenas devora conhecimento como aprende a fazer correlações lógicas com eficiência e velocidade assombrosas. Talvez se possa apontar apenas que, ao contrário das pessoas, sua limitação maior seja mais moral do que cognitiva. Se o ChatGPT atua tomando em conta o idealismo ou o consequencialismo é difícil saber, mais provável que ele recombine as instruções visando preservar sua superveniência. Curiosamente, parece proceder de um autor de ficção científica e não de um filósofo grego o cerne de sua moralidade. Pois as “leis” de Asimov se aplicam perfeitamente: este réu não produz provas contra si mesmo.

Mas essas questões éticas que se esboroam numa complexidade técnica quase inabordável pelo público leigo, se estão sendo consumidas como “brinquedos virtuais”, por outro lado estão na raiz (raiz digital) de uma nova conformação tecnológica que vem há muito se desenvolvendo para sustentar novos meios de produção e subsistência da humanidade. Não são poucos os dilemas econômicos, culturais, sociais, bioéticos e geopolíticos aí envolvidos, e alguns pensadores contemporâneos vêm procurando colaborar no esclarecimento dessas questões, mas mesmo o historiador israelense Yuval Harari, que se dedicou com seu livro Homo Deus, de 2015, a alertar dos riscos da criação de “uma geração de pessoas inúteis”, parece agora encantado com as possibilidades estéticas dos aparatos. Recentemente, ele divulgou em suas redes sociais um filme produzido inteiramente por estes recursos para explicar nada menos que a “vida”. Faz parte dos encantos da inteligência artificial, como se vê, fascinar até mesmo seus maiores críticos. É um filme que vem se reprisando na história esse.

Pode ser mesmo por um desejo e curiosidade impossíveis de se atender; mas que seria interessante saber de quem afirmou que “não importa quem fala” ver suas ideias recombinadas num aplicativo de celular, isso seria. Apesar de que a proposição tenha ganho relevância por ter partido justamente de Foucault e não de um manifesto apócrifo, a dissolução autoral presente encontrou na tecnologia quem a execute, consuma e venere. Se logo, ao invés de se consultar os livros de Foucault, Barthes ou quem seja, passar-se a apenas a indagar-se ao oráculo tecnológico a explicação de tudo, bem, então os educadores precisam estar prontos para perder o emprego. Os educadores e uma série de outros profissionais cuja atividade será doravante realizada com muito mais eficácia por um remoto algoritmo funcionando num ainda mais remoto mainframe.

Em objeções estéticas, embora possíveis e cabíveis, consistem o maior imbróglio dessa combinação. Com a dificuldade de distinção do texto humano e do texto técnico (perfeitamente articulado e virgulado), é preciso desde já abrir mão da verificação de originalidade. Uma recombinação mínima é suficiente para embaralhar qualquer ferramenta da busca. E os textos literários produzidos são ricos em figuras de linguagem, às vezes mais do que um bom número de pretendentes à autoria. Não comparando, a inteligência artificial pode receber instruções muito precisas, como as de uma prescrição, e desdobrar parágrafos e mais parágrafos a ponto de obter um livro de 200 páginas em menos de 48 horas. Em vista dessa “concorrência”, muitos autores preferem assumir a condição de coautoria.

Sem ter em mente as malhas da atribuição nem os liames biográficos que amarram ainda hoje bem firmes autoria e obra, é um pouco impossível saber o que mais acontecerá no mundo das ideias e no mundo literário a partir de agora. Pensando-se na possibilidade do espólio inominado e direitos autorais conexos e contratos editoriais indevassáveis, é mesmo de tomar as cautelas tomesianas: ver para crer. Apostar que o leitor formado justamente por essa nova técnica saberá safar-se e manter intacta a autonomia de sua vontade intelectual é de um risco imponderável. O mesmo vale para juízos estéticos que estão sendo lapidados com a ajuda da gameficação educacional. No entanto, justamente não saber e manter a reserva dialética da dúvida parece um meio caminho possível entre ser absorvido ou se afastar completamente, o que também já não é mais possível a ninguém.


O trapézio

Uma casa nunca é reencontrada da mesma forma. Pela manhã, primeiro o sol ilumina cada reentrância do telhado, move sombras sobre as janelas entreabertas, deposita o quanto pode seu amarelado nas madeiras dos móveis e dos ladrilhos, rebrilhando. A casa se acorda e se lá dentro alguém vive foi acordado pelos sons dos bem-te-vis que vazam para dentro e deste vento que em algum momento despercebido passou também a soprar como se desejasse ventilá-la do interminável sono noturno. Mas se ela sobrevive sem quem a viva, ela mesma parece assumir uma forma paquidérmica, trapezoidal, como um imenso animal dorminhoco que ao abano do sol ensaia erguer as pestanas e então vai pouco a pouco voltando ao estado letárgico do sono profundo, mais adequado para onde não há ninguém. Para aparentemente onde não há ninguém.

Ao voltar para casa, não se pode encontrar o que os outros veem, só o que nós mesmos vemos. Ali estão os chapéus desde a última vez que foram pendurados ao cabide, após o último verão, antes da última chuva que tocou o solo e pintou as folhas do jasmineiro com pintas de suçuarana, e depois inundou tudo levando o que vivia ao subterrâneo.

A casa nunca sabe de quem se trata cada qual que se assoma aos degraus e à sua entrada. É o filho mais velho, os inúmeros filhos do meio, e o último deles. Qual foi que guardou alguma coisa na última visita? Quem roubou retratos com a esperança de manter vivas as mais apagadiças memórias? Também não sabemos. Em seu testemunho silencioso, o que ela diz nem todos entendem. Ela, que viu uma a uma as tentativas de partida e os passos de quem nunca voltou, é indiferentemente majestosa e parece guardar em segredo a ideia de que todos sejam como suas paredes e que dali de dentro ninguém nunca sai completamente.

Mas como se tivesse vida própria, com olhos às janelas ela expulsa o que não lhe pertence e se purifica do alheio. Disso é que se dá a sua vida. Ela prefere manter-se de saudade, só, e nada mais, do que de quem a depenaria em pedaços. E espera quieta, como sempre, e por que a encontrem num passeio sem pressa, numa visita ao acaso. Entre os ramos das árvores mais altas, a fisionomia hercúlea de quem suportaria tudo e voltaria a amanhecer ainda que as cidades sejam cada vez menos gentis, que não a encontrem menos severa do que o esperado e que guarda ainda em seus armários doces de um lado, venenos do outro.

Ao adentrá-la depois de tanto tempo, quem ela pode reconhecer? Quem a reconheceria? Não importa… Na noite escura, quando mesmo a lua desiste de dar as caras, ela vai se confundindo pouco a pouco ao fundo de uma moldura que escapa ao tempo. E desaparece.

II

Aqui nasceste
sem que alguém
te dissesse
bem vinda ao mundo.
E te apropriaste
do tutano das paredes,
faminta. A sede
que havias saciado
no azul do céu
cegou-te de tudo o mais:
deveres, pesares
e de quem te habitava.
Do nada me flagro
pensando: o que dirias
ao notar que não vicejo?
Eu não sei… Apenas
vejo as paredes ruindo
e, tu, nossa história.

A porta, 2

A mesma porta ainda espera
a passagem de quem já foi.

Do tempo, a madeira amoleceu.
Mas quem ela espera? Ainda eu?

Duvido… A cada vez que a encontro,
eu sou um novo. O mais recente

a descobri-la é esse mesmo
ou o outro, o que morreu?

A porta e, do outro lado, quem?
Se nunca alguém voltou, ninguém…

O cão

Da vida do cão que passa
não há muito para saber.

Há quanto ele não come? Não sei.
Onde dormiu pela última vez? Não sei.

E a quem eu perguntaria isso,
o não sabido por ninguém?

Não sei. Não sei. Não sei.

A luz desmaia. No cão, é âmbar.
O uivo derreteu ainda alvorada.

E agora está tudo lido.
E visto. E esquecido.

Mas o que não houve nunca,
com quem tirarei a limpo?

Não sei. Não sei. Não sei.

O cão passou hoje mais cedo.
Ainda não havia nada. Ninguém.

A nova biografia de Fernando Pessoa

Revista Parêntese, ed. 160

Bem no final de 2022, num dezembro tomado de assalto pelo noticiário político e pela turbulenta sucessão presidencial brasileira, foi quando finalmente chegou às livrarias nacionais a esperada biografia de Fernando Pessoa que o jornalista Richard Zenith levou mais de uma década para concluir desde que começou a trabalhar no espólio do poeta. O resultado não podia ser menor do que as mais de mil páginas que a Companhia das Letras publicou aqui numa edição vertida do inglês pelo tradutor Pedro Maia Soares. Em maio do mesmo ano, uma versão pela Quetzal foi publicada em Portugal e a versão original em inglês, Pessoa: a biography, saiu em julho de 2021 nos EUA e na Inglaterra, pela Liveright.

Apesar de que a obra pessoana tenha sido vastissimamente estudada desde a segunda metade do séc. XX, inclusive por estudiosos brasileiros, o trabalho de Zenith é efetivamente considerado a segunda grande biografia do poeta notabilizado pela obra monumental e pela forma de organizar o seu trabalho em heterônimos. Na edição portuguesa, o livro, aliás, é iniciado por uma dramatis personae pessoana na qual Zenith “biografa” parte dos heterônimos criados pelo poeta (na brasileira, foi transformada em anexo). Contudo sabe-se que o número de alteregos de Pessoa continua sendo impreciso, dado que para muitos deles mal chegou a esboçar um texto, apenas o registro de um nome, mas é certo que passam de uma centena e surgiram em seu universo mental precocemente, antes dos seis anos de idade. Antes da publicação de Zenith, a mais extensa biografia publicada de Pessoa continuava sendo a realizada pelo seu contemporâneo João Gaspar Simões, em 1950, Vida e obra de Fernando Pessoa: história duma geração

Embora no Brasil a sua obra tenha obtido projeção e leitores a partir de 1960, quando a Nova Aguilar publicou sua Obra poética organizada e anotada pela pesquisadora Maria Aliete Galhoz, é certo que o nome de Pessoa transitava de contrabando entre os modernistas brasileiros de viagem à Europa, muito provavelmente por meio das edições de Orpheu e de Presença, revistas nas quais Pessoa fez desfilar seus principais heterônimos entre os demais modernistas portugueses. Contatos efetivos com os brasileiros não são muito conhecidos, além do fato dele mesmo ter emigrado o seu heterônimo Ricardo Reis para o Brasil, em 1919, e cuja data de falecimento imprecisa serviu de mote para a escrita de O ano da morte de Ricardo Reis, romance em que José Saramago resolve por situá-la em torno de 1936, na iminência do nazi-fascismo europeu. Mas, para que se situe melhor esse reconhecimento, é suficiente o relato do quase-encontro dele com a poeta brasileira Cecília Meireles, em 1934. Cecília era casada com um antigo conhecido de Pessoa, o português Fernando Correia Dias, e marcaram um encontro de gentilezas a que ele acabou falhando. Para compensar a falta injustificada, mais tarde deixou no hotel onde a brasileira se hospedava uma edição autografada de Mensagem, seu único livro publicado em vida. Outra referência aos brasileiros na biografia é uma menção a Ronald de Carvalho, poeta que se integrou bastante ao grupo reunido na Orpheu, especialmente Mário de Sá-Carneiro, e uma declaração de Carlos Drummond de Andrade no ano de centenário de nascimento de Pessoa, em 1985, na qual afirma que Pessoa é um poeta “frio, apenas toca nosso lado intelectual”, e diz preferir Camões a ele.

Embora sua obra fosse muito conhecida dos brasileiros e contasse com diversas publicações segmentadas, a partir de 1985 entrou em domínio público e ocorreu por aqui uma verdadeira explosão pessoana. No entanto, logo uma alteração na legislação da União Europeia sobre direitos autorais adiou o processo, que foi retomado em 1993, com o surgimento de inúmeras edições nuas (sem notas ou comentários) de sua poesia e prosa conhecidas. Por longos anos, a poesia de Pessoa e seus heterônimos foi das mais vendidas no Brasil, e seu(s) nome(s), tão ou mais populares que muitos poetas brasileiros. Na mesma medida, aqui e em muitos lugares do mundo foram sendo criados núcleos de estudo de sua obra em diversas universidades, disseminando para além do mundo lusófono os “estudos pessoanos”, confirmando-se já o interesse universal em sua literatura.

De imediato, o que se pode garantir em relação à biografia de Zenith é que ela não se faz interessante apenas por um maior conhecimento de sua vida, mas porque Zenith é um grande conhecedor de sua poética. Uma das grandes felicidades do seu trabalho consiste em nunca despersonalizar o poeta entre seus heterônimos. Zenith busca sobretudo garantir a integridade intelectual do poeta e jogar luzes em sua direção valendo-se inclusive de elementos autobiográficos que Pessoa teria lançado em sua produção literária. Pois então se pode saber que o poeta da Autopsicografia, o assumido “fingidor”, muitas e muitas vezes apresentou, mesmo que de forma distorcida, elementos de sua vida mais corriqueira na sua poesia. Se ele obteve uma dicção sublime em função de elementos às vezes frugais, passagens e situações que de fato viveu ou presenciou, certo que isso mais atesta a sua genialidade criativa.

O premiado trabalho de Zenith (foi finalista do Pulitzer em 2022), no entanto, não vem passando imune a críticas. Por investigar com certa exaustão indícios e questões envolvendo a sexualidade do poeta, tem recebido críticas inclusive da parente mais próxima de Pessoa que é ainda viva. Aos 96 anos de idade, a também escritora e poeta Manuela Nogueira leu e classificou como fantasiosas algumas das dúvidas suscitadas na biografia. Também confirma que a imagem de um Pessoa “macambúzio”, de acordo com ela, não procede e afirma que o tio, embora muito desorganizado, produzia num ritmo que não desejava interromper em razão de nenhuma relação interpessoal, mas que era bem humorado e brincalhão.

A imagem de um poeta sombrio é, aliás, também muito questionada por Zenith. Muito presentes na biografia de João Gaspar Simões, de 1950, que elevou enormemente o interesse em torno do poeta com o seu trabalho biográfico, as características psicológicas (e psicopatológicas) do poeta são centrais na busca de Simões, mas notoriamente permeadas por um excessivo psicologismo desde os estudos do também contemporâneo Adolfo Casais Monteiro. Em muitas situações, Zenith explora outras facetas e informações a respeito do poeta de que certamente Simões não dispunha em 1950. O que se vislumbra é um indivíduo interessado na vida política do seu país e do mundo e que, com maior ou menor sorte, procurou manter boas relações e um círculo de amigos composto pela intelectualidade da época, além de ter também boas relações familiares. Com isso esclarecido, o leitor tem garantido poder voltar sossegado à busca por compreender o sentido mais profundo daquilo que Pessoa guardou a sete chaves durante a vida na sua famosa arca: a obra literária. E, ao passo de sua leitura, a tarefa vai se configurando como uma grande jornada de reconhecimento na qual vida e obra têm, por uma característica sui generis e pessoana, praticamente o mesmo peso e relevância.

A jornada proposta por Zenith, cabe dizer, é muito facilitada pela sua escrita leve e jornalística. Há uma visada simpática sobre o poeta, que se alfabetizou sozinho aos quatro anos de idade, num claro indicativo de altas habilidades. Quando se sabe, por exemplo, da sua dificuldade em manter o foco na conclusão dos inumeráveis projetos iniciados que pipocam em sua mente, ele diz não saber “evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões”, seria simples associá-lo ao que hoje se conhece como o transtorno de déficit de atenção. Não é por falta de características psíquicas, como se vê, que se dificulta a tarefa de compreendê-lo, mas pela sua abundância. E quando o biógrafo destina um capítulo inteiro do seu livro para demonstrar o esforço espiritual e intelectual de Pessoa em atingir um alto grau de alta exigência estética e psíquica, o que acaba muitas vezes sacrificando a sua estima e deprimindo-o, acaba por conferir ao poeta o que às vezes perdemos ao conhecê-lo: a dimensão de gozo e sofrimento de seu espírito criativo.

Qualquer leitor de Pessoa, mesmo o mais preliminar, logo ao defrontar-se com sua poesia percebe estar diante de um precipício intelectual. É uma experiência muito dissonante de qualquer outra poesia que se possa conhecer. De acordo com Leyla Perrone, uma de suas principais estudiosas no Brasil, a obra de Pessoa impõe um antecedente que todos os poetas de língua portuguesa devem enfrentar na perspectiva de continuar a usar a mesma língua. Depois dele, o sentimentalismo e a facilidade retórica “aparecem como erros imperdoáveis”, e isso é algo que se intui e compreende mesmo à sua leitura direta. O que a biografia de Zenith tem a oferecer para compreensão de Pessoa, no caso, é a confirmação de que esse universo – o mundo “pessoano” – foi, incrivelmente, tarefa de um homem só. E que, a despeito de viver os seus últimos anos de vida num pequeno apartamento da Coelho da Rocha, em Lisboa, ao morrer, de acordo com Miguel Torga, “Portugal viu passar num caixão sem ao menos perguntar quem era”. Nada disso conseguiu impedi-lo de ter engendrado uma das obras poéticas mais impressionantes e complexas de todo o mundo no séc. XX.


As pedras pretas da praia

Nina se foi ontem. Sob a porta da casa fechada, posso distinguir a tranca que esteve nestes dias mantendo sempre uma das folhas da porta dupla entreaberta. A casa mesmo como uma concha aberta pela força do mar de encontro às pedras pretas da praia.

Olhando pelas poucas frestas, posso ver a areia que eu trouxe ali para dentro e ali ficou, acomodando-se no piso machucado, nas madeiras que o tempo e a maresia sulcam e enrugam como a pele de dentro do lugar, porque a casa de Nina é um corpo também. Um corpo com a única diferença de ter um endereço e, só às vezes, uma alma ocupando-o com as músicas dos seus discos, o bater das suas panelas, o tilintar das suas louças e a sua voz rouca. A casa de Nina é o seu corpo que permanece depois que ela se vai. Um espectro de tijolos e tábuas de quem sempre se vai sem nunca avisar a ninguém.

Eu disse que ela cantarolava em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 o tempo inteiro? Cantarolava também e especialmente sempre que não queria me responder qualquer coisa. Eu sabia que perguntar o que quer que fosse de nada adiantava mesmo e a verdade é que quase tudo a incomodava. Mas ela cantava e sorria eu acho que para não me chatear. Quem não gosta de ser chateado também não gosta de chatear aos demais.

Ao alto, agora o voo das fragatas ensaia ir novamente de encontro à praia, mas seus pescados e mariscos também partiram – igual ao que ela fez: sem deixar recados com ninguém. Afora as lembranças, vestígio nem um.

Decidido a não pronunciar mais o seu nome até que ela voltasse, no próximo verão, um instante só pensei em buscar com o vendedor do armazém em frente por notícias suas. Mas e se ele também a procurasse? Melhor não. Obviamente desisti sem me aproximar, mas nos dias seguintes me procure sentado ali, bebendo gim duplo até a hora de escurecer.

Eu também não queria saber nem aonde ela teria ido, ao encontro de que vida, se uma vida com rotina ou o quê, mas isso não parecia possível, eu nunca soube o que ela fazia longe dali. E pensava que só o que se admitia tratando-se dela é que estivesse enchendo o ar com seus pequenos risos e cantos silenciosos.

Também se a sua vida não fosse exatamente assim noutro lugar, melhor seria não saber de nada. Melhor guardar só a sua imagem, nem a sua imagem, seu vulto assomando à noite alta e morna de verão o calor tépido que trazia sempre consigo, como uma túnica, e a voz em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 cantando-me “já chega agora/o tempo vai passar, se acalme/só não vamos deixar que ele passe em vão…”