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Outros outubros virão

Em torno ao ano de 1978, a parceria musical entre Elis Regina e Milton Nascimento já andava em vias de debutar, quer dizer, acontecia há pelo menos quinze anos. Suas carreiras, embora acontecessem em planos transversais, marcaram-se mutuamente como um dos mais emblemáticos encontros da música brasileira dos anos 60 e 70. De suas composições sempre muito dramáticas e provavelmente das mais politizadas do repertório dela, Elis colheu momentos de intensidade inigualável. Isso desde as primeiras gravações de Morro Velho e Canção do Sal até a derradeira O Que Foi Feito Devera, registrada por primeiro no Clube da Esquina Nº 2 de Milton.

Foi no livro Os Sonhos Não Envelhecem que encontrei uma história muito interessante a respeito da dupla letra composta para a melodia de Milton. Márcio Borges, o autor do livro e de uma das versões da letra, conta que pouco antes de voltar ao estúdio para gravar o Clube da Esquina Nº 2, Milton andava viajando muito ao exterior e angariava onde passava o reconhecimento de prestigiados músicos de jazz, rock e principalmente da crítica internacional. Um dia, de volta ao Brasil, ele então pediu aos seus dois principais letristas – o próprio Márcio Borges e Fernando Brant – para que fizessem, sem sabê-lo, cada um uma letra em separado para a melodia. Márcio compôs a que ficou conhecida como O que foi feito de Vera, alusão a letra de Vera Cruz, composição de 1968 gravada em Courage e na qual Márcio fala sobre os muitos exílios políticos que andavam acontecendo em “Terra de Vera Cruz”, o primeiro nome dado pelos conquistadores portugueses ao Brasil. Uma década após a Vera Cruz original, finalmente se anunciavam os ares da abertura e o retorno de muitos dos exilados de então, com “a tribo toda reunida” surgindo como esperança central da abertura e campanha pela anistia.

De sua parte, Fernando Brant escreveu a letra de para O que foi feito devera. “Devera” do futuro mais que perfeito do verbo “dever” (segundo uma amiga mineira, “devera” é em mineirês corruptela do advérbio “deveras”). E, da mesma forma que Márcio, buscou na redemocratização emergente do país inspiração para imaginar e prever que “outros outubros virão, outras manhãs, plenas de sol e de luz”. Fernando parecia impregnar-se de um esforço maior em responder à indagação que Milton teria também lançado aos dois, junto à melodia proposta: “o que foi feito de nós?” Esta última pergunta/último verso presente nas duas letras.

Nesse ponto é interessante notar que enquanto Márcio recorria ao passado idílico e o drama dos povos indígenas (nas parcerias dele com o irmão Lô Borges e Nelson Ângelo, a temática indígena aparecia com muita força, basta ver as faixas Pão e Água, Ruas da CidadeTestamento e Canoa, canoa do mesmo Clube da Esquina Nº 2), Fernando procurava realizar um espécie de acerto de contas com o passado recente e, ao mesmo tempo, uma autocrítica, porém lançada em direção ao porvir. “E o que foi feito / É preciso conhecer / Para melhor prosseguir”, ele compôs para que a voz de Elis Regina logo tratasse de imortalizar letra e melodia, como acontecia com praticamente tudo o que cantava.

Em 1978, enquanto Milton buscava realizar o sonho de fazer um disco tão colaborativo quanto havia sido o primeiro Clube da Esquina, Elis fazia a tournée de Transversal do Tempo, disco em que mais uma vez reunia a fina flor dos compositores brasileiros seus contemporâneos. O que foi feito devera, no entanto, só apareceria em disco em Saudade do Brasil, de 1980, e no póstumo O trem azul, de 1982. Mais ou menos cinco anos antes de sua morte, Elis continuava a fazer o que se habituara ao longo dos últimos anos: procurar entre novos compositores da música brasileira o que vislumbrar em matéria autoral. Ela, que havia arrebanhado ao seu repertório e discografia uma amostragem muito significativa de uma ou duas gerações de compositores de todo o Brasil, tinha o costume de receber em casa dezenas de gravações de compositores que a viam certamente mais que como um radar musical ou uma merchant avançada, mas alguém bastante livre de preconceitos para com o que pudesse despontar de novo na música popular. Isso se comprova na sua muito bem conhecida última entrevista, na qual, entre outras coisas, dizia estar atenta à emergente cena paulistana. Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, principalmente. Ao mesmo tempo, continuava a rever seus “fornecedores” mais antigos. Milton, no caso, muitas vezes declarou sua total devoção e até mesmo que compunha pensando mais na interpretação dela do que na sua própria.

Na minha humilíssima opinião, O que foi feito devera na versão de Fernando Brant e cantada por ela tornou-se o grande bastião musical da redemocratização e da campanha pela anistia e de uma ou duas gerações de brasileiros que, retomando a democracia, tinham, além do direito de sonhar um país mais livre e menos desigual, convicção de que deviam e poderiam fazê-lo. No entanto, quarenta anos após sua composição (1978 – 2018), a pergunta que me cala ainda é – “o que foi feito de nós?” – e que se repete como se num jogo infinito: o que foi feito de nós do que foi feito de nós do que foi feito de nós e assim ad infinitum

Há três anos, em 2015, faleceu Fernando Brant, talvez a única pessoa em condições de responder sinceramente a essa pergunta. Seria, sem dúvida, uma pergunta um tanto quanto indelicada. Não se trataria de colocar em julgamento o desejo utópico de uma geração embalada pelo sonho de um mundo melhor, mas de saber dela própria o juízo sincero a respeito não de como as coisas deveriam ser e estar a essa altura da história nacional, mas se efetivamente seriam pessoas satisfeitas com o seu próprio empenho e desempenho, ou se não.

Através da própria letra de Fernando, creio muito que ele teria a coragem necessária de dizê-lo “por acreditar / que é cobrando o que fomos / que nós iremos crescer”. Então, sem mais demora, são essas as mesmas perguntas que eu gostaria de fazer, se pudesse, aos meus contemporâneos e adjacentes: em algum momento cobramos mesmo o que fomos? Acreditamos ainda hoje mesmo no que dizíamos e dizemos? Crescemos, afinal, com o passar do tempo, ou permanecemos à deriva do sonho (e ao bel prazer dos mares revoltos do real)?

Em algum trecho de seus livros, é dito que Freud teria antecipado algo de visionário sobre a visão dos poetas a respeito do mundo. Não sei em qual livro ele o teria escrito, mas a frase solta diria algo como “os poetas sabem antes”. O que teria sido, de acordo com Leyla Perrone-Moisés*, confirmado por Jacques Lacan em seus estudos sobre o psiquismo literário em Fernando Pessoa. Imagino que não se trate de um dom premonitório que atenda aos poetas e escritores, mas de uma concepção de espaço/tempo e do drama humano numa dimensão não usualmente tomada em consideração. Para mim, que situo Fernando Brant entre os mais importantes poetas/cancionistas da música brasileira, confere em apenas verificar na sua letra que, de acordo com ele, a projeção do futuro naquele momento incluía também uma autocrítica geracional e o sopesamento da própria história.

Nesses últimos quarenta anos (1978 – 2018) mais de uma geração nasceu e cresceu por aqui. Meus próprios filhos são posteriores aos millenials, aos nativos digitais, à geração “Z”. Elis Regina não chegou sequer a ver a concretização da abertura e as eleições presidenciais de 1989; morreu em 1982, ano em que se iniciava a grande mobilização popular em torno das Diretas-Já e que culminariam na ascensão da Nova República, no pós-constituinte de 1988. Também já não há as letras politizadas de um Fernando Brant a embalar os sonhos geracionais de agora (se é que os há), subitamente despejados na vertigem da realidade da derrocada do projeto da esquerda e no surgimento de uma resposta à direita, como a que deverá se confirmar, de acordo com as pesquisas eleitorais recém divulgadas, nas eleições de depois de amanhã, no próximo domingo (28/10), o último do mês de outubro deste ano.

Para mim, que fui praticamente embalado sob a trilha do Clube da Esquina Nº 2, é impossível evitar de que voltem a martelar mentalmente os versos de O que foi feito devera, principalmente no que dizem “outros outubros virão” e da condição incessante da história. Ainda que chegue eu mesmo derrotado de véspera a uma eleição cujos protagonistas me parecem estranhíssimos sobretudo às necessidades futuras do país, não encontro mais onde (talvez esse sentimento se repita de uma ou outra forma em toda a minha geração) depositar esperanças, justamente a “matéria-prima” das letras mais duradouras compostas pela dupla Milton e Fernando e interpretadas por Elis.

“Mais vale o que será”, diziam os gigantes da música brasileira em plena década de 70. Mas o que “seria” não necessariamente “foi” e o assombro deste “vir a ser” ainda hoje adiado, sobretudo quando diz respeito a uma nação pacífica e solidária, parece cada vez mais extinto nos versos daqueles poetas e também nas esperanças populares. Certamente “outros outubros virão”, mas agora somente mesmo para as novas gerações. O sentimento de fracasso que me acomete é o de não poder lhes entregar – a meus filhos (e nosso filhos e netos) – o que lhes seria devido, já que nossas melhores intenções deveriam visar muito mais o seu futuro do que o nosso próprio.

Há várias versões – todas desconhecidas – sobre a origem de uma frase por certo muito antiga que afirma que “não herdamos a terra dos nossos ancestrais, mas a tomamos emprestada dos nossos filhos”. Parece que ela pode ter origem na Índia, na China ou em algum povo ameríndio pré-colombiano. Só não tenho dúvidas de que ela NÃO é brasileira, a não ser que entrevista no que tentou nos dizer o “verso menino que escrevi há tantos anos atrás” de um Fernando Brant e ninguém parece ter prestado a devida atenção, porque desatendemos deliberadamente o futuro sem nenhuma solenidade – a minha geração – como se fosse seu principal direito a desconstrução indiscriminada de tudo: esperança, democracia, passado, presente e até mesmo o futuro dos nossos. Como Fernando, “falo assim sem tristeza”, mas com uma muito profunda vergonha dos meus filhos e netos por isso.

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* Perrone-Moisés, Leyla. Pessoa e Freud: “translação” e “sublimação”. Ide (São Paulo) [online]. 2011, vol.34, n.52, pp. 237-246. ISSN 0101-3106. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062011000100025

Sobreviventes

Em fins da década de 70, Caio Fernando Abreu escreveu o necrológio do que havia de movimento hippie no Brasil de então. É um poema que está publicado no livro “Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu”, da Ed. Record, e chama-se “OS SOBREVIVENTES”.

Este tipo humano, exatamente assim, já meio fora de tempo e um pouco perdido, eu ainda conheci na minha infância. Pelo menos no interior do RS havia quem procurasse essa indumentária, essa caracterização hippie clássica: cabelos longos, batas indianas, sandálias de couro e um olhar ao mesmo tempo de resistência e estranhamento. Os anos 80 já batiam à porta e a redemocratização brasileira idem. Alguns viviam em modos realmente alternativos, sobrevivendo do artesanato e até de venda de poesia mimeografada. Lembro disso muito bem. Havia, ao lado de muita gente fantasiada, sobreviventes de verdade.

Nessa mesma época prosperava também outro visual comum entre as pessoas mais ou menos da mesma faixa etária. Era o visual do movimento estudantil, politizado. O cabelo não era longo, motivos peruanos e/ou indianos não eram habituais, não usavam drogas e até condenavam-nas por suposto apelo à alienação. A camisa dentro das calças, a cabeça dentro de livros de formação e os ícones, ao invés dos ídolos do rock como Janis ou Lennon, concentravam-se mais em figuras revolucionárias: Che, Lenin, Trotski, etc.

Jovens demais para terem participado da resistência à ditadura ou da luta armada e de certo modo como os hippies de então, encarnavam uma fantasia político-espiritual: tomar o poder, mudar o mundo. Não puderam. Os anos 80 foram implacáveis, crise sem fim, inflação monstruosa, TV a cores e música pop, cultura pop, política pop.

Os 90 continuaram na mesma batida e neles foi protagonizada a grande virada política de então, nas mãos do tucano Fernando Henrique Cardoso: a primeira reforma administrativa desde os anos 60, lei das organizações, novo modelo de assistência, saúde, privatizações e a destruição definitiva do sonho de Anisio Teixeira: universalização da educação. As prioridades voltaram-se ao mercado e sua relação patológica com o Estado brasileiro: esta mesma doença da qual padecemos hoje e nos custa bilhões sem fim.

Depois veio esta história recente, a de agora, em muito levada a efeito por aquela mesma geração dos anos 80, da redemocratização, do movimento estudantil mas já sem barra pesada, sem clandestinidade, que, assim como aqueles sobreviventes hippies, parece insistir em vender o incenso da sua “luta” ideológica sem perceber (ou se fazer notar) que sua imagem ficou fatalmente anexada ao dinheiro na cueca, ao aperto de mão com Maluf e a uma iconografia dramática, feita por sessentões barrigudos como aqueles de então, financiados por esse dinheiro aí, dessa matéria prima manuseada por Odebrecht e outros milagres brasileiros.

Caio Fernando Abreu virou meme e ninguém ainda escreveu sobre esses sobreviventes, nem quem lhes tente herdar a sucessão. A história virou vapor nas redes sociais e nos falta, como Caio fez com os hippies, quem nos esclareça sobre isso. Mas não falta quem recicle a pantomima.

É meio triste e não sei onde isso vai dar, mas agora só consigo sentir saudade dos primeiros sobreviventes.

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OS SOBREVIVENTES
Caio Fernando Abreu

Os sobreviventes
às vezes ainda aparecem
em busca de papo
ou qualquer coisa assim.

Ainda trazem os cabelos compridos
duas ou três pulseirinhas
alguns panos coloridos
ou um incenso nas mãos.

Só os olhos mudaram.
Aquela loucura das pupilas
aterrizou, virou espanto
de ter virado espanto.

Pois um sobrevivente
nunca imaginou que pudesse um dia
virar sobrevivente de um tempo
e de si mesmo. Mas virou.

Pelas tardes, de repente,
os sobreviventes ainda aparecem
procurando nos meus olhos
o que nos olhos deles já não existe.

Mas nada encontram.
Faz tempo, rasguei as fantasias
pendurei os colares nas paredes
mandei o pano indiano pra lavanderia.

Nos reconhecemos assim
esbarrando pela noite ou pelas tardes
feito zumbis de almas para sempre perdidas
no sonho que se foi. E que não volta.

O ofício agora é navegar sozinho.
Sem razão, sem porto, sem destino,
sem irmão nem mapa. Sobre-vivendo
à nossa própria morte. E isso é tudo.

Sampa. 23 de julho de 1979.