Arquivo da tag: Cristián Vazques

Mas escritor se aposenta?

Há alguns dias o assunto me persegue. Do nada, parece que despencam de qualquer lugar textos que procuram discutir a ideia de quando alguém que escreve literariamente se torna, de fato, um escritor ou escritora. Esta é a ideia central de Anos de Formação: os Diários de Emilio Renzi, do argentino Ricardo Piglia. É a mesma dúvida que encontrei no texto do também argentino Cristián Vazquez, A partir de quando um escritor se torna um escritor, publicado recentemente no blogue Letras in.verso e re.verso.

Seria talvez o que se pudesse chamar hoje de platinofobia aventar-se a hipótese de que este é um assunto que obsedia os argentinos, mas, antes disso, seria uma inverdade. Acredito que, quase sem exceção, toda a pessoa que procura escrever literariamente lá pelas tantas tenta localizar em si mesma, na sua solitária trajetória diante das inumeráveis folhas ou telas em branco, em que momento que a compulsão se estabeleceu por completo e se tornou indispensável, insuportável e inconcebível deixar de dedicar-se ao habitus.

Justamente esta ideia, de irrecusabilidade ao gesto, é o que defendem os dois escritores argentinos e também uma miríade de outros escritores. Isso se pode saber através, por exemplo, das dezenas de entrevistas que a prestigiosa Paris Review fez com escritores consagrados mundialmente, do séc. XX, e que foram traduzidas e publicadas por mais de uma vez no Brasil, pela Companhia das Letras. Trata-se do livro As entrevistas da Paris Review. Mas Piglia, no caso, se desvia bastante de Vazquez e de outros escritores que falaram sobre o mesmo assunto para o que ele denomina como o momento de “autoproposição” do escritor, isto é, o fato de debater-se com a impossibilidade de uma ficção privada, por um lado, e a de impossibilidade de uma plena comunicação pública, por outro.

Aqui, como já deve estar claro, não vou mencionar nem por hipótese a ideia de vocação,  dom, etc. Na verdade, apenas gostaria de apontar pontos em comum em relação ao que penso e o que pensam estes escritores, para além da irrecusabilidade já mencionada, com a qual concordo integralmente. Aliás, talvez seja esta a razão para eu estar aqui escrevendo isso, nesse exato instante.

Piglia, segundo seu alterego Emilio Renzi, escreve como que para perseguir sua própria biografia; um itinerário que começa desde que se descobre leitor até o último suspiro, contando-se aí absolutamente todos os momentos, todas as percepções, todos os gestos, todas as ideias de onde seletivamente extrai sua matéria empírica, ficcional. Mesmo que soe como um escritor totalitário, ele embaraça-se com a vida, não se distancia dela. O que apreende é que os outros deixam de notar, as razões ocultas dos gestos, as possibilidades que consolidaram aquelas razões, a sorte e os incidentes que fazem uma biografia. O escritor como vassalo de si mesmo, mas soberano de sua narrativa. Porém alguém que, uma vez publicado, declina definitivamente da solidão e deixa-se acompanhar por quem quer que lhe encontre em seus livros e palavras.

Vazquez é radical por outro viés (e eu nesse aspecto, talvez por escrever muita poesia, tendo a concordar mais com ele) e defende a ideia de que o escritor se faz ao escrever, naquele momento preciso da ação e prescinde de quem o leia, apenas vai descartando de si o texto e não tem expectativa ou relação alguma com o que dele poderá ser feito ou não. Sua missão acaba em sua própria finalidade. Para ele, não há escritor inédito, a tomada de posse da “titulação” se daria, portanto, diretamente ao escrever. Como no ensaio de Auden, o escritor acaba no último ponto e talvez nunca mais retome àquilo e ao estado de ânimo que recém o mobilizara. Juan Rulfo, J. D. Salinger e Arthur Rimbaud são alguns dos exemplos que ele cita de escritores que simplesmente aposentaram-se voluntariamente da escrita, ou seja, deixaram de ser escritores.

Eu simpatizo com ambas as ideias. Tenho muitas vezes vontade de nunca mais escrever uma linha, mas sempre preciso de uma nova linha para dizer isso ou então voltar atrás… Do que antipatizo um pouco, neste caso, é de uma certa mercantilização cada vez mais presente e frequente em oficinas literárias, cursos e atividades correlatas. Nestes, cada vez mais se dá ênfase é em como se fazer lido (o que acho até difícil de imaginar – me vem em mente a violenta cena de uma pessoa obrigando outra à leitura), em como promover-se, técnicas de interação e coisas assim.

Não consigo, admito.

Se precisar disso para vir a ser um escritor, então acabou-se aqui. Então não serei. Não é humildade exagerada, mas é preciso estar claro para quem quer aventurar-se nisso de que há um universo inesgotável de magníficos, bons e razoáveis escritores na fila de cada pessoa. Sendo muito sincero, na minha própria lista eu talvez sequer figurasse (a não ser para uma correção imprevista). Certamente, não. Tenho dívidas insaldáveis com momentos incomparáveis da literatura. Como, sabendo  disso, vou querer parar o mundo e desviar a atenção alheia? Seria muita pretensão que desejasse que as pessoas viessem a interromper, para prestar atenção em mim, o seu Machado de Assis, o seu Eça de Queiroz, o seu Dostoievski e etc etc etc.

Mais uma vez: não consigo…

Por isso me autopublico e não negocio com editores cotas de exibição, autopromoção e coisas assim. Isso não apenas me desfaria como escritor como me faria, por outro lado, mercador. Nada contra os mercadores, mas cada um na sua, não? Se alguém ficar curioso eventualmente com meu nome em algum texto, alguma resenha, alguma menção, que ótimo!, talvez desperte a curiosidade a ponto de querer saber mais. Talvez até goste um pouquinho a ponto de admirar-se ou emocionar-se com uma frase bem colocada em algum parágrafo, ou um verso tocante. Pois é este o único leitor que me interessa. Não sou ilusionista nem diversionista nem bom piadista; nunca fui; sou ruim de gracejo, inclusive.

Um leitor que me passe os olhos e pense que sou como um serializado egresso de um projeto de formação de escritores irá frustrar-se porque eu mesmo não procuro evitar de frustrar-me. E continuo sempre tentando mudar a narrativa, mudar o parágrafo, a forma, a linha, o verso, o caractere. Minha impressão é de que todos os livros, afinal, são como aquele livro de areia, que mais um argentino, Jorge Luis Borges, um dia imaginou. Um livro nunca igual, desfeito à mera incidência da compreensão de um leitor qualquer. Aliás, o que também concordo com Piglia nesse aspecto é o quanto o leitor faz o escritor; digo do leitor que o próprio escritor é; não o leitor de si mesmo, mas dos outros e do mundo. É este infinito que, numa perspectiva rápida, aniquila qualquer auto ilusão de relevância, status ou glória, se é que existe ainda que esteja nisso por isso.

Sim, só assim mesmo me sinto um escritor. E então, dou o braço a torcer, porque sempre costumo me definir como quem apenas gosta de escrever e o faz, sim, por compulsão, não por um objetivo extrínseco, mas pela revelação que ocorre de mim mesmo para fora de mim mesmo, naquele instante em que as palavras me organizam, já que internamente prospera certo caos..

Afora isso tudo, ele, esta persona escritora, acaba mesmo sempre no último ponto, pensando que aquilo tudo que dissera pudesse ser meia verdade apenas e me deixasse para sempre insatisfeito. Pois o meu azar é que é esta mesma preferência. A deferência devida ou indevida é um critério de terceiros, não me interessa nem um pouquinho. Nesse aspecto (talvez em outros também), sou pessoano: e o resto que venha se vier, se tiver de vir ou não venha. Talvez, se meu pai lá atrás tivesse me impedido de usar sua máquina de escrever vermelha (ela me foi fundamental por ter me cedido gratuitamente sua velocidade), porque minha caligrafia sempre foi péssima, mas, pensando bem, mesmo assim… Será tudo isso, ao fim das contas, apenas dependência do som das teclas? Se for assim, o touchscreen completará um dia desses o serviço e então irei finalmente para a previdência secreta dos escritores, decerto a mais mal remunerada entre todas..