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Zhang Yimou e o expurgo da memória

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O enfrentamento ou a mera sobrevivência a regimes despóticos inciados no séc. XX (muitos infelizmente continuados no atual) renderam livros e filmes memoráveis. No cinema, lembrar dos brasileiros Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, ou Cabra Marcado pra Morrer, de Eduardo Coutinho, é suficiente para que se perceba que a temática é capaz de produzir clássicos, mas essa é uma realidade que não se restringe ao Brasil. Em todo o mundo, filmes mais ou menos conhecidos retrataram momentos históricos inesquecíveis não pela beleza ou pelo maravilhamento, mas pelo horror, pela opressão totalitária e o nonsense de ter de viver em meio a ditaduras. Poucos diretores, entretanto, após obterem sucesso comercial costumam voltar à temática, normalmente permeada por aspereza e não pouca violência. Não é o caso do diretor chinês Zhang Yimou que, no seu mais recente filme, Coming Home (Gui lai, em chinês), voltou a mostrar nuances menos explícitas da violência subjacente à Revolução Cultural liderada pelo “timoneiro” Mao Tsé Tung, na China, entre os anos de 1969 e 1976.

Yimou, que em 1994 havia recebido o Grande Prêmio do Júri em Cannes por Tempos de Viver (Huo Zhe, em chinês), abordando a trajetória de uma família desde a década de 40 até os anos 80, ou seja, atravessando os anos em que o regime de Mao governou o país, experimentou ele mesmo o expurgo do cinema chinês, sob a acusação de que estaria denegrindo a revolução comunista. Vinte anos depois, na mesma Cannes, Yimou voltou a vivificar os momentos de maior radicalização ideológica em seu país, mas desta vez sem concorrer à premiação, com Coming Home sendo exibido fora da premiação. Para tanto, ele ainda pode contar com a atriz Gong Li, com quem produziu alguns dos mais premiados filmes chineses, como Sorgo Vermelho, Lanternas Vermelhas, A História de Qiu Ju e o próprio Tempos de Viver, que ela também protagonizou.

Yimou, cuja filmografia passa por filmes que enfocam a vida tradicional e os costumes da China pré-revolucionária e até mesmo por películas do assim chamado wushia, cinema baseado em histórias de heróis das artes marciais, bastante populares na China, é um dos diretores mais conhecidos e premiados no ocidente. Diferentemente de filmes com baixo orçamento, típicos das produções dos anos 70 dos estúdios de Hong Kong, Yimou realizou filmes de alto orçamento, produções elaboradas beirando o épico (ou um improvável barroco chinês), como o filme Herói ou O Clã das Adagas Voadoras. Curiosamente, Herói foi coproduzido com Quentin Tarantino, vencedor da Palma de Ouro com Pulp Fiction no mesmo ano em que Tempos de Viver levou o Grande Prêmio do Júri.

Sem deixar de ser também uma espécie de épico, Coming Home (que deverá chamar-se De Volta Para Casa no Brasil) é um filme caprichado ao extremo nas especialidades de Yimou, a fotografia impecável e a direção de arte, mas este seria apenas mais um épico de aventura não fosse o tema escolhido por ele um dos mais candentes do seu próprio país. Não poderia ser diferente para quem passou o período da Revolução Cultural justamente nas linhas de produção estatais, na tecelagem do algodão, quase o oposto da seda imperial onipresente em seus filmes wushia, em que a pancadaria é comandada pela fantasia.

Em Coming Home, baseado no livro da escritora Geling Yan, a pancadaria, por outro lado, é comandada pelo real, mas narrada a partir de uma sutileza incomum. Quando o mais fácil seria escancarar o horror da violência totalitária mostrando a dor em seu estado lancinante, Yimou quase apenas a sugere e centra fogo não em uma encenação realista, mas em uma metáfora que diz respeito a muitas maneiras que democracias recém postas tratam o passado arbitrário, não que seja este o caso da China. Porém, talvez exatamente por isso, pela iminência permanente de um reviver de violência e opressão política e cultural, Yimou tenha escolhido mostrar o desenlace de seu enredo tendo como elemento central a temática da perda da memória.

Para ele, que em entrevista ao O Globo, declarou que um filme como Coming Home precisa ser feito em seu país para que a memória não seja simplesmente apagada, para que ela mostre até onde é possível chegar-se na ausência da liberdade, trata-se de um reencontro com o seu melhor cinema e com a musa principal de sua filmografia, a atriz Gong Li.

No filme, a personagem de Gong Li, Feng Wanyu, perde a memória justamente no momento em que o marido Lu Yanshi, interpretado pelo ator Chen Daoming, retorna para casa após o expurgo promovido pela Revolução Cultural, cerca de 20 anos após sua prisão, mas encontra uma família destroçada. Ambos professores, ela preferiu não se opor ao endurecimento do regime, mas ele pagou por sua oposição com a liberdade, como aconteceu na realidade com milhares de professores que desejavam, na época, depurar o regime maoista, mas receberam em troca perseguição e ostracismo. O duro do roteiro adaptado por Yimou é que este pai é justamente levado à prisão por meio da delação de sua filha, a bailarina Dandan, formada no sistema de doutrinação imposto nas escolas chinesas. E, a partir desse momento, uma série de violências apenas sugeridas acontece com a família. Neste ponto, que para muito filmes sobre regimes autoritários seria o ápice, como se por uma necessidade de saturação, em Coming Home é quando o drama dá lugar ao épico e começa a desenrolar-se o restante da vida dos personagens. O restante da vida possível.

Daí em diante, deste ponto de retorno que jamais chega a cumprir-se, porque a personagem nunca recobra completamente a memória do marido, o filme ganha um contorno lírico impressionante, embora muitos possam por isso vir a classificá-lo como melodramático. Neste momento, com a Revolução Cultural já finalizada e o regime dando indícios de uma incipiente rarefação, com a reabilitação dos professores aprisionados e banidos, quer dizer, daqueles que puderam sobreviver às condições degradantes impostas por Mao. No filme, pode-se saber de colegas de ambos que se suicidaram ou simplesmente não voltaram para suas casas e famílias nunca mais. A narrativa de Yimou, neste caso, por sugerir a dor subjacente a um momento histórico tremendo como este, é mesmo comovente, caso essa palavra tão em voga chamada empatia possa ser empregada em relação a um passado nem tão distante, mas que é sem dúvida um exemplo inexpugnável do horror que é viver em um regime sem liberdades.

Daquele momento preciso do retorno de Yanshi até o envelhecimento de ambos, passando-se anos a fio, nos quais ele tenta recuperar a própria identidade (que é afinal de contas dependente do reconhecimento dela, a esposa), ele encontra uma maneira de manter-se ao mesmo tempo junto a ela, sem desistir da ideia de ser recebido e identificado. Ele começa a ler, sem que ela jamais o reconheça, as cartas que escreveu da prisão e até mesmo a forjar estratagemas de convencimento para que a memória dela o perceba e receba em sua própria casa novamente. Em determinado momento, uma conhecida de ambos, também professora, determina e garante “em nome do regime” que ele é mesmo o seu marido, mas a violência sistemática, até mesmo sexual, perpetrada por agentes do mesmo regime, enfim revelada, é traumática demais. Em busca de vingar-se de alguma forma, ele vai perceber que a violência, ao fim das contas, não é casual, mas deflagrada pelo desespero social e que mesmo os algozes do regime maoista são vítimas de uma violência ainda maior, de ordem política, capaz de encobrir a razão social com truculência de sobra e muitas palavras de ordem.

Através da delicadeza da trilha sonora composta e executada pelo pianista Lang Lang, primeiro chinês a figurar com a Filarmônica de Berlim, a história avança e, diante da impossível recuperação da memória da esposa, o incansável professor, em uma cena por si só antológica, une-se a ela na espera por ele mesmo, jamais reconhecido. Com a compreensão da filha e com a família reunida em torno do possível mais do que pelo desejável e do que seria digno e justo, Yimou desenha, através da impecável atuação de seus atores, de uma forma verdadeiramente indescritível o que a capacidade de sobrevivência do afeto torna possível aos seres humanos, mesmo nas mais precárias situações. Convenhamos que sobreviver à Revolução Cultural maoista é dos exemplos mais formidáveis de onde extrair-se um roteiro e uma história de amor vigorosa como a contada em seu filme.

Os altos decibéis de Luciana Pestano

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No centro de Porto Alegre, há uns anos atrás, conheci um curioso vendedor de discos. Sua loja ficava quase escondida em um prédio antigo de salas comerciais e não tinha letreiro, placa na calçada, coisa nenhuma. Propaganda zero. Mas tinha clientes assíduos e um acervo incomum de gravadoras pouco usuais nas grandes lojas do ramo. Discos independentes brasileiros, em sua maioria. E também selos importados de jazz, blues, rock e otras cositas más.

Deixava com ele boa parte do pouco dinheiro que tinha na época (não que esteja distribuindo hoje, frise-se). Hoje vejo claramente que, se tivesse investido na bolsa de valores, eu até poderia estar rico, mas com certeza bem mais pobre de espírito. Ele era engraçado, tinha discos que não gostava de vender. Dizia: “Pôxa, tu vai me levar esse aí?”, mas no fim concordava, afinal tinha contas a pagar no fim do mês, como qualquer cidadão.

Foi das mãos dele que recebi muitas gravações que guardo com carinho e espanto renovado, porque parecem conservadas por alguma magia que as mantém como se intactas, como se num desvão do tempo. Muito antes que se encontrasse de tudo na internet, por meios às vezes pouco legais, foi que tratei de garantir para mim um exemplar do disco homônimo de “Luciana Pestano”.

O disco, gravado em 1997 pelo selo Antídoto, da Acit, foi o primeiro da cantora e compositora gaúcha e é aberto por uma faixa que ganhou, na época do lançamento, as rádios locais e, logo a seguir, a atenção de muita gente Brasil afora, principalmente depois da veiculação do clipe na MTV e o relançamento do disco pela Polygram. É a vigorosa “Vá embora”. Mas, além de “Vá embora”, o disco traz um apanhado de excelentes composições nas quais a voz marcante de Luciana vibra pesado, imprimindo seu tom muito pessoal no rock tardio dos anos 90, como as faixas “Abalada”, “Santo Cristo” e outras. Talvez todas.

Depois de lançar aquele álbum, Luciana ganhou a estrada, tocou Brasil afora, atravessou fronteiras, encontrou parceiros e continuou compondo, isso dentro de um processo muito particular e, de certa forma, um pouco desencontrado do pop que passou a dominar a cena musical da virada do milênio. Ainda assim, mesmo que com sua evidente identificação com o rock e o blue, muitos compositores perceberam que nela o ritmo vibrava em alto decibel (para não dizer quilate), sendo uma extensão quase natural tanto do seu timbre vocal quanto da sua expressividade.

Nesse período, Herbert Vianna foi um parceiro importante, coincidindo com sua mudança para o Rio de Janeiro. Anos depois de participar no álbum dele, “O Som do Sim”, na faixa “Eu não sei nada”, ele retribuiu no segundo disco dela, “Tigra”, de 2008, na faixa “Entre você e eu”. Além de Herbert, o disco trouxe parcerias com Antônio Villeroy, Mu Chemabi e outros músicos.

Em “Tigra”, produção independente, Luciana não fez senão confirmar o que se anunciava em seu primeiro disco. As baladas levadas pelo violão de aço e as batidas ácidas, às vezes flertando, às vezes nitidamente abraçadas ao post-punk e ao rock industrial amadureceram em letras cuja interpretação e vigor vocal não perderam em nada desde o primeiro disco. Para confirmar o que tento dizer, basta ouvir aqui a faixa “Leonino”.

Se na música brasileira pode-se dizer que a figura majestosa de Rita Lee impôs-se por um conjunto ímpar de características como a “roqueira por excelência”, não foram muitas as cantoras que adotaram ou seguiram o estilo para forjar sua expressividade. Mesmo Ângela Rô Rô ou Cida Moreyra, que gravaram baladas roqueiras principalmente nos anos setenta, fizeram-no incidentalmente e não integralmente como vem fazendo Luciana em sua carreira.

Talvez porque a música brasileira sempre tenha oferecido possibilidades interpretativas abundantes em outros estilos e absorvido a atenção de compositoras e intérpretes, apenas com a ascensão do rock nacional nos anos 80 pode acontecer uma aproximação cultural mais amigável com o rock, possibilitando o surgimento de novos compositores. Ainda assim, é de contar nos dedos ainda hoje as cantoras que realmente fazem jus ao estilo, sem que pareçam simulações mais ou menos bem produzidas de artistas estrangeiras. E hoje, como estilos fundem-se e reinventam-se sem parar, quem é que vai dizer o que está ou não valendo?

Por isso é interessante ouvir com atenção o que cada um tem a cantar antes de declarar o que quer que seja. Luciana Pestano, no momento finalizando a produção de seu novo trabalho, mostra que, além de qualidades vocais, tem uma persistência fincada na identidade do rock, coisa que desde o primeiro acorde que se escuta em seus discos pode-se deixar de duvidar.

Ainda não sei quando vai ser o lançamento nem onde vou encontrar (provavelmente não vai mais ser numa loja obscura no centro de Porto Alegre) o seu novo (até onde sei pagão) trabalho, mas para manter a coerência discográfica da minha modesta coleção a aproveitar ainda mais a sua voz, o certo é que este também não vou deixar faltar.

Turismo para cegos

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  • Revista Amálgama

A pior reação que um livro, seja de que gênero for, pode causar em uma pessoa é nenhuma. Ser uma leitura como a de uma bula de remédio ou do invólucro de uma pasta de dentes é, para os efeitos da leitura, o mais alto anticlímax que um livro pode obter. Do outro lado da moeda, há os livros que desde o primeiro parágrafo sacodem os nervos do leitor, desacomodando-o. Fazendo com que desperte do seu ensimesmamento. Aos livros que têm essa capacidade, para todos os efeitos, eu costumo dizer que são meus livros de boxe. São livros que não me espantaram pelo rigor formal ou por qualquer inovação estética, mas por terem sacudido, como em um ou mais golpes, os sentidos e o que vai por dentro deles, seja qual for o nome que se use para isso.

Turismo para cegos, romance de estreia de Tércia Montenegro, é um livro que se impôs muito sutilmente nessa classificação. Digo sutilmente porque é um romance permeado de nuances psicológicas e personagens apenas aparentemente delicados que se revelam mais humanos justamente na medida em que mais se pode percebê-los complexos e falíveis.

O livro conta o romance entre Laila e Pierre. Ela, uma estudante de artes visuais que vai se descobrindo cega em razão de uma doença degenerativa denominada retinose pigmentar. Ele é um funcionário público que se decide a ajudá-la nesse momento crucial da vida, mas com a perplexidade afetiva de quem se encontra, por sua vez, também desamparado e buscando conhecer-se melhor.

Na literatura brasileira, personagens cegos não são novidade, mas também não há muitos. No papel de protagonista, então, diminuem bastante. Via de regra, a deficiência sensorial costuma surgir como uma característica redentora da pessoa, como um poder especial ou uma dificuldade tornada artifício, assumindo como se uma forma de compensação. A Laila de Tércia Montenegro, contudo, passa muito longe do estereótipo. Ela é irresignada, em certa medida amargurada e nem um pouco interessada em transformar sua vida num transbordo de piedade e comiseração.

Talvez este confronto de Laila com um mundo que se dobra forçosamente à condição da deficiência e que é espontaneamente inadequado e inacessível, inclusive delimitando o discurso e o raio de ação dos demais personagens, possa criar ao leitor um ambiente desconfortável. Isso acontece porque Tércia não se ampara na hipótese da condescendência, nem a social nem a afetiva. O tom por vezes até agressivo de Laila para com Pierre, ou de sua recepção ao modo como ele presta cuidados, parece ser um reflexo da sua própria interlocução com o mundo, interrompida pela deficiência que lhe tomou justamente o que lhe era mais caro: a estética visual. No romance Laila é, além de estudante, também artista plástica. E Pierre é também o nome que ela dá ao cão-guia que irá ajudá-la em sua mobilidade.

No novo mundo de Laila, não cabem eufemismos politicamente corretos nem uma jornada pela superação, como é presente em muitas narrativas sobre deficiências, mas o enfrentamento da realidade social e individual, mesmo que ao custo do endurecimento afetivo e de muitos desencontros interpessoais. De certo modo, muito do que se depreende da personalidade de Laila é predominantemente dado pelo que é narrado de sua voz interna, uma vez que sua ação delimita-se pela relação de dependência com Pierre, que é ao mesmo tempo asfixiante. Imbuída de um temperamento instável, a Laila de Tércia vai tentar romper no plano real com as amarrações que a deficiência lhe impõe, exigindo uma dose considerável de coragem para conduzir-se com coerência e veracidade. Coragem e alguma temeridade, portanto, são as apostas de Tércia tanto para sua protagonista quanto para o enredo proposto.

Coincidentemente ou não, Turismo para cegos é também um livro bastante visual. Mesmo quando Tércia internaliza a narrativa, ela o faz como se procurasse demonstrar a eficácia da palavra em transmitir as impressões sensoriais e em fixar o mundo de forma objetiva. Em muitos momentos da narrativa, quando a ação é suspensa e a introspecção toma corpo, torna-se muito fácil entender as reações psicológicas de Laila, justamente porque são descritas com o rigor e a vontade de quem procura não deixar dúvidas sobre os sentimentos, mesmo em suas repercussões mais veladas, já que em última análise é deles que provêm a força narrativa do romance.

É esta coragem precisamente que, para mim, o faz com que o coloque junto ao que chamo de “livros de boxe”, porque é um romance que se realiza através de um esforço que luta contra os desfechos previsíveis e personagens caricaturais, quando só aparentemente a deficiência poderia impor soluções fáceis ou cartadas certeiras. Em Turismo para cegos, se a inocência não resiste a um round inteiro, tampouco os leitores serão conduzidos através de um cenário plenamente sólido. A consistência do romance de estreia de Tércia talvez encontre-se justamente na impossibilidade de antecipar-se o comportamento humano, mesmo diante do abismo imposto pela deficiência visual.

Mesmo que a autora pinte com nitidez o ambiente psicológico de seus personagens, seu livro fixa-se mais por tornar evidentes as incertezas inerentes à vida e seus efeitos nas decisões dos personagens do que por traçar-lhes um destino inescapável, dado ou não pela condição da deficiência. Neste caso, por irascível que possa parecer à primeira vista, sua Laila tem a inconformidade necessária a quem deseja, a despeito de tudo, permanecer em combate e não se dar por vencida. Se um livro “de boxe” precisa de um lutador, o certo é que Turismo para cegos conta com um deles.

O afiador de versos

EW

  • Germina – Revista de Arte & Literatura

Quem, entre qualquer pessoa, poderia atestar sobre os passantes na rua: ali vai um tabelião, um pouco atrás um sapateiro? Um professor, o mais de trás? Aquele outro talvez seja… Quem sabe? Um poeta?

Não sei. Provavelmente ninguém. Para mim ao menos são indistinguíveis. Não sei avaliar (talvez nunca saiba) por que modos ou características precisas, se é que deveriam portá-las ou exibi-las ostensivamente, se poderia diferenciar os criadores de versos dos demais seres humanos. Por isso, poetas e não poetas têm a mesma cara na rua. Pela fisionomia não se pode saber com que termos e palavras a pessoa pensa a si e ao mundo. Talvez pelo brilho nos olhos, mas há quem se aproxime o bastante? Cada vez menos. Que dúvida! Poetas e não poetas caminham como os demais caminham. Frequentam lugares, entram e saem através das portas assim como todos os demais seres viventes. Aqueles que imaginam antever uma espécie qualquer de aura provavelmente enganaram-se de referência: estas são para os santos e anjos. De efetivamente seu, poetas mal têm os versos.

No fim da minha infância, num momento impreciso da vida, conheci um poeta no seu próprio território e talvez até um pouco mais que isso, na sua intimidade, mesmo que de modo indireto. Eu subia, muitas vezes atravessando o vento gelado do inverno, um perau, quase um penhasco mesmo, para chegar lá em seu topo, na rua Líbio Vinhas, em Bagé, a uma casa situada num recôncavo da rua postado de frente ao poente. Um ambiente quente e acolhedor onde morava um amigo muito especial naqueles dias e sua família; entre eles, o tal poeta.

De nome eu já o conhecia, mas muito pouco de vista. Com a família, havia residido muitos anos fora, em Santa Maria e outros lugares e voltavam agora, depois da sua aposentadoria, para Bagé, interior do Rio Grande Sul, fronteira com o Uruguai. Logo eu saberia reconhecê-lo nas ruas, mas, apenas porque já o havia visto na própria casa, eu sabia então de quem se tratava. Definitivamente não caminhava como um poeta porque isso não existe. Fazia-o do seu próprio jeito, o olhar mais para baixo que para cima, por uma cidade que conhecia desde a geografia mais óbvia até a mais imperceptível, a que se desenha no modo de ser de sua gente, seu jeito de ser e de falar e, talvez, até mesmo do jeito de andar: humilde em muitos, altivo em uns poucos – às vezes mais do que o cabível e necessário.

O calor de sua casa tanto provinha dos afazeres ininterruptos de sua esposa Dona Vitória e de sua boa conversa, da amizade dos filhos do “homem” quanto de um detalhe muito especial que eu percebia incomum, porque as casas que eu frequentava, a minha própria, tinha espaço para os livros, mas nada perto do que havia naquelas prateleiras. A casa do pai do meu amigo era tomada por livros. Os livros eram, em sua maioria, de seu pai e muitos, os mais antigos, de seu avô, o também escritor Pedro Wayne, autor de Xarqueada e Lagoa da Música. Pronto, agora não posso mais falar da pessoa sem dar seu nome. O pai do meu amigo, o poeta Ernesto Wayne, eu atesto que era mesmo um poeta de ofício. E digo não porque o tenha reconhecido ao caminhar na rua, mas por vê-lo trabalhando. E não pouco.

Durante os anos que convivi com sua família (não foram muitos, mas intensos), jamais deixei de reparar na dedicação de Ernesto Wayne para com a palavra. Mesmo assim, ouvi de sua voz algumas palavras (eu não diria lições) de bom professor de literatura que ele era. Algumas até de um incipiente incentivo, porque algumas poucas vezes me atrevi a lhe mostrar alguns versos. Não me foi condescendente. Mandou-me ao trabalho, mas de uma forma agradável: através dos livros. Mais tarde, a vida, como ela costuma fazer, levou-me para longe daquele endereço, mas não da amizade e das boas lembranças com este meu amigo e de sua família, ao fim todos carinhosos amigos.

Ourives da palavra, artífice da métrica precisa dos sonetos, não é por isso, entretanto, que sempre me admiro da poesia de Ernesto Wayne. Tanto em Ossos do Vento quanto em Extrato de Conta, o que é notável nele é o seu domínio do ritmo. Mesmo que por muitas vezes a escolha de uma palavra obedeça a uma necessidade formal, o Ernesto Wayne de que me lembro jamais deixou de submetê-la ao ritmo interno, de solfejador disciplinado que ele sempre foi.

Ernesto Wayne viveu a literatura de sua época e isso desde a fundação do grupo de Bagé – formado pelos artistas plásticos Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues e pelo também poeta Jaci Maraschin – até o fim de seus dias, ao que me consta. Sei que muitas pessoas e críticos gostam de classificar geograficamente os escritores. Segundo essa ordenação, o sujeito pode ser tanto um autor universal, nacional, regional ou local. Na minha memória, o seu Ernesto (desculpem, mas sempre o chamei assim) está junto com os livros dos poetas que me mostrou e através dos quais travei contato pela primeira vez, protegido do inverno bageense e do açoitador vento minuano, com os versos de Ezra Pound, Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Drummond, Quintana, Neruda, Bandeira, Vinicius e mais uma lista interminável. Pouco me importa se ele seja melhor conhecido aqui ou ali, porque é ao lado destes nomes que para mim estará sempre o deste afiador de versos.

Abaixo, transcrevo do seu Extrato de Conta o poema que o intitula.

EXTRATO DE CONTA

Meu corpo coração tem
Com duas pontes, ramal
Que desvia e passa além

Do estreito e triste canal
Que entupir meu peito vem
De pesares em geral.

Minha alma tem também
Coração, mas esse tal
Vai mal, mal bate, meu bem!

Garranchos do meu final
No eletrocardiograma
Da alma que vai muito mal.

Tão mal que a Velha Dama
A mim, deficiente da alma,
Quer levar, porém reclama

Que relate, antes, com calma
O que fiz de anjo ou de cobra:
– De bem pouco levo a palma,

Pago o que a vida me cobra,
Quitada a dívida, a conta,
Somo e reparto o que sobra.

Obra que não está pronta,
Um que outro amigo disperso
E bens de nenhuma monta.

Do azul licor do universo
Que doido sorvi outrora
Resta um pouco em cada verso.

Do que fui, que fica agora?
– Um resquício, ralo caldo.
Pago juros de mora,

De saudade tenho um saldo,
Mocidade na memória,
Recordação de respaldo:

A minha mulher Vitória,
As minhas sete crianças,
Minha existência ilusória.

Raspo em banco de lembranças
A minha conta-corrente:
Descontadas as cobranças

Disponíveis ao cliente
Rasos créditos escassos
Com que velho me sustente.

Descaminhos de meus passos,
Meus depósitos de ventos,
Meus grosseiros erros crassos.

A dor de tantos momentos
Não sei onde começou,
Termina nestes lamentos.

E do que fui, do que sou
Não me sobrou uma estética,
Luta sim, talvez sobrou.

Mais um certo senso de ética
Por sobre o viver diário
Numa visão meio cética.

Contas perdi do rosário,
As que restam arroladas
Vão aqui neste sumário,

Sem ordem, desarrumadas,
Em anos de desenganos,
A seguir discriminadas:

Me ficam perdas e danos;
Dos raros ganhos nem rasto,
Se dissiparam insanos

Na alma não tenho pro gasto.

Meus discos de MPB “roots”: cor e relevo na música brasileira

Que o Brasil é, além de mera jurisdição formal, um continente espantoso, quase todo mundo sabe ou pelo menos já intuiu alguma vez na vida. Para as terras e lugares destas bandas de cá, talvez por uma casual imposição geográfica, parece nunca ter havido alternativa a de ser uma nação marcada e determinada pelo multiculturalismo. Como se por aqui o conceito da antropologia fosse uma ocorrência natural e não fruto de uma construção ou proposição teórica. Como se existisse por si próprio e isso pudesse ser constatado de muitas e espontâneas maneiras.

Em tempos em que a cultura popular é devorada (às vezes para ser apenas cuspida fora ou falsificada) sem cerimônia pela indústria cultural e as formas de viver, sem outra sorte ou possibilidade, são cada vez mais uniformizadas, talvez um cadinho muito especial de particularidades ainda se forme imperceptivelmente em manifestações e expressões não totalmente embotadas – ou até mesmo reinventadas – pelo espírito criador de compositores e intérpretes da música brasileira.

Talvez, em meio a tudo o que há para conhecer e consumir no que se refere a música popular (não que conhecer seja, diga-se de passagem, uma espécie qualquer de imperativo), ainda se produzam registros fonográficos que venham a ser reconhecidos em breve como marcos culturais, ou seja, registros capazes de dar e trocar significados com os modos de viver de uma época ou de um lugar particular. Seja como for, é preciso admitir antes de qualquer outra coisa que, no que diz respeito a música popular brasileira contemporânea, não se dispõe de distanciamento histórico o suficiente para apontar tendências futuras, que dirá para atestarem-se obras primas presentes. Pois eu tive a felicidade de, na minha vida, desde muito cedo ter conhecido ou reconhecido, penso que sim, obras assim.

Se iniciasse a falar de todos os gêneros e estilos de onde reconheço “clássicos” e “obras primas” talvez desse causa a uma série espantosa ou tediosa para a maioria das pessoas, afinal, cada um dos amantes da música ostenta com justiça suas predileções. O que importa dizer é que listas das “maiores” e “melhores”, pelo menos na música, estão mais de acordo com seleções especiais do que com labores cuidadosos, estes sim típicos das obras primas. Então, para este caso, quero tratar especificamente de alguns matizes talvez não tão nítidos da música popular brasileira. A saber, quero tratar da música popular marcada pelo matiz local ou interiorano, não necessariamente a identificada com movimentos regionais, habitualmente recalcados e limitados em si mesmos e em suas bordas geográficas; por outro lado, quero tratar daquela música que, realizada a partir de elementos locais, dialoga com o universal na medida em que constitui em si mesma um depoimento que se estabelece para além do autêntico, mas como se de forma tácita. Daquilo que é por sua própria conta característico do que comentava bem lá no começo deste texto: dos modos de viver de um tempo e de um lugar.

Quero falar de algumas experiências musicais que, no meu juízo, transpuseram espontaneamente os limites da autenticidade para consagrar-se na historiografia da música brasileira como registros ímpares em poder expressivo e comunicativo, mesmo abordando temáticas simples e prosaicas, como costumam ser os motivos interioranos e rurais. Para ser honesto, desejo mesmo é chegar a um registro muito específico, relativamente desconhecido além do Rio Grande do Sul, de onde escrevo. No entanto, como quero “chegar” a ele e não “pular a ele diretamente”, preciso construir uma linha de raciocínio, um recorte e aí tecer minhas justificativas. É esta a minha intenção e não penso que haja outro modo de fazer isso sem que estabeleça uma “conversa”. Uma prosa sem pressa. Por isso me demoro e me demorarei em algumas explicações, para que minha ideia afinal não seja ou pareça completamente descabida ou simplesmente um elogio de minhas predileções confessas, porque isso então seria o meu mais rotundo fracasso, além de fatalmente desqualificar meus argumentos.

Não faz muito tempo que os organizadores da Academia Latina de Artes e Ciências Discográficas (ALACD) dos Estados Unidos instituíram o “Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras”. Desde o ano de 2000, a premiação vem sendo conferida a álbuns e registros com temática supostamente regional, mas, assim como o Grammy de um modo geral parece ser, trata-se de uma premiação mais inclinada a congratular sucessos de vendas do que qualquer outro critério. Assim, por ele foram agraciados trabalhos de cantores como Daniela Mercury, Ivete Sangalo, dentre outros.

Entre os indicados, também é possível notar a presença de registros, cabe dizer, mais “enraizados”. É o caso do mineiro Tavinho Moura, do Quinteto Violado, do cantor e acordeonista Dominguinhos e até mesmo notas bastante dissonantes, como as do percussionista Naná Vasconcelos ou do também baiano Elomar Figueira de Mello. Há outros nomes que poderia destacar também, lógico, mas é justamente no nome de Elomar “onde” gostaria de fazer meu primeiro pouso, nessa viagem mais ou menos expressa a que me propus.

Na Quadrada das Águas Perdidas

A primeira vez em que tive nas mãos o álbum Na Quadrada das Águas Perdidas, de Elomar, senti que tinha em mãos um documento tão estrangeiro e peculiar quanto um papiro egípcio. Ali havia, além das letras das músicas e outras informações, um ensaio introdutório e um glossário do sertaneza, dialeto muito particular através do qual Elomar compõe suas letras. Eu era bastante criança e o disco chegou lá em casa por meio dos meus irmãos mais velhos, na época estudantes universitários. O disco é de 1979, portanto isso deve ter ocorrido bem nesse mesmo período.

Mais do que um espanto diante do inesperado, fiquei aturdido por reconhecer imediatamente ali uma variante do meu próprio idioma em meu próprio país, a serviço de narrar e descrever sobretudo a vida rural, a mesma que eu conhecia vividamente, mas em outro oposto do “continente”: no extremo sul brasileiro, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, lugar onde se pratica largamente o portunhol, que nada mais é que uma fusão espontânea do português com o espanhol e igualmente carregado de expressões idiomáticas. Ambas as linguagens aparentemente sem contato, mas estranhamente amarradas pela conformação que os modos de dizer empregam aos vocabulários, criados ao natural na primária relação do homem e do meio ambiente quando ele é, além de cenografia, sua fonte de subsistência.

Elomar é um compositor sofisticado, estudou violão clássico e é um profundo conhecedor do trovadorismo medieval, estilo que fundiu à prosódia sertaneja, dando origem a uma trova brasileira por essência e repleta de inselenças, chulas, parceladas, antífonas, liturgias e também peças operísticas. Sem nunca descolar-se por vontade própria dos menestréis a que ele mesmo reconhece como fonte e origem do seu cantar, criou uma síntese muito particular da dicção sertaneja, contando e narrando seus hábitos e costumes em profundidade, como se os pincelasse. Muito provavelmente sem que pretendesse, Elomar sacralizou o modo de vida dos criadores de bode, dos boiadeiros, dos habitantes da caatinga e dos retirantes do sertão, mas isso não de modo artificial ou visivelmente arquitetado, mesmo tratando-se de um arquiteto de formação. Por outro lado, ele o faz de um modo impregnado de proximidade e intimidade, como quem falasse junto ao pó do sertão num dedo de prosa dos mais descansados, onde quem pode fala e quem consegue ser sábio apenas põe-se a escutar.

Entre todos os discos de Elomar Figueira de Melo, este Na Quadrada das Águas Perdidas que tenho em mãos neste instante me mostra como a arte mais elaborada pode muito bem advir da origem mais modesta, talvez porque fale diretamente da experiência ou talvez porque o faça com qualidade excepcional, já que não se trata de uma voz única, mas de alguém capaz de aglutinar e dar às formas de viver de muitas e muitas pessoas, sem vestígio de um projeto ou premeditação, coloração e relevo. Não sei se outros pensariam que Elomar pintou exageradamente seu cancioneiro comparando-se a outros compositores locais; eu penso que ele o fez com exatidão, expressando-se tanto como músico quanto como cantor. E, diga-se de passagem, sem jamais cansar o ouvido com motivos repetitivos o que, pelo menos para mim, é prova cabal do seu talento musical.

Minas e Geraes

Deste ponto em diante não seria absurdo nem abusado subir o sertão baiano e ir acima, ao norte, onde compositores locais, do Piauí ao Acre, certamente cantaram, como recomenda a célebre frase do russo Liév Tolstoi, o seu povo de uma forma que é comum aos bardos de aldeia, quando reconhecem os elementos da arte na vida e as transfixam, por sua vez, em seu próprio trabalho e criação. Mas, ao invés de fazer isso, vou descer um pouco mais do meridiano do sertão baiano, onde ele se mistura ao sertão mineiro, e topar de cara com outros marcos da música brasileira, este decorrentes de um famoso encontro de algumas pessoas em uma esquina bem comum de Belo Horizonte, em Minas Gerais. A esquina de que falo é a que une as ruas Divinópolis e Paraisópolis, onde se gestou o Clube da Esquina e tudo (tudo é uma boa palavra para isso) o que aconteceu a partir dali.

Falar do Clube da Esquina e de Milton Nascimento, Lô Borges e de todos os demais músicos, letristas e compositores que por ali passaram é quase redundar no que já é muito bem conhecido e registrado tanto pela crítica universal quanto pelo gosto popular, que consagrou aquele encontro como um dos mais fundamentais da moderna música popular brasileira. Mesmo que o próprio álbum Clube da Esquina, de 1973, seja por si só uma obra mais que perfeita e da mais alta relevância para a música brasileira, para os efeitos da musicalidade local, pelo menos da que eu gostaria de abordar a partir do meu critério de “espanto pessoal”, são dois discos posteriores a este que se completam mutuamente e que mais me impressionam para este efeito. São eles os álbuns Minas e Geraes.

Mesmo que ambos guardem a excelência instrumental característica do Som Imaginário (grupo de instrumentistas que acompanharam Milton e outros cantores na década de 70) e do Clube da Esquina, a temática das composições nestes discos olha ainda mais para dentro de Minas, para o seu interior geográfico e cultural, encontrando-se, como seria fatal acontecer, com toda a música interiorana brasileira, influenciando toda uma poética que reinterpreta o modo de viver do interior sem mais fixar-se no modelo “caipira”, embora sem nem por um instante rechaçá-lo ou deixar de reverenciá-lo ou ser por ele influenciado.

Minas e Geraes são obras primas cujos registros são, por sua vez, obras primas individualizadas. Gravados com o apuro técnico e a elaboração sonora jazzística para a qual Milton desde antes do Clube da Esquina já se aproximara, nesses discos a luz “local” incide mais verticalmente, como um traço de identidade sonora e cultural. Isso também acontece muito em um álbum posterior, Sentinela, mas ali, naqueles dois momentos precisos, uma espécie de desenlace se deu ao natural, no encontro da poética dos letristas que escreviam para Milton e na sua prolífica capacidade de compositor. Os nomes de duas faixas daqueles discos, apenas, podem dar uma amostra do que isso significa. Vou falar em Ponta de Areia, gravada em Minas e vou falar apenas o nome de Fazenda, faixa de abertura de Geraes, que se funde na mixagem com a última faixa de Minas, Simples, conferindo uma unidade indissociável aos dois registros. Dizer mais sobre isso, como é sabido, seria como falar ao vento, porque são composições e obras que se autoexplicam, se é mesmo que elas precisam explicar alguma coisa.

Rumo ao extremo sul do Brasil

Obviamente que o cenário musical brasileiro, neste período, gerou outros tantos clássicos de tantos outros gêneros. No samba, no rock primordial dos anos 60 e 70, na bossa nova, no tropicalismo e em muitos outros estilos muito particulares que conformaram uma grande conjunção denominada e amplamente reconhecida por “música popular brasileira”. Na história da música brasileira, este é um conceito que só foi trepidar depois da morte de Elis Regina, a grande síntese interpretativa da MPB, o que representou um hiato entre concepções musicais ainda arraigadas aos modelos, estilos e temáticas predominantes nos anos 70 e o que se produziu após a sua morte, em 1982. Durante três décadas, Elis foi quem melhor amalgamou tendências, dicções e poéticas urbanas e rurais, mais ou menos populares, mais ou menos enraizadas, em uma época marcada sobretudo pela concepção requintada do disco enquanto produto cultural.

Foi em meados da década de 90, mais do que na década anterior, a partir da ingestão massiva e da predominância do pop, que os gêneros “de raiz” perderam ou abriram ou tiveram de abrir mão de suas particularidades e peculiaridades estéticas locais para dar lugar a um estilo criativo bem mais uniforme, influenciado pelos muitos estilos do pop e pela ascensão do rock nacional dos anos 80. Além da temática local provavelmente soar, naquele momento histórico, estranha e desinteressante, tendo-se em vista a dinâmica urbana e o cosmopolitismo cultural predominar nos meios de comunicação, pouco atraía a atenção popular e de também a atenção de toda uma nova geração de compositores sem nenhuma relação ou bem pouco interesse com a “cor local”. Isto tudo ocorrendo muito embora os compositores consagrados da MPB, aqueles que surgiram no esteio das décadas de 60 e 70, continuassem a produzir nas bases harmônicas e em sua tradição cultural, mas em arranjos já não tão acústicos e bem mais “sintetizados”. A música dos anos 80 e 90, como se sabe, tem o som dos sintetizadores eletrônicos como sua marca indelével. Por isso e porque não devo alongar-me em outras muitas considerações, deixo arbitrariamente de fora, aqui neste texto, compositores que a seu modo também olharam eventualmente para a música do interior, mas que não se serviram dela para expressar-se em profundidade, optando por outros caminhos, o que não está em julgamento aqui, nem por hipótese.

Penso que, em outros juízos, outros nomes aparecessem no lugar dos que estou citando e eu entendo isso como algo absolutamente natural porque, como procurei advertir, minha intenção é traçar um caminho bastante arbitrário formado exclusivamente por registros fonográficos que, pelo menos para a minha percepção, são espantosos por resumir um conjunto de qualidades muito especiais, tendo em comum o acento do que, talvez o diga de maneira equivocada, os caracteriza, para mim, como exemplos bem resolvidos do que poderia chamar-se por “música brasileira de raiz”, como o fez recentemente o Grammy Latino. Daí que parto direta e finalmente ao meu destino final, o Rio Grande do Sul, justamente em um tempo em que ali repercutia um movimento de reinvenção da música de extração rural, o assim chamado “nativismo”.

Baseado praticamente todo ele, em termos musicais, do florescimento da música folclórica dos entornos do Rio da Prata, dos cancioneiros argentino e uruguaio, a música nativista como que nasceu e viveu predominantemente em uma espécie de monólogo acerca da vida do campo e de seu personagem mitológico por excelência: o gaúcho. A década de 70, de modo bastante específico, foi abundante em festivais de música e na fixação de um mercado fonográfico próprio e bastante circunscrito aos limites geográficos do estado, tendo algumas poucas vezes extrapolado o restrito reconhecimento local. Quando isso aconteceu com a música do sul, deu-se principalmente através do grupo “Os Almôndegas”, cuja gravação integrou a trilha sonora da novela Saramandaia (1976), da Rede Globo de Televisão, junto a toda uma nova safra de compositores da MPB que, cada qual a seu modo, assinalava também o tom interiorano, muito bem apropriado para a ambientação da pequena e fantástica cidadela criada por Dias Gomes.

Mais ou menos na mesma época, as gravações de um cantor acompanhado de seu violão, o missioneiro Noel Guarany, que fora peão, tropeiro e cantava ao modo de payada (espécie de repente da música platina, muito presente na música popular do Rio Grande do Sul), ganhou a atenção da crítica brasileira, que saudou e reconheceu em seu trabalho uma contribuição local ao cenário da música regional que voltava à cena em pleno período militar. Noel foi um rompedor de limites por excelência. Não afeito ao tradicionalismo, buscou aproximar-se à música popular praticada na Argentina e no Uruguai, principalmente nos estilos da milonga, do chamamé e da payada. Em 1976, gravou de modo independente o clássico álbum Payador, Pampa, Guitarra junto ao poeta e Jayme Caetano Braun, além de outras colaborações de artistas argentinos e uruguaios.

Depois dele, as poucas aparições acima do Mampituba (rio que limita geograficamente os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul) de outros compositores não lograram maior sorte que um ou outro quadro pitoresco e caricatural, como a figura debochada do “Gaúcho da Fronteira”, por exemplo. Com o declínio do mercado fonográfico, cada vez mais autocentrado, a produção local de cunho folclórico, regional ou nativista como que ficou concentrada em torno dos festivais que puderam manter-se e de um público cativo que, todavia, pouco se expandiu. Caracterizada pela rusticidade e pela centralidade da temática campeira, a música produzida no Rio Grande do Sul evidentemente sofreu os efeitos da passagem do tempo, descaracterizando-se e assimilando novos valores mercadológicos, embora sempre num processo mais ou menos autossuficiente, salvo exceções que buscaram, por meios e mérito próprios, dar significado a uma expressividade menos talhada para o mercado e mais voltada a processos mais introspectivos, bastante característicos da música rural do pampa, seja ele o brasileiro ou o platino. Nesse ínterim, o estilo da milonga, principalmente, voltou a recuperar em alguns compositores sua intensidade e potencial poético-expressivo.

Muitos compositores e intérpretes, no Rio Grande do Sul, desvincularam-se ou nunca chegaram a vincular-se às temáticas rurais e interioranas e construíram carreiras baseadas em estilos populares urbanos sem maiores resquícios da identidade regional. É o caso, por exemplo, dos cantores e compositores Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro, Totonho Villeroy, Raul Ellwanger, Hermes Aquino, Zé Caradípia, Gelson Oliveira e tantos outros. Embora muitos dos nomes citados tenham eventualmente invocado referências locais para suas composições, e muitos o fizeram com felicidade, descolam-se destes principalmente os nomes de Vitor Ramil e Bebeto Alves, ambos com carreiras não marcadas essencialmente pela temática rural ou gauchesca, mas nitidamente interessados nesta poética e nesta sonoridade.

De Vitor, especialmente os discos Ramilonga e Delibáb são todos dedicados à temática rural e campeira. E ele o faz de modo distendido e reflexivo, propondo cenários mais longínquos em uma poética que vai beber nas milongas de Para las Seis Cuerdas do argentino Jorge Luis Borges para realizar composições de alto teor evocativo. São canções fortemente estetizadas, como se talhadas em relevo através de uma narrativa atemporal que parece transcorrer em um tempo mitológico ao passo em que, por outro lado, dialoga com o aporte da poesia de extração popular, através dos versos do poeta João da Cunha Vargas, seu outro vórtice de inspiração no disco. Em meio a isso tudo, Vitor gravou também composições próprias baseadas em motivos e numa concepção poética muito particular e intelectualizada, que ele registrou e denominou como A Estética do Frio.

Se Vitor tem para com a música que olha para o mundo rural do Rio Grande do Sul um distanciamento e uma elaboração que busca uma interpretação diferenciada ou, pelo menos, um maior acento histórico, de outro lado, o uruguaianense Bebeto Alves vem traçando outro caminho. Tendo ele mesmo gravado mais de duas dezenas de discos, entre diversos estilos do rock e do pop, sua aproximação com as temáticas rurais se dá por outro viés e nuances, como a exploração da sonoridade ibérica e um discurso narrativo bem mais próximo ao estilo declarativo das payadas. No entanto, é prudente ressaltar que minha intenção aqui não é nem por um instante traçar um comparativo entre os compositores.

Um extenso e criterioso trabalho de pesquisa realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de autoria de Marcos Sosa e orientado pelo Prof. Luis Augusto Fischer, logrou fazê-lo com competência extremada. Em virtude disso, qualquer busca que tente operar nesse sentido fatalmente esbarrará em repetições e redundâncias dos seus achados. É muito preferível, neste caso, que a fonte original seja consultada. Ainda assim, dos álbuns já gravados por Vitor o que eu destacaria, no caso, não seria nem um de seus discos “milongueiros”. Para o meu gosto, o disco Tangos ainda hoje é o momento máximo da criação de Vitor Ramil e, como trata de temáticas urbanas, não caberá que o situe ou compare-o com os demais álbuns citados aqui, mesmo porque minha intenção não é cotejá-los, mas apenas capturar um sentido que entendo subjacente a todos os registros, ou seja, a possibilidade de, partindo-se da temática rural e local, vivificar formas de vida pouco visíveis, mas localizadas no tempo presente. Dito isto, posso chegar finalmente ao último ponto de parada dessa já nem tão expressa travessia. A saber, o encontro e o registro do encontro da interpretação de Bebeto Alves com a poesia de Mauro Moraes.

Mandando Lenha

Os álbuns Milongueando uns Troços, Mandando Lenha e Milongamento não são as primeiras incursões de Bebeto na música com temática rural. Desde o início de sua carreira, a presença das milongas tem sido uma constante sem que, contudo, tenha adotado para elas um estilo único de interpretação ou estabelecido um motivo preferencial. Variando andamentos e tonalidades, as milongas cantadas por Bebeto se prestam a muitas necessidades de sua estética e de sua criação, variando desde o modelo mais clássico do guitarrero (acompanhamento ao violão solo), até arranjos mais performáticos, com uso de recursos da música eletrônica inclusive. Os registros da parceria com o letrista e também intérprete Mauro Moraes, neste caso, são igualmente diversos. O primeiro dos três discos gravados nesta parceria, o qual divide com o cantor tradicionalista José Claudio Machado as interpretações das músicas de Mauro, traz arranjos que em nada lembram o estilo mais ortodoxo da execução da milonga. Utilizando guitarras elétricas e tonalidades típicas do blues e do rock, Bebeto imprime desde ali um tom muito particular na interpretação das letras de Mauro.

Por outro lado, é interessante notar que nas gravações subsequentes é adotado o estilo mais tradicional de execução, com o acompanhamento básico de violão mais contrabaixo acústico. Tanto Mandando Lenha quanto Milongamento têm essa característica, embora neste último os arranjos sejam mais rebuscados, talvez pela contribuição do violonista Marcello Caminha, que se vale da sobreposição dos canais de cordas em muitas das faixas do disco. Em Milongamento, a poética das letras e a interpretação de Bebeto coincidem com o realizado anteriormente, mas ao disco falta a unidade e a ambientação platina que caracteriza Mandando Lenha, na qual o violonista argentino Lucio Yanel responde pelo violão e também pelos arranjos. É exatamente esta ambientação obtida em Mandando Lenha que o faz, para o meu gosto particular, um registro excepcional.

Assim como outros encontros felizes da música brasileira, nos quais a sensibilidade poética de um ou mais autores vai se encontrar com o potencial interpretativo de um intérprete que, no caso, explora com liberdade incomum as sonoridades e melodias que músicos excelentes imprimem nas construções harmônicas, Mandando Lenha representa um ponto fora da curva numa trajetória mais ou menos linear que vinha sendo traçada pela música regional através de seus muitos compositores e intérpretes. Além disso, também pode representar um ponto fora da curva na própria relação de Bebeto com a temática rural, a qual ele vai interpretar com intensa fluidez e naturalidade, como se as letras de Mauro tivessem aberto comportas de uma vocação interpretativa represada ou outrora canalizada para outras direções. E, por fim, um último um ponto fora da curva que se verifica na própria expressividade que o letrista e compositor Mauro Moraes vinha obtendo em relação ao seu trabalho, interpretado até então no estilo bastante característico dos cantores regionalistas do Rio Grande do Sul. Então, mais que uma conjunção de felicidades, Mandando Lenha, por outro lado, resulta na expansão de muitas possibilidades, ao mesmo tempo em que é interiorizado tematicamente de forma radical.

Neste ponto, penso que devo esclarecer de modo definitivo, se é que já não o tenha feito por outras palavras, de que não estou me valendo aqui nem por um instante de qualquer arsenal teórico para propor minha análise, puramente informal. Obviamente, uma análise estruturalista, como as que se baseiam nas ideias e modelos propostos, por exemplo, pelo músico e pesquisador Luiz Tatit, poderia enriquecer e esclarecer muitos pontos relevantes acerca da fixação metodológica e das características do cancioneiro popular de qualquer um dos compositores a que me referi. Entretanto, porque reitero que este texto não procura rigor algum além da apreciação livre da música e de seus efeitos em quem a aprecia, fixo-me mais no espanto estético que ela causa e em suas relações culturais do que em desvendar as razões formais e metalinguísticas para isso. Quero dizer que estou mais fixado nos elementos culturais e estéticos em si mesmo do que nos estruturais. E por que faço isso? Pela simples razão de que não posso acreditar que, ao compor e interpretar a música, os artistas estejam meramente desfilando o resultado de suas concepções e competências técnicas. E porque pressinto em sua criatividade a presença bem maior de uma relação natural com os elementos culturais propriamente ditos e de sua musicalidade, prefiro tratá-las desta mesma maneira, “desartificiosamente”, com o perdão do neologismo.

Dentre as inúmeras razões de espanto que posso apontar sobre Mandando Lenha, além da condução instrumental primorosa, vigorosa e ao mesmo tempo delicada no delineamento harmônico proposto por Lucio Yanel e Clovis “Boca” Freire, uma entre todas, no meu entendimento, é por si só capaz de alçar o registro à condição de clássico do que venho chamando aqui de “música local” ou “de raiz”. É que, ao contrário de uma enormidade de registros que tratam da cultura local a partir de uma localização do elemento central, o gaúcho, de forma idealizada (seja do ponto de vista histórico ou estético), Mauro fala na primeira pessoa e aproxima de forma definitiva o interlocutor, ou seja, quem o escuta, da sua fala e discurso. E, frise-se, ele nunca o faz de forma declarativa, grandiloquente, mas bem mais como quem conta um “causo”, entre um mate e outro, numa proximidade que a interpretação intimista de Bebeto aprofunda ainda mais, sob a tessitura delicada de milongas e chamamés decompostos das linhas fixas do tradicionalismo executadas pelos instrumentistas e que propõe uma ambientação absolutamente internalizada ou, como é dito na fronteira, uma verdadeira, simples e direta “charla“.

Porque uma intensa mitologização foi consagrada a figura do gaúcho, a partir de uma cultura bastante voltada à conservação de um ethos sujeito naturalmente aos processos históricos, uma espécie de interdito estabeleceu-se em relação ao habitante do meio rural, como se ele devesse responder permanentemente do lugar da história e nunca mais da sua realidade presente. O gaúcho, sob esse ponto de vista, é uma identidade empedrada e, das pessoas que na atualidade vivem em torno do meio de subsistência rural, criou-se uma espécie de hipercaracterização, ao mesmo tempo em que se nega a sobrevivência e readaptação daquele modo de vida, também extinto em outra fórmula de idealização. Ou seja, ou o gaúcho existe no tempo magnânimo em que se assentava na figura do “centauro dos pampas” ou está interditado por um negacionismo igualmente radicalizado. Não coincidentemente, o mesmo ocorre com as figuras do sertanejo, do matuto, do caipira e assim por diante, em outras regiões brasileiras, nas quais o tipo rural também é caricaturizado a ponto de tornar-se o estrangeiro por excelência, por ser alguém cuja identidade simplesmente não coincide com o cidadão mediano e urbano, a não ser através de uma estereotipia empobrecedora que, via de regra, obedece a um ordenamento que vai na direção do centro urbano para o interior.

Nesse processo, a música popular cumpre uma função muitas vezes dúbia. Ou seja, ou contribui para amplificar a estereotipia ou, por outro lado, ganha significação a ponto de confrontá-la. Isto, quando ocorre de forma espontânea, pode gerar um atrito cultural vigoroso, capaz de provocar – mesmo que por sutilezas – o descongelamento das identidades. Não seria nem um pouco demasiado afirmar que a dicção poética de Mauro Moraes encontrou em Bebeto Alves um intérprete capaz de suavizar a aspereza idiomática e de levar, por ser ele mesmo portador de uma identidade que ultrapassa os limites da música regional, ainda mais longe essa charla. Além disso, ao resgatar e devolver ao habitante do meio rural e do interior a posse de sua narrativa cultural, porque o faz mediante o diálogo e não pela imposição de um discurso, quero dizer que este é um encontro que se dá para além de um estúdio de gravação e da fixação de um registro, mas um encontro cultural como poucas vezes ocorre, quando a sensibilidade artística é colocada a serviço de uma expressão latente em uma cultura e dali manifesta-se espontaneamente.

Tal é a mesma sensação que tive e tenho ao ouvir, entre muitos outros discos da música “de raiz” brasileira, principalmente nestes que citei, de Elomar e Milton Nascimento, mas também em muitos outros, embora alguns de forma incidental. Sinto o mesmo, é justo que o diga, em alguns discos de Dorival Caymmi, de Tom Jobim, Clara Nunes, Maria Bethânia, Djavan, Ednardo, em muitos sambistas da velha guarda principalmente (porque a periferia dos centros urbanos não deixa de ser um pouco o espaço de ocupação “interiorana” das metrópoles) e, em algumas vezes, em compositores mais contemporâneos também, como Lenine, Chico Science, Chico Cesar, Carlinhos Brown e tantos outros, inumeráveis. Quero dizer que os artistas, quando assim o fazem, operam o enriquecimento da cultura nacional como um todo, por reestabelecer o contato com o povo e com os elementos que retroalimentam sua produção artística; operam também o descongelamento das identidades não por registrar uma visão cultural narrada de forma externa, mas por uma que se dá exatamente no sentido inverso, que favorecem. Não se trata simplesmente de “dar voz” às pessoas e registrar suas “formas de viver”, mas de falar diretamente “com elas”, em sua própria cultura e linguagem. Esta talvez seja uma das formas pelas quais a arte, no caso a música popular, pode melhor obter, talvez até mais do que autenticidade, o reconhecimento que é definitivamente que mais interessa ao artista: o que se dá em relação ao seu próprio público.

Pois estes são os meus discos preferidos de “MPB roots” e tenho para com eles uma relação muito especial. Obviamente deixei de fora registros magníficos, outras obras primas, de outros compositores e intérpretes. Porém eu posso por isso perdoar-me, porque isso também tem sido feito ao longo do tempo por outras pessoas em relação ao que lhe parece justo registrar. Não me perdoaria, por outro lado, é de poder dizer, mesmo que tão longamente assim, e nunca tentá-lo fazer.

Um prato para comer frio

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Amalgama

Dois filmes produzidos e lançados recentemente retomam um tema ao que tudo indica muito caro à humanidade: o desejo por vingar-se e a perpetração da vingança. Relatos Salvajes e Dracula Untold são, cada um a seu modo, novos blocos do edifício aparentemente infinito da exaltação desse sentimento que parece ser um dos lastros fundamentais da psique humana, ao lado de outros que poderiam ser tomados como mais nobres, caso existisse uma hierarquia organizada para os sentimentos.

A ideia de perpetrar-se a vingança é antiga e tem vigorado inclusive na forma de lei em sociedades mais ou menos primitivas e mais ou menos civilizadas, de outros e também destes tempos. Assim como na longínqua Babilônia do imperador Hamurabi, há culturas que ainda hoje autorizam que vítimas de crimes “devolvam” a “ofensa” na mesma moeda, sendo possível até que assistam ou participem da “reparação” máxima: a pena de morte do outro. Tudo isso parece esdrúxulo e aterrador, mas pode estar acontecendo neste exato instante no Irã mais próximo a você ou até mesmo em lugares supostamente mais civilizados, como o estado do Texas, nos Estados Unidos da América, no qual mais de 500 pessoas já perderam a vida desde a instituição da injeção letal, segundo dados da Anistia Internacional.

Que o cinema parece querer às vezes funcionar como escape à trivialidade e miserabilidade cotidianas não é nenhuma novidade; muitas vezes seus argumentos são projeções e sublimações evidentes de sentimentos comuns às pessoas os quais a vida corriqueira nem sempre pode abordar, isso por uma questão de acordo social, e que ali estão transformados em produto cultural. Minha primeira dúvida, neste caso, reside em procurar entender se as pessoas que se regozijaram com as vinganças perpetradas nestes dois filmes e na série interminável de outros filmes sobre a vingança (o site Cinema 10 elenca uma lista de 219 filmes sobre vingança) estão ali realmente para sublimar esse sentimento dado como dos mais vis, digno de figurar entre os pecados capitais, sob o pecado “ira”, ou se são por eles conduzidas a isso. Minha segunda dúvida seria entender se esse sentimento pode restar sublimado ou não ao final da exibição.

As seis histórias curtas de Relatos Salvajes, por flertar com o tragicômico, aproximam muito os espectadores das situações narradas. São situações envolventes mostrando o ser humano corriqueiro no apogeu do uso da sua flutuação moral. Os desfechos insólitos e absurdos, por outro lado, transformam as histórias em alegorias, livrando-as da dureza da realidade. O filme de Damián Szifron, produzido por Quentin Tarantino (dos igualmente vingativos Kill Bill, Django Unchained e Inglourious Basterds), aposta alto na sublimação pelo absurdo e, tomando-se em conta o imenso sucesso de bilheteria, parece que acertou muito bem no alvo proposto, embora nenhum dos desfechos possa ser descartado ou dado totalmente como inverossímil.

A dúvida em saber se aqueles que se divertiram bastante, como eu mesmo, das situações narradas por Szifron pelo menos adiaram suas intenções e anseios vingativos mais íntimos e velados ainda assim permanecerá em aberto. Talvez seja mesmo impossível saber o quanto a linguagem cinematográfica é capaz de conduzir e elaborar o pensamento individual, se é que ela pode pretender ser em si mesma mais do que mais uma fonte, entre tantas, de lazer e prazer intelectual. É certo que muitos cineastas não gostariam que sua obra fosse reduzida a mero objeto de consumo, disso tenho certeza absoluta, mas nem todos pensam assim e, dessa forma, o cinema se mantém atingindo muitas e muitas pessoas, ao contrário de outras artes e produções culturais mais elitizadas.

Dracula Untold é, por sua vez, um filme de ação projetado para ser exatamente um objeto de consumo, na esteira de uma extensa fila recente de filmes sobre vampiros, sobre um roteiro que busca as origens do Drácula de Bram Stoker, mas não tem para com este nenhum compromisso. O tom é épico e busca recriar a atmosfera bélica entre romenos e turcos, quando Vlad Tepes, o empalador, ajudou a Europa a deter o avanço do império Otomano, no séc. XIV, isso de acordo com os livros de História.

No filme, Vlad busca forças sobrenaturais para defender seu povo e executar sua vingança pessoal e as encontra através de uma criatura amaldiçoada, um vampiro com remotas origens greco-romanas. Mesmo sabendo do risco de tornar-se ele mesmo um outro vampiro, no filme Vlad não vê outra alternativa e une em si mesmo o desejo de vingança política e pessoal, sacrificando sua própria humanidade. A vingança para Vlad parece não ser uma questão de escolha, mas sua sede insaciável por revanche converte-se como em uma espécie de pensamento obsessivo, não muito distinto daquele que embota a razoabilidade das pessoas que desejam aniquilar a contrariedade e costumam clamar pela morte alheia como tábua de salvação de alguns males mundanos, sejam de ordem política ou pessoal.

Entre a tolerância e a vingança, até mesmo no cinema a distância parece ser descomunal. Se é possível encontrar listas imensas de filmes que enfocam a vingança e lembrar qualquer um destes títulos não exige grande esforço, a tolerância enquanto argumento cinematográfico parece não viver seus melhores dias. Na internet, onde há listas e rankings para praticamente qualquer assunto, não só não é nada fácil encontrar listas evocativas em relação à tolerância como nas redes sociais as fanpages destinadas à vingança e suas formas e fórmulas são extremamente populares, ao passo em que as que tratam da tolerância e de suas variantes quase nem existem; e, quando existem, costumam ser desérticas em termos de seguidores e compartilhamento.

O que isso prova? Não tenho a menor ideia. O fato inegável é que as pessoas parecem comprazer-se mais em testemunhar atos vingativos do que em demonstrações do que se poderia compreender como elementos de uma “cultura de paz”. Uma outra explicação seria de que o desejo de vingança poderia ser um tipo de reação natural frente ao sentimento de injustiça enquanto que a tolerância implicaria em algum investimento cultural e moral, notadamente em baixa nestes tempos em que a linguagem da violência parece prosperar e manifestar-se com bastante veemência.

Também há que se considerar que a tolerância impõe por ela mesma um tipo de paradoxo, dado que exigiria sua aplicação inclusive no que se refere às manifestações do seu anverso, a intolerância, porque ela mesma não poderia ter um valor seletivo senão fracassaria em sua própria formulação. De outro modo a vingança parece mesmo ser um “prato” que, mesmo frio, cumpriria a função de alimentar e saciar aquele que é vingado. Talvez não seja mesmo possível concluir se o cinema requenta a fórmula vingativa porque ela é mesmo psiquicamente desejada ou se é ele que a oferece como prato preferencial, colaborando para um público adicto e ainda mais crente nas soluções belicosas para os impasses morais de toda a ordem. Seja como for, no olho por olho e no dente por dente, pelo menos no cinema a “cultura de paz” parece estar levando a pior. No mundo real talvez se dê o mesmo.

Os lumes de Mia Couto e a voz de Herberto Helder

Unir em um mesmo texto dois poetas sem que se procure compará-los pode parecer, num golpe de vista, tarefa das mais impraticáveis. Como me situo entre aqueles que não acreditam na possibilidade ou utilidade de comparar-se a poesia de alguém com outrem, então não será necessário procurar comparações aqui. Mesmo que isto implique no risco de aproximar ou abreviar inadvertidamente a distância poética que há entre dois dos grandes poetas vivos da língua portuguesa, o português Herberto Helder e o moçambicano Mia Couto, quero insistir um instante só nessa tentativa. Tenho algumas razões para isso. Vou explicando.

A não ser pela escrita em versos e pelo uso do mesmo idioma, os nomes de Herberto e Mia Couto não costumam aparecer juntos. Sem que, contudo, sejam antípodas, o trato que têm para com a língua também não é muito semelhante (não diria o mesmo sobre o cuidado). E isso, no meu ponto de vista, é um exemplo vivo de como o idioma português abriga mais do que vernáculos específicos, mas muitas e muitas formas de dizer. A expressão poética de um e de outro são amostras sensíveis dessa diversidade muito característica: a diversidade lusófona. Coisa que, num país continental como o Brasil, poderia perceber-se simplesmente como sotaque.

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Não é sobre as características linguísticas destes dois poetas que quero falar, entretanto. Pelo menos não prioritariamente. É que 2014 já vai escorrendo pelos cantos do calendário e foi justamente neste ano que ambos os autores voltaram a publicar seus versos, sem que isso fosse quase notado no Brasil. Mas como pode uma coisa dessas?

A resposta é simples e deve ser direta, sem tergiversações. Vivemos, no Brasil, como numa ilha editorial. Submetidos a uma lista exaustiva de autores irrelevantes e meramente comerciais que frequentam e alternam-se nas listas dos mais vendidos com autores religiosos e biografias de encomenda a perder de vista, não temos tido o direito de acompanhar a edição – ao menos com alguma concomitância razoável – de escritores consagrados e reconhecidos como Mia Couto e Herberto Helder. E isso que se pode, em ambos os casos, tranquilamente poupar custos com tradutores. Mas nem assim.

Pelo menos no caso de Mia Couto e seu Vagas e Lumes, a internet e os e-books puderam resolver minha curiosidade e o desejo de conhecer seu novo livro de poemas. Seja na Editorial Caminho, de Portugal, ou na Amazon.br pode-se comprar com tranquilidade o e-book e recebê-lo no mesmo instante.

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Já A Morte Sem Mestre, de Herberto, é praticamente um livro inacessível. Programado pelo próprio autor para ter uma tiragem restrita (5.000 exemplares), não há registro de previsão de que um dia possa existir em versão digital. A ausência apenas poderia ser resolvida, portanto, através de uma editora interessada em publicar por aqui o autor de “O Poema Contínuo”. E aí, então, formula-se de forma autônoma a seguinte questão: mas alguém, neste mundo pragmático e tecnológico, ainda interessa-se por poesia? Pelo menos a não consagrada em memes de redes sociais? Ou seja, qual o retorno editorial possível em publicar um autor que parece fazer questão de esconder-se?

Difícil responder, senão impossível. Melhor nem tentar, por via das dúvidas.

Encerrada a sessão de reclamações, quero tentar comentar, enfim, um pouco sobre os livros. Nem tanto sobre os livros enquanto objetos, na verdade, mas sobre o que me impactaram e me pareceram em relação ao que vai por dentro deles, através das palavras de um e outro.

Vagas e Lumes é o terceiro livro de poemas que Mia Couto publica, embora muitas pessoas garantam que ele esconde poemas aleatoriamente entre seus livros de ficção. É uma prática questionável, principalmente para quem não gosta de encontrar poesia em narrativas. Gostando ou não, foram os seus livros de prosa que o fizeram um fenômeno de vendas no Brasil. Injustiça minha, foi sua qualidade. Se poéticos demais ou de menos, isso pouco importa. É muito bom contar com alguém como Mia Couto escrevendo originalmente em língua portuguesa, mesmo que do lado de lá do Atlântico.

Talvez de uma maneira não premeditada, a escolha do título incide precisamente em uma das impressões que fiquei do livro. Os poemas não são uniformes nem têm a mesma intensidade. Compõe-se de uma geografia e de uma humanidade visíveis nos romances que já escreveu. Apenas que, na forma poética, adquirem mais vida as impressões do romancista, aquela vista como se por olhos entreabertos, mesmo quando invadidos pela aspereza do mundo, suas paisagens e os sentimentos das criaturas e personagens desse universo peculiar que ele evoca muito nitidamente. Não ouso dizer quais os grandes momentos do livro para mim, porque não há coincidência possível nesse sentido. Que cada um os encontre, como cada um encontra a poesia onde ela se torna possível como experiência de leitura.

A Morte Sem Mestre, embora pareça um livro que não se queira lido – e constitua-se no mesmo gênero de Vagas e Lumes -, talvez seja quem queira ler e encontrar seus leitores. Que a poesia de Herberto não se pode ler impassivelmente não é uma novidade para quem já o conheceu, mas A Morte Sem Mestre o encontra desafiando a existência, como se provocando a morte a revelar-se. Mas, ao contrário de um poema que acaba, o poeta ali se desafia a continuar, mantendo-se em uma trajetória iniciada na década de 50 do século passado, chegando aos 85 anos de idade como a maior voz lírica da poesia portuguesa.

A tarefa de resenhar um livro que praticamente não existe é das mais perigosas. E se o livro for de poesia, a dificuldade apenas se amplifica. Para aqueles que não puderem encontrar mais o livro de Herberto nas livrarias (ele praticamente esgotou-se no mesmo dia do lançamento em Portugal), resta conformar-se com uma cópia (não autorizada) do CD que acompanha o livro postada no YouTube, onde Herberto, que já foi locutor de rádio, lê ele mesmo alguns dos poemas de A Morte Sem Mestre.

Apesar da minha primeira razão para unir ambos os poetas tenha sido, sim, esbravejar (admito) contra a inércia editorial que se pratica com a poesia universal por parte de um bom número das editoras brasileiras, a segunda razão consiste tão somente em mostrar que a poesia em língua portuguesa ainda conta com grandes autores vivos que merecem ser conhecidos e reconhecidos em vida. Muito embora as novas gerações de autores sobreponham-se incessantemente, isso acontece cada vez mais de uma forma quase irreconhecível e impossível de acompanhar.

A terceira e última razão é um mero apelo à lógica. Se aquelas iniciativas editoriais que buscam novas dicções deixam de perceber a aparição editorial de poetas como Mia Couto ou Herberto Helder, sem demérito algum da renovação sempre desejável, como é possível desejar que a poesia de novos autores seja valorizada e torne-se visível? Se alguém tiver a resposta para este imbricado enigma, por favor, faça a gentileza de me ajudar a entender…

Quarenta vezes Zero

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Uma das maiores injustiças que poderia acontecer no ano de 2014 seria passar batido o quadragésimo aniversário de um marco da literatura brasileira, o romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. É claro que nem a literatura nem a crítica deveriam passar muito tempo olhando para o passado, como se num lamento evocativo, mas são tantas e por vezes tão exageradas as homenagens a autores e obras que uma a mais não há de fazer diferença. Nesse caso, precisamente, eu penso que poderá fazer, mas por outras razões.

É preciso dizer inicialmente que não há a possibilidade de aqui encontrar-se spoilers, a não ser para aqueles que ainda não tenham conhecido José (assim mesmo, sem sobrenome), personagem central de Zero. Sobre ele é o primeiro parágrafo do romance, em tudo revelador:

“José mata ratos num cinema poeira. É um homem comum, 28 anos, que come, dorme, mija, anda, corre, ri, chora, se diverte, se entristece, trepa, enxerga bem dos dois olhos, tem dor de cabeça de vez em quando, mas toma melhoral, lê regularmente livros e jornais, vai ao cinema sempre, não usa relógio nem sapato de amarrar, é solteiro e manca um pouco, quando tem emoção forte, boa ou ruim.”

Não. Não há spoilers aqui. Trata-se de um livro que sopra já quarenta velhinhas de idade e, mesmo assim, é muito difícil não surpreender-se ainda hoje com a dinâmica alucinante que acompanha o personagem José por uma paisagem tão precária como sua própria trajetória de vida, arrastada do subemprego e da marginalidade à luta armada. Então, por prudência e para preservar o direito à surpresa de todos aqueles que nunca o leram mas poderão ainda motivar-se a isto, não haverá aqui uma menção sequer ao enredo e desenredo do romance. A motivação oculta para isto é que, como aqueles que já o conhecem sabem muito bem, esta é uma tarefa praticamente impossível.

Publicado pela primeira vez na Itália, Zero não agradou inicialmente a nenhum editor brasileiro. Efetivamente, naquele ano publicá-lo seria razão certa para cefaleia posterior para qualquer editor. Ainda assim, um ano depois ele apareceu em terrae brasilis, para sumir das livrarias logo em seguida. Para isso, foi preciso que um abaixo-assinado reunindo centenas de intelectuais solicitasse esse favor à censura. Esse ciclo de aparição de Zero durou pelo menos mais uns cinco anos. Foi quando eu o conheci, perto de 1980, através de um furto qualificado que pratiquei contra meus irmãos mais velhos, orientados a manter o volume o mais distante possível dos meus olhos infantis. Não conseguiram evitar meu sucesso.

Como talvez nenhum outro romance da literatura brasileira, Zero foi e ainda é um livro altamente subversivo. À época de seu lançamento, uma subversão principalmente de cunho político. Mas, desde lá e ainda hoje, uma subversão estética e das tradições literárias e de todas as demais tradições e costumes evocáveis naquele longínquo 1974.

Ainda hoje eu guardo a impressão de que Ignácio escreveu todo o Zero e em seguida o picotou. Depois, na minha imaginação, teria colocado os picotes naqueles globos de sortear mega sena e foi tirando de lá e colando novamente no papel, até ganhar uma nova forma e coerência. E isso não deixa de ser um pouco a verdade, porque foi em Zero que pela primeira vez utilizou-se na literatura brasileira a técnica dos cut-ups, colagens que William Burroughs consagrou principalmente em Naked Lunch (Almoço Nu), publicado nos EUA em 1959.

O uso da técnica, todavia, não implica em dizer que é um livro escrito e pensado ao acaso. Seu protagonista, José, faz a trajetória do trágico circunscrito pelo real surreal. Para José, o cotidiano é de uma complexidade avassaladora, porque ele está imerso em uma sociedade decomposta, razão que pode explicar a opção de Ignácio em construir uma história absolutamente fragmentada.

Há quem atribua a Zero o qualificativo de “grotesco”, talvez pelo pleno uso do coloquial e do “baixo calão”. E o livro até poderia receber esse adjetivo, mas apenas caso se localize o grotesco pelo traço distorcido, pela pincelada excessiva, conforme é compreendido nas artes visuais. De outra forma, tomá-lo por bizarro seria uma tentativa de reduzir o impacto de um romance nascido de reportagens censuradas e situações absurdas, porém mais absurdas ainda pelo enorme realismo dos recortes e enquadramentos criados por Ignácio.

De certa forma, como Émile Zola já havia realizado na França, em fins do século XIX, com o monumental empreendimento de Les Rougon-Macquart, Zero consegue restaurar o vigor naturalista do que também poderia ser considerado um novo romance experimental. Ainda mais ao considerar-se que suas características formais tivessem mais por base a linguagem jornalística que qualquer outra tradição narrativa. A fluidez dos cut-ups, ilustrações e cortes abruptos, além do panorama multidimensional, transforma Zero em um romance com características inauditas e ao mesmo tempo inigualáveis, porque ocupa na história recente da literatura brasileira um lugar até então desocupado e, posteriormente, sem seguimento.

O Zero de Ignácio de Loyola Brandão ainda desafia os novos autores a tentar o caminho do imprevisível. Seja pelos personagens caóticos e psicologicamente complexos quanto pela falta aparente de estrutura, o romance é ao mesmo tempo referência e sombra que se projeta sobre a literatura posterior a ele. É referência por deslocar aos subúrbios e ao mundo da pobreza o foco literário sem nenhuma condescendência sociológica. E é sombra porque exige da inovação literária bem mais que a utilização de quebra de esquemas e desvios narrativos, senão uma corrida com a própria liberdade criativa, sensação muito presente e comum para autores e artistas formados na agitação dos anos sessenta, mas visivelmente uma relação que vem se deteriorando bastante desde então.

A passagem de quarenta anos poderia ter tornado Zero um livro velho, uma sucata. Pelo contrário, o tempo ainda o faz um romance revelador, tanto em aspectos formais quanto sobre seu conteúdo, principalmente para leitores que conhecem pouco ou começam a conhecer agora a literatura produzida no período em que o Brasil esteve privado da democracia e o estado de exceção e a censura naturalizados. Algumas pessoas afirmam que é nos períodos mais críticos da história que as grandes obras são criadas. Então, por consequência lógica, nós brasileiros devemos mesmo estar passando muito bem, porque não é nada fácil encontrar romances tão impactantes como Zero por aí.

Dramalhão simiesco

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Eu devia ter imaginado, mas acho que não quis acreditar que transformariam o excelente filme de ficção científica que fora Planeta dos Macacos – A Origem num dramalhão simiesco como se viu em Planeta dos Macacos – O Confronto. Na verdade, achei que não conseguiriam tal feito, porque o argumento todo já estava pronto e a presença magnética de Andy Serkis interpretando o líder Caesar deveria indubitavelmente garantir algumas horas de confortável alienação mundana.

Não foi o que me aconteceu. Pelo contrário, a poltrona do cinema parecia querer me enxotar dali o tempo todo. Principalmente quando os olhares dos macacos pareciam querer inspirar comoção e sentimentos evoluídos. Por ter acreditado que o roteiro poderia resolver satisfatoriamente o embretamento em que colocou o líder Caesar e seus comandados, resisti. Mas, infelizmente, não foi o que se confirmou. Trata-se, talvez, de uma continuação que por sua vez também não resistirá ao tempo. Talvez, nem à temporada de exibição.

Resvalar na pieguice parece às vezes ser uma regra de ouro das continuações. Lamentável que um dos personagens mais interessantes do cinema de ficção científica dos últimos anos, o símio Caesar, tenha sido, em Planeta dos Macacos – O Confronto, reduzido de líder revolucionário a um reles macaco chorão. Não será a primeira vez que um personagem auspicioso é derrubado de seu possível engrandecimento pela necessidade de preenchimento de cenas. Eu pensei que Caesar resistiria a isso tudo, mas a concepção lacrimosa em que se investiu na continuação parece que desandou com a “mística” do antropoide.

Assim, dessa forma melancólica, saí do cinema com a nítida impressão de tempo perdido e dinheiro mal empregado. Não que eu estivesse esperando exatamente pela reedição de um clássico do cinema, mas é que o reboot de Planeta dos Macacos – A Origem foi um filme surpreendente, a começar pela expressividade estupenda que o ator Andy Serkis emprestou a Caesar e, a seguir, por um roteiro impactante e repleto de dilemas morais comuns aos parentes ditos mais evoluídos, o que colaborou substancialmente para o engajamento dos espectadores. Pelo menos desses que usam moeda para obter as coisas.

Seja pelo início expresso, no qual se explica a propagação de um vírus que dizimou meia humanidade ou mais e colocou o mundo de ponta a cabeça, ou pelo desenvolvimento arrastado, o filme não trás descobertas, revelações, insights ou surpresas. E aquilo que seria razoável supor, de que os macacos evoluiriam culturalmente a partir da aquisição de habilidades inteligentes, não acontece. Eles brutalizam-se, na verdade. E o filme todo caminha nessa direção, colocando em oposição o que se poderia chamar de duas lideranças proto-políticas, antes indissociáveis, o líder Caesar e o truculento Koba, animado pelo ator Tony Kebbell.

Enquanto um haveria colecionado doces lembranças de sua criação por um humano afetivo, conforme o exibido no filme anterior, o outro fora exposto a toda sorte de experimentos e violências, razão pela qual não consegue confiar nestes nem por um instante. O momento em que eles discutem e tomam caminhos distintos na relação com os humanos é provavelmente o ponto alto do filme. Se há uma cena impactante na sequência, é esta em que Koba mostra ao então amigo e líder as cicatrizes que os amistosos humanos cravaram em sua pele e explicita as razões de sua desconfiança para com aqueles.

Apesar de que a violência de Koba depois disso deslanche descontroladamente, seu gesto acaba por querer demonstrar que seria inútil empreender contra os mais poderosos e que a revolta acaba por voltar-se contra os próprios revoltados. Esse argumento, entretanto, não salva o herói macaco Caesar de ceder totalmente à condição de espécie subalterna, mesmo sendo ele o exemplo máximo de sua própria espécie. O impasse subjacente à trama, portanto, equivale ao que seriam eleições na floresta, nas quais nem sempre vence o com mais razões e nem perde o menos capacitado. E o final, sangrento e explosivo, não deixa nada a desejar a outros filmes com seres energúmenos, animais ou não. A bem da verdade, se o filme fosse reclassificado de “ficção científica” para “ação” ou “aventura” pelo menos um pouco de justiça seria feita ao gênero original da série.

No clinch, com Eliane Brum

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Há livros que jamais deveriam ser resenhados, principalmente aqueles que tratam da subjetividade de seus autores. Além de não existir forma possível ou tamanha de abordar a subjetividade de quem quer que seja, há livros que parecem ser exclusivos para a leitura. Deveriam ser apenas lidos e os leitores deveriam dar-se por satisfeitos em apenas receber o seu conteúdo, seja ele um afago ou um cruzado no queixo. E abster-se de comentá-lo, pelo menos tanto quanto possa. Poucas horas depois de conhecer o novo livro de Eliane Brum, Meus desacontecimentos – a história da minha vida com as palavras, entretanto, já me sabia traído em minhas próprias ressalvas e crenças.

Imagine por um instante que você é um fã de boxe e lhe oferecessem a oportunidade de encarar os golpes de um Mike Tyson ou um Muhammad Ali, por exemplo. Qual atitude tomar? Fintar? Esgueirar-se? Tremer de medo? Fugir? Bem, se o exemplo fosse transposto ao papel de um leitor diante de um livro, meu desejo seria o de justamente procurar receber, na carne, os melhores golpes possíveis. Nada menos que isso. Mesmo que isso acontecesse inadvertidamente ou, melhor, principalmente nesses casos.

Se a leitura jornalística é muitas vezes indolor, sem falar de quando é apenas insípida, a literatura – especialmente a de cunho biográfico e subjetivo – tem outra característica. Conheço poucos escritores de quem nunca li um texto insípido e Eliane Brum é uma dessas pessoas. Não sei se conscientemente ela procurou afastar-se dessa qualidade de texto, mas minha intuição diz que o logrou apenas por não ter evitado a dor e por ter sabido reconhecê-la nas situações mais periclitantes – de quem se despoja realmente para conhecer a vida dos outros – e também nas mais comezinhas, de quem se aproxima o suficiente das pessoas para distinguir a beleza da mera tolice.

Desde o lançamento de seu primeiro romance, Uma duas, venho dizendo que Eliane é um autora boxeur, cuja perícia reside principalmente em jamais fustigar o leitor, mas em levá-lo de forma imperceptível ao colapso do reconhecimento. De posse desta informação e de minha teoria particular, julguei que seria simples encarar seu novo livro. Depois de anos acompanhando sua trajetória, da Zero Hora ao El País, parecia que poderia antever, num lance de olhos, seus movimentos, o jogo de pés, a velocidade dos jabs e o momento assombroso (e por que não desejado?) do knock-out. Uns dirão que isso beira o masoquismo ou a veneração, mas não é nem uma coisa nem outra. É que não se pode esperar de um dragão que se comporte como um camelo. Ou um golfinho. Um dragão “é” o dragão e a expectativa pelo fogo que adormece dentro de sua garganta será sempre mais poderosa que as chamas e labaredas expostas a público.

Pelo menos de forma aparente, um boxeur tem sempre sua estratégia, suas armas e golpes fatais. Até que os coloque em prática, entretanto, é como se estivesse em cena pela primeira e última vez. Muitos deles procuram revisar ensaios ou praticar ao espelho. Ou aos sacos de areia, até. No caso dos escritores, é preciso também fazer opções e Eliane não se furtou a fazê-las, mesmo tendo diante de si uma ameaça do seu mesmo porte. Sua opção, em Meus desacontecimentos, foi por encarar a si própria, colocando a subjetividade nas luvas e usando os punhos com o mesmo empenho que encarasse o mundo externo. Ao reencontrar-se com o passado, o que Eliane permite é que se veja mais do que comumente se vê nas pessoas. Aos poucos se pode reconhecer o estilo, os movimentos, os olhos por trás das mãos e, com a luta suspensa, já sem as luvas, as próprias mãos. Os cruzados não devem demorar, nem os ganchos, mas eles acontecem em direções insólitas e, ao invés de atingir a alvos específicos, distendem um conhecimento que se dirige cada vez mais para dentro.

Sabendo de tudo isso, abri o livro. E não fechei até terminá-lo. O que encontro é mais ou menos como o visto mais cedo, na sessão de autógrafos. São pessoas estranhas a mim, lembranças muito remotas e particulares, algumas imagens fugazes de lugares do passado e a boxeur ali, em um dos cantos do quadrado. Dentro e fora do livro, a luta não começa, desacontece. Alguns leitores, quero dizer, pessoas da plateia, dizem que viram-na ensaiando golpes no ar, como se contra um adversário imaginário. Por um instante temo por sua integridade, adversários imaginários são imprevisíveis. Mil vezes encarar um Mike Tyson, claro, de preferência se aposentado…

Mas a noite é de autógrafos, não de sacrifícios. Eliane não está na lona, muito menos submersa nela. Pelo contrário, aparece livre de qualquer coisa que lembre artefatos de luta. Nem imagino em que ringues e sobre o que ela deitará as mãos no futuro, mas graças a Meus desacontecimentos percebo com mais nitidez o que a faz assim, como a digo, uma boxeur. É que boxeurs não esperam passar ilesos pela vida nem conhecê-la de raspão. Boxeurs não são especialistas da sobrevivência, mas da entrega. Enquanto não chega meu momento de pegar o autógrafo, avalio de longe sua figura e fico muito tranquilo por constatar que está inteira ali, sem exibir seus hematomas como troféus, mas nem por isso, imagino, que incólume… Feliz por vê-la sorridente encontrando seus leitores e por abraçá-los fora de um clinch.