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Da parainclusão a uma sociedade para todos

ruina

Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico,
foi encontrado na ruína de uma escola em construção.

Caetano Veloso – Fora da Ordem

Há muito tempo que a principal narrativa da sociedade brasileira vem sendo a escrita do seu próprio descalabro, da sua própria desgraça. Acima de tudo, é preciso muita coragem e muito pouca vergonha em assumir isso assim tão às claras. Coragem porque dá sinais de que parte da sociedade está disposta a, mais do que elaborar um crítica dos problemas que a exclusão social impõe, empenhar-se num enfrentamento real da situação – e pouca vergonha porque isso significa deixar claro muito cedo para os novos cidadãos que seus direitos fundamentais, constitucionais, civis, de proteção e etc não fazem muito sentido, porque metade deles não irá completar sequer a metade do ensino médio e suas perspectivas de vida são tão incertas quanto o futuro das crises econômicas ou as medidas para contorná-las.

Mas a sociedade brasileira não chegou ao estado em que chegou por acaso e também não se pode dizer que por falta de aviso. Talvez o problema seja simplesmente que o aviso tenha sido endereçado às pessoas erradas. Pessoas que não possuíam maior interesse na sociedade a não ser em viver o quanto mais possível longe dela, imunes às desgraças dos quais seus direitos, por sua vez, as podem proteger. Através desse exemplo, a classe média, principalmente, migrou seus interesses e sonhos em função do crescente poder de consumo resultado da estabilidade econômica, oferecido como símbolo de riqueza, pela facilidade e “felicidade” de possuir e mostrar algum status social. O raciocínio parece simples, como o de crianças que competem pela atenção de um adulto, mas é no Brasil que foram criadas noções como a de que quem gosta de pobreza é intelectual ou a de que a melhor saída para o país seria o aeroporto do Galeão. Nessa mesma linha de raciocínio, esse seria o país que “não tem jeito”, e conversa encerrada. Nesse caso, onde foi parar o “jeitinho” brasileiro? Pode haver um jeitinho para o que não tem mais jeito? Esse tipo de pensamento poderia traduzir o sentimento da própria sociedade, em alguma medida? Haveriam reflexos concretos desse modo de pensar ramificando-se na estrutura social e política do país? Há culpados a apontar nisso? Existe aqui algo mais do que aquela pouca vergonha ou daquela coragem iniciais?

Dentre as hipóteses a considerar, uma é a de que as pessoas criam os seus próprios atalhos sociais. Assim, em busca de identificação com o modo de vida dominante, crianças e adolescentes se perguntam desde muito cedo sobre o sentido de aprender, de ter uma educação, do que significa viver com dignidade enquanto tudo o que querem, a essa altura da vida, custa “duzentas pratas”. Na medida em que a sociedade lhes oferece o consumo como forma de expressão e conduta, a educação é um subproduto que se decompõe sob os olhos de todos e que cada vez lhes interessa menos. Essa é a hipótese do impeachment social. E esse impedimento é construído por uma sociedade que recusa a perceber-se na sua própria dimensão, escapando à responsabilidade de enfrentar de frente os problemas, preferindo tratar das feridas sociais – como o vício em drogas, o desemprego e a falência ética – como problemas sem solução e que não lhes pertencem.

A criação de uma parasociedade, de uma sociedade dos excluídos, está funcionando como o tiro de misericórdia do apartheid social: a oficialização da segregação. Assim, depositados entre os carentes, é possível aos que não carecem de nada oferecer migalhas a estes que, de bicos abertos pela extrema necessidade, agradecem pela piedade sedimentando a instititucionalização da sua condição. Essa construção, mesmo que pareça natural, também tem uma história oculta. É a história do povo negro e das crianças. Das pessoas com deficiência e dos subempregados. Juntos, são a Geni da sociedade, vítimas e algozes ao mesmo tempo, pintando as ruas das metrópoles com sua própria escrita, escapando desse descalabro, dessa narrativa que lhes é destinada através da sua coragem e da sua “pouca vergonha”, evidenciando em definitivo que as oportunidades só são desperdiçadas por aqueles que delas não necessitam.

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Remix3: Com Patricia Almeida e Cassuça Benevides

Na jaula com o Zaqueu

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Zaqueu, que hospedou Jesus.

Também publicado em:
http://saci.org.br/index.php?modulo=akemi&parametro=25596

Um exercício bem infantil de julgamento, acho que minha mãe ou algum de meus irmãos me ensinou há muito tempo atrás, é o tipo da coisa que dá um nó na garganta e nos faz voltar atrás de uma decisão. O exercício é simples e todo mundo já fez alguma vez na vida (embora eu acredite que uma vez seja pouco demais): consiste em tentar colocar-se no lugar do outro. O outro, o outro ser humano, qualquer um. Não se trata do próximo, a quem devemos estender nossa compreensão e legar nossa culpa. Estou falando do outro. O outro que somos nós mesmos pela visão do outro.

Na vida há outros e outros. Uns e outros. Nós e os outros. Tirando nossa família e pessoas muito queridas, tudo o que acontece com os outros é como se acontecesse com alguém que mora no outro extremo do diâmetro terrestre. É alguém que nos interessa por curiosidade, talvez, e só. Não nos atinge, mas no fundo, no fundo, nos aflige porque, querendo ou não, somos uma família apenas sobre o globo, embora nossa cor seja diferente, nossas contas a pagar, nossos deveres e, sendo realistas, inclusive nossos direitos. Se comemos bem ou passamos fome. Se estudamos ou mendigamos. Se compreendemos o mundo ou recusa-mô-lo. Se estamos livres ou presos.

Talvez por influência da propaganda excessiva que consumimos, substituímos essa capacidade de colocarmo-nos no lugar do outro pela fantasia de estarmos na pele de sujeitos indefectíveis. Assim, nos sentimos melhor imaginando-nos dirigindo um carro conversível do que esmolando no sinal. Sentimos que podemos ser felizes se fantasiarmos a vida sinestésica de alguém que sublima por completo nossa condição humana num spot televisivo, num clipe, numa imagem lírica, numa fotografia de um lugar em que ninguém nunca esteve. Por isso, não perderemos o sono se imaginamos estar na cama com a Madonna, como sugere fantasiar o espetáculo que a cantora produziu e vendeu mundo afora nos últimos anos. Mas iremos perdê-lo se imaginarmos estar na jaula com o Zaqueu.

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Quem tem medo do Zaqueu?

O Zaqueu é um jovem de 25 anos que tem vivido numa jaula. A jaula foi improvisada nos fundos da casa pela sua família. O Zaqueu tem algum tipo de deficiência intelectual e a sua família é bastante pobre. Segundo a cobertura jornalística, o Zaqueu tem um comportamento violento. E isso “por culpa” da sua deficiência. Talvez, para o Zaqueu, seja difícil compreender a vida entre quatro paredes, sem janelas. Mas aqui já estou eu me colocando na pele do Zaqueu. Esqueci que deveria estar imaginando-me na cama com a Madonna ou numa estrada com penhascos dirigindo um carro conversível. Ao contrário disso, estou na jaula com o Zaqueu. Por que insisto em meter-me em frias? É que o Zaqueu precisa ser avisado que todos somos uma família e estamos presos com ele naquela jaula, dentro ou fora dela.

* Leia esta notícia para conhecer um pouco da história do Zaqueu: http://www.cosmo.com.br/noticia/28915/2009-05-21/rapaz-com-deficiencia-mental-volta-para-casa.html

 

Ou aqui, se o link estiver off-line

** Coincidentemente, no Novo Testamento, Zaqueu hospedou Jesus em seu lar. http://pt.wikipedia.org/wiki/Zaqueu_de_Jerusalém

Pesquisas portadoras de deficiências

Também publicado em:
http://www.adital.com.br/SITE/noticia.asp?lang=PT&cod=38819

Uma pesquisa recente, promovida pela Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina -Sistema FIESC, procura demonstrar que o número de pessoas com deficiência seria insuficiente para que as empresas cumpram a Lei 8.213, a Lei de Cotas. E acirra um debate no qual quem sai perdendo, de cara, é a sociedade. Pois, apesar do fato de que a metodologia empregada na pesquisa não traz maiores garantias acerca da universalidade dos dados, fica demonstrada de antemão a dificuldade de assimilação que ainda paira sobre o direito das pessoas com deficiência ao trabalho.

Apenas ilustrando o quanto esses dados são insuficientes para demonstrar situações que se observam em outros locais do Brasil, outra pesquisa finalizada pelo Núcleo de Promoção da Igualdade de Oportunidade e de Combate à Discriminação no Trabalho da Gerência Regional do Trabalho e Emprego de Osasco e Região **, também recente, aponta dados de ocupação do percentual destinados às cotas chegando a 96,8%, enquanto que nos municípios pesquisados pela FIESC o percentual mínimo de cotas não seria nem atingido, representando 0,78% da população nos municípios pesquisados – Joinville, Blumenau, Brusque, Gaspar, Capinzal, Correia Pinto, Lages, Otacílio Costa e Ouro.

Qual seria a explicação para tal disparidade? Como uma região consegue preencher quase integralmente a cota de 5% de empregos destinados às pessoas com deficiência e outra região fica abaixo da metade da cota e não chegaria sequer ao percentual mínimo previsto legalmente, de 2%? Uma das hipóteses a aventar seria a de que tratam-se de regiões com grande disparidade sócio-econômica. Mas Santa Catarina tem o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país e, portanto, não se encaixa nesta possibilidade.

Outra hipótese seria a levantada pelo presidente da Câmara de Relações Trabalhistas da FIESC, Durval Marcatto Jr, que afirma que há um alto percentual de pessoas com deficiência que não querem ingressar no mercado de trabalho, somado a outro, de pessoas sem qualificação: “Os dados evidenciam o que as empresas já sentiam na prática. Elas não têm como cumprir a Lei de Cotas. Agora vamos levar os dados para as autoridades para buscarmos a melhor forma de lidar com a questão” **. Seria isso mesmo possível? Por que existiriam pessoas que não querem ingressar no mercado de trabalho e por que elas seriam excluídas do universo pesquisado, aqui sem trocadilhos? Será que por haver um processo social em questão que não estimula as pessoas com deficiência ao acesso à educação e processos de formação laboral, essas pessoas deveriam ser eliminadas do percentual dos que poderiam candidatar-se às cotas? Como explicar, ainda, que Santa Catarina tenha simultaneamente o melhor IDH do país e o pior índice de cumprimento da Lei de Cotas (3,5%), segundo dados do Ministério do Trabalho? As pessoas com deficiência poderiam estar num universo e não no outro? Por si só, isso já não seria um tipo de discriminação? A proposta da FIESC em discutir essas questões, enfim, visa modificar esse contexto em algum aspecto?

Infelizmente ainda não é possível responder as questões suscitadas por essas informações sem que outras sejam formuladas. É preciso que, antes de procurar resumir rapidamente dados sociográficos com vistas a comprovar preliminarmente qualquer tipo de hipótese, a sociedade assuma para si o debate público sobre ações afirmativas e recuse qualquer medida apressada, principalmente quando o objeto a ser modficado são direitos sociais que, ao invés de serem meramente eliminados, necessitam de consolidação e aprimoramento.

Iniciativas que visam desqualificar a Lei de Cotas, justamente num momento em que tramita no Senado o Projeto de Lei nº112/2006, de autoria do senador José Sarney, não estão concatenadas ao tempo social de um país que pretende efetivar direitos e princípios como os estabelecidos pela unanimidade dos congressistas na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujo efeito deveria ser o de repercutir positivamente no modo como a sociedade inclui e convive com as pessoas com deficiência, em todas as instâncias, inclusive o acesso ao trabalho.

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* O termo portador de deficiência empregado no título é meramente ilustrativo. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao regime constitucional brasileiro no passado, estabeleceu que o termo correto para denominar pessoas que nasceram com alguma deficiência é justamente “pessoas com deficiência”, tendo em vista que a deficiência não é uma condição portátil, mas uma condição de vida.

** http://www.sindmetal.org.br/release_07-05-09.html

*** http://www2.fiescnet.com.br/web/pt/noticias/show/page/1/nr/7428

Por que “ser diferente é normal”

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Capa do livro “Tudo Bem Ser Diferente”, de Todd Parr

Por Lucio Carvalho *

Na última semana, uma notícia veiculada primeiramente no Jornal Nacional e depois no Jornal do Almoço trouxe luz a uma questão que, pelo menos de forma aparente, ainda não foi plenamente assimilada pela sociedade gaúcha: a de que as diferenças entre as pessoas não as hierarquizam sob nenhum aspecto. A manipulação dessa distinção entre o normal e o diferente já foi, na História, razão para que segmentos inteiros fossem segregados, perseguidos e até mesmo exterminados, como recente exposição inaugurada na Alemanha demonstrou, ao veicular as práticas nazistas em relação às pessoas com deficiência nos campos de extermínio da II Guerra Mundial. Na atualidade, é visível e gritante o tamanho absurdo da segregação quando tomamos conhecimento de que uma criança de um ano e meio de idade deixa de ser recebida por um estabelecimento de ensino em razão da sua peculiaridade enquanto ser humano. Foi o que aconteceu com a pequena Clara, que nasceu com a síndrome de Down e que teve sua matrícula recusada sob a alegação de uma possível falta de preparo e de condições pedagógicas adequadas por uma grande e tradicional escola de Porto Alegre.

Não bastasse isso, a notícia foi veiculada justamente na semana em que se comemora o Dia Internacional da Síndrome de Down. Por todo o país, dezenas de eventos reunindo autoridades, cientistas, educadores, políticos e as próprias famílias, naquela que é a maior programação individual por país de acordo com a Down Syndrome International, demonstram o quanto ainda a sociedade de um modo geral e especificamente a gaúcha necessita refletir em relação aos preconceitos, ao comportamento social, ao respeito e observação às leis e tratados internacionais que abordam as pessoas com deficiência de um modo geral, no sentido de avançar na garantia de seus direitos e na promoção de condições dignas de vida a todos os cidadãos.

O que aconteceu com a pequena Clara, infelizmente, não é nenhuma novidade. Tampouco é novidade que nem todas as iniciativas de inclusão de crianças com deficiência na rede regular de ensino, em classes comuns, são totalmente bem-sucedidas. Isso se deve ao simples fato de que o componente humano e as relações sociais não obedecem a fórmulas de sucesso replicáveis automaticamente. É exatamente na capacidade de percepção dos contextos de aprendizagem e de uma intervenção que respeite as individualidades de todos, desde muito cedo, que reside a vantagem da inclusão. Não só os colegas das crianças com deficiência aprendem a conviver desde cedo com a alteridade e os valores da diversidade e da democracia, como a sociedade se prepara numa perspectiva humanizada para valores infelizmente em decadência, como o respeito, a tolerância e a solidariedade.

* Membro do Comitê de Comunicação da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down

Tempos, entretempos e hiatos

Palavras manuscritas abraçam uma mulher.

A sociedade está sentada sobre a mesma burocracia na qual o Estado se edifica. Pelo menos na forma pela qual o estado brasileiro está atualmente edificado, talvez com origem no legado de Getúlio Vargas e deste pelo positivismo gaúcho, onde ao povo cabia acatar a ordem correta das coisas – normalmente imaginada e determinada pela mente de um governo centralista e autoritário. Mas a historiografia comprova que mesmo os piores regimes sofreram oposição civil. Não há o que justifique o comodismo da sociedade brasileira senão por um pacto tácito com uma forma de estado magnânimo que concede benesses a grupos heterogêneos ao mesmo tempo que concentra as decisões políticas. De tempos em tempos, todavia, isso não parece tão tácito assim.

Muitos acreditam sinceramente ou pelo menos fazem crer que as únicas oportunidades que a sociedade tem de construir alternativas são os períodos eleitorais. Justamente nos períodos em que o discurso político decai ao degrau mais baixo do convencimento retórico e é equacionado por fórmulas obtidas em pesquisas de opinião. Quando muitas vezes é impossível discernir entre qualquer vestígio ideológico, porque a maquiagem televisiva embota todas as faces como a clowns. Quando as necessidades sociais transformam-se em demagogia e não há interlocução nem troca social, mas outro tipo de troca travada nos bastidores políticos e que serão marcas indeléveis dos governos, através das redes de pequena (e às vezes nem tão pequena) corrupção a que se denominam comumente por “alianças”, “acordos”, “negociações”. Termos que poderiam ser substituídos por outros bem piores sem que se alterasse o seu sentido e efeito.

Esses momentos posteriores às eleições, que seriam os mais oportunos para a sociedade construir e fortalecer junto aos governos espaços públicos capazes de promo ver efetivas transformações sociais, tornam-se um desperdício de tempo para todos, com exceção daqueles que beneficiam-se das engrenagens burocráticas destinadas a gerar alguma burocracia e nenhuma intervenção na vida comum das pessoas, quando não entraves ao exercício de sua cidadania. Essa mentalidade e cultura política são tão frutíferas no Brasil recente que nem princípios elementares do estado de direito, com a independência dos poderes, são considerados. Ao invés da independência, a inter-dependência. No lugar da fiscalização mútua, as cada vez mais frequentes trocas de favores.

Muitos fenômenos (que muitos preferem chamar de factóides) políticos contemporâneos trazem a marca dessa construção política e, como Sartre queria dizer em Eléctions, piège à cons, enxotam a realidade em troca de uma cômoda e fantasiosa cenografia onde burocratas de toda a espécie podem parecer que estão fazendo algo de efetivo. Essa dramaturgia, que tem tudo para ser cômica, acaba por revelar-se em seu sentido trágico, justamente por substituir o estado em suas funções vitais. Assim é que a privatização dos espaços e políticas públicas parecem ter uma cor melhor que a realidade, principalmente porque é dada a conhecer nas telas de TV, onde o cinza das cidades é decorativo e a miséria está sempre a caminho do que poderia ser um ideal de cidadania, onde há trabalho para os milhares de desempregados gerados pelas crises econômicas e pela própria estrutura produtiva, educação para quem não tem sequer escola e saúde para os que agonizam diariamente enquanto esperam sua vez no atendimento médico.

Ainda assim a sociedade parece aguardar por que o estado resolva lembrar que sua existência tem a destinação de servir-lhe e proteger-lhe, acima de tudo. O controle social público e as experiências locais de democracia participativa já demonstraram que, permanecendo à espera, a população tem muito pouco a ganhar e a fazer no jogo político atual. Passarão novas eleições e caso a sociedade deixe de tomar para si a tarefa de desburocratizar as engrenagens do Estado e de democratizar os espaços públicos, pouca coisa no cenário precisará ser modificada, ainda que sua maior urgência seja pulverizar em definitivo a imagem de que a sociedade é ninguém, se é possível encontrá-la na face de cada um, a quem os governos destinam cada vez menor atenção e respeito.

A demissão da cidadania

O fenômeno não é recente, mas o silêncio estrondoso da rede filantrópica estabelecida em torno da onda da responsabilidade social diante dos efeitos da crise econômica atual é sepulcral. A sem-cerimônia com que as empresas despojam trabalhadores de seus empregos e ao mesmo tempo promovem ações sociais de fim-de-semana é algo estarrecedor, se não fosse em parte previsível. A agenda social do terceiro setor não pode parar, mesmo que sem objeto, pois ela é o lastro onde se pode desenvolver o discurso de que a uns cabe dar e a outros entrar na fila para receber. Este é um terreno sem disputa e quem está sem emprego também aí está sem lugar.

O enfraquecimento da representação popular e dos espaços de interlocução pública interessam muito a essa visão compartimentada da sociedade que coloca lado a lado a cidadania e a exclusão social, como um fundo mútuo de atenção a quem se nega a presença do Estado mas todavia o capitaliza através de redes empreendedoras que alimentam-se de um ciclo econômico soturno, onde o que se oferece as pessoas é um perpétuo vir-a-ser.

Nessa perspectiva, algum dia o excluído virá a ser um cidadão. Em algum momento o desempregado virá a ser patrão. E assim exime-se o modelo sócio-econômico de oferecer diginidade e respeito ao trabalhador. O problema da responsabilidade social é que ela não responde a quem não está incluído no sistema de produção. Quem lhe responde, em última análise, é a sociedade penal, que num primeiro momento lhe confisca o direito à educação, seguido das oportunidades de trabalho e, por fim, da própria liberdade.

Essa noção de que as chagas sociais são remediáveis sem que se adote em efetivo um modelo minimamente honesto de produção e distribuição de riquezas é como um ovo órfão fora da chocadeira. É a clara desesperança que se pode encontrar na face de todos aqueles que esperam porque precisam e também porque não lhes resta outra alternativa. Para estes, a cidadania é um termo remoto, de significado impreciso, porque lhes falta a perspectiva de pertencer com dignidade no espaço público. Esse é o resultado a que chega uma sociedade que concentrou no potencial de consumo a expectativa de bem-estar social. Se por um tempo a dinâmica de filantropização da pobreza funcionou a contento e profissionalizou-se a ação social civil autônoma, esse “método” parece ter chegado a um esgotamento de credibilidade, até mesmo porque será muito difícil transformar em resultados socialmente palatáveis os efeitos do desemprego e da recessão, por exemplo.

Resta verificar através de quais argumentos a sociedade vai procurar assimilar não apenas a crise econômica atual, mas qualquer tentativa de reação a ela. Se será simples como obter crédito nas ruas das metrópoles, se serão sacrificados, como sempre, os trabalhadores, pelo arrocho de salários e pela cassação terminal de seus direitos através do estímulo a informalidade ou, enfim, por uma desejável determinação em enfrentar o modelo com propostas que envolvam a participação da sociedade e não apenas da criatividade de publicitários. Por uma questão de lógica, é perda de tempo qualquer tentativa de compatibilizar a “nova assistência social” com a total indiferença com que as pessoas engrossam as fileiras da exclusão social. Apesar de que a lógica já está ficando acostumada aos atentados que se praticam contra ela. E nós, infelizmente, também.

Um encontro com a deficiência social

Escultura em bronze de Kaspar Hauser na cidade de Ansbach, Alemanha.

Fui assaltado por um menino de 4 anos que ainda não sabe falar, mas já sabe assaltar. Não é por isso, contudo, que desfiarei um corolário de rabugices do tipo “a que ponto chegamos”, “o que mais falta acontecer?” ou o clássico “em que mundo estamos?”. Não farei isso porque esse é o tipo de constatação que só faz chover no molhado e não traz luz alguma a qualquer tentativa de compreensão dos fatos ou de análise, mas que comporta num desolamento passivo que acompanha desde sempre a miséria e que, entretanto, não chega a lhe desvelar nem alivia – sequer parcialmente – as suas chagas. Além do quê, isso diz muito pouco sobre o fato de que fui assaltado por um menino deficiente de 4 anos de idade, que ainda não sabe falar.

É possível esperar que esse mesmo menino venha a expressar-se através das palavras e perceber seus siginificados se precisou aprender a assaltar antes de aprender a pedir? Se recebeu ao invés da compreensão que deve existir no substrato de qualquer família a violência gerada pela necessidade extrema? Se talvez experimente a sensação de matar antes mesmo de entender a razão de estar vivo e pertencer a este mundo? Por si só, isso pode parecer ser terrível o bastante mas, mesmo esse terror, por petrificante que seja, obscurece o fato de que talvez, para esta criança, o tanto de habilidades comunicativas de que ela dispõe neste momento seja o suficiente para a complexidade da vida que pode ainda lhe restar a viver.

Mesmo sem figurar nas classificações da CID ou CIF, a deficiência social é um fenômeno cujo terreno fértil é a miséria e a falta de perspectiva, que geralmente lhe serve de adubo, principalmente em se tratando de países de extrema pobreza e desigualdade social, como o Brasil, e atinge discriminadamente os mais pobres entre os pobres, vitimizando-os duplamente: uma vez pela sua própria precariedade e a outra pela precariedade do mundo que a comporta e faz subsistir.

A face de crianças como esta que tentou me assaltar está invariavelmente nas fotos das campanhas humanitárias, nos vídeos que levam milhões de pessoas às lágrimas perto das festas de fim-de-ano mas que, no restante do tempo, não encontram com facilidade dois olhos que as olhem de frente e com mais dificuldade ainda uma sociedade que reconheça sua existência, aceite-as deficientes como são e, junto a elas, procurem imaginar uma outra vida possível. Essas crianças talvez tenham a sorte de um Kaspar Hauser que, como na figura do Professor Daumer, as recupere do ruído vertiginoso de suas emoções e da incomunicabilidade que as isola do mundo e, principalmente, de sua atenção e ação política.

Menino de rua recebendo “atenção” social no centro de São Paulo.

Tenho um filho de 2 anos de idade que nasceu com a síndrome de Down. Trata-se de uma intercorrência genética que traz consigo uma série de implicações, entre elas a condição de uma deficiência intelectual de natureza cientificamente ainda imprecisa mas, ao que tudo indica, seja muito determinada pelo conteúdo social oferecido à criança – da mesma forma que para todas as outras crianças. Meu filho de 2 anos de idade consegue, sem sombra de dúvida, expressar-se por palavras melhor que o meu pequeno assaltante de 4 anos, ainda que de forma rudimentar. Umas das razões para isso é que desde seu nascimento, além de procurarmos oferecer-lhe palavras, carinho e atenção, também lhe dedicamos um tipo de cuidado que é comumente denominado por “intervenção precoce” ou “estimulação precoce”. São terapias destinadas a potencializar capacidades comportamentais (incluem-se aí diversos tipos de especialidades terapêuticas) e cognitivas, numa explicação bastante simples. Também ele deve começar sua vida pré-escolar neste ano.

Muitas vezes sinto que há na sociedade a idéia de que um tipo de “intervenção precoce social” poderia dar conta do futuro de gerações que estão sendo destroçadas nas ruas, aos olhos de todos. Mas é importante lembrar que, em um ou em outro caso, é fundamental levar em conta uma lição de velhos marujos que ensinam a antever onde atracar o navio antes mesmo da partida. Por isso, uma intervenção precoce destinada a uma criança com deficiência ou a uma população de deficientes sociais, pensada nos termos de políticas públicas, deve sempre levar em conta que não deve ser tomada por resultados particulares e imediatos, mas por permanentes e efetivamente abrangentes.

É perturbante a idéia de que o mundo possa comportar a inclusão de pessoas com deficiência somática e, mais ainda, com deficiência social, de uma forma que sua problemática não esteja focada em si mesma, como “algo” a ser consertado. Essas pessoas não estão estragadas que mereçam conserto. Sua inclusão não deve ser uma inclusão particular, fantástica, com direito a capa de revista e foto no jornal, mas antes de tudo uma inclusão plena de todos os direitos que todos os cidadãos merecem ter, com respeito primeiramente aos valores fundamentais da pessoa humana. A sociedade não pode estar contente com propostas de inclusão social particulares, ad hoc, que não avancem a soleira da própria porta no âmbito familiar, educacional ou social em seu sentido mais amplo. A autonomia e a liberdade que pretendo para o meu filho, parafraseando Sartre, não pode ser uma condenação para os demais.

Àqueles que gostariam de saber o que aconteceu com o meu pequeno assaltante só resta dizer o que diz Kaspar Hauser, pelo menos pela mão de Werner Herzog: “Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?”