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A poesia, a crítica e um tanto mais de Antonio Cicero

Muito estaria pacificado a respeito da compreensão e da definição de poesia se todos pensassem como o Prof. David Lurie, personagem central de Desonra, romance publicado em 1999 por J. M. Coetzee, nobelizado em 2003. É logo nas primeiras páginas do livro que ele trata do assunto com Melanie Isaacs, aluna de seu curso de romantismo e pivô do escândalo que o precipita ao périplo de desonras que dá título ao romance.

No romance, o professor procura convencê-la de que não é possível aprender a gostar da poesia em determinado ponto de um diálogo que mantêm sobre Blake e Wordsworth:

“(…) Mas na minha experiência a poesia nos fala à primeira vista, ou não fala nunca. Um estalo de revelação, um estalo de reação. Como um relâmpago. Como se apaixonar.”

Nos estudos literários, contudo, não é bem assim e este argumento, de apaixonamento súbito, nem sempre é bem-vindo ou dado como critério suficiente. O pacífico de aceitar a poesia meramente como objeto estético mais ou menos agradável na realidade tem estado tão remoto hoje quanto sempre esteve. E as discussões em torno do gênero enquanto fenômeno literário e estético são, como se sabe, intermináveis e dadas na maior parte das vezes por opiniões estas sim muitas vezes apaixonadas. Daí que chegar-se a uma conclusão ou pelo menos a um consenso sobre o “problema” é algo bastante complicado.

No Brasil recente, poucos críticos têm se debruçado a respeito do assunto de lugares tão diversificados como o poeta, crítico, filósofo e letrista Antônio Cicero, que acaba de lançar pela Companhia das Letras seu novo livro, A poesia e a crítica, que reúne 13 ensaios nos quais volta a esmiuçar detalhes dos limites e das breves incursões mútuas que filosofia e poesia às vezes realizam uma nos domínios da outra e em seus contornos. Cicero, é bom que se diga desde já, não é simpático à ideia e mesmo sendo uma das poucas pessoas a atuar nos três segmentos, prefere manter os campos bem delimitados e dedicar-se a eles cada qual em seu tempo. Também em seu próprio tempo, isto é, ao longo dos ensaios, o livro esclarece em detalhes e generosas explicações as razões desta sua opção.

Não seria de todo errado afirmar que o seu novo livro continua os estudos e ensaios de Poesia e filosofia, que publicou em 2012, e o aprimora em muitos aspectos. Tanto neste de agora como naquele, Cicero realiza várias digressões e retomadas em torno da intricada e nem sempre amistosa relação do fazer poético com o fazer reflexivo. Para tanto, neste ele se vale de analisar o trabalho de seus poetas diletos, como Hölderlin, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade e Armando Freitas Filho, bem como do romancista Thomas Mann, especialmente em A montanha mágica, a quem atribui a formação de seu mais importante laço emocional com a literatura. É o único dos ensaios sobre escritores que não aborda um poeta, mas que está ali, como ele mesmo diz, por razões sentimentais. Realmente é um capítulo a parte, mas sem o qual, como se perceberá, talvez não existisse o excelente escritor que Cicero, para além de poeta e filósofo, também é.

Nos ensaios em que não está dedicando-se a examinar o trabalho de outros poetas, Cicero aproveita para também abordar outras relações pouco pacíficas da poesia, tais como com a prosa, com a própria crítica, a contracultura, a canção musical e a cultura popular. Faz todo o sentido, pois não só ele mesmo transita muito bem por todos estes territórios como consegue, por uma questão de abrangência, adentrá-los com naturalidade, mérito de sua prosa fluída e muito agradável. Conta muito também, para tanto, o fato de que Cicero não tem interesse em conflagrar os domínios, mas apenas esclarecer no que e em como um atinge fatalmente o outro, assim como as razões pelas quais eventualmente mais ou menos eles se distanciam ou parecem competir. Também é desde este trânsito fácil e de uma compreensão abrangente dos temas que ele avalia, por exemplo, tanto a contribuição da música para a popularização da expressão poética no mundo contemporâneo quanto avaliza a contribuição da tropicália e da bossa nova para a poesia brasileira e a polêmica premiação de Bob Dylan com o Nobel de literatura em 2016.

A relação de Cicero com a música popular dispensa maiores explicações. Recentemente, em homenagem que compositores e músicos realizaram em torno dos 70 anos de Fernando Brant, dito por ele mesmo como “um dos maiores poetas da MPB”, Cicero gravou a leitura da canção Encontros e despedidas, faixa título do álbum homônimo de Milton Nascimento. Por estes dias, além de aguardar o resultado da decisão da Academia Brasileira de Letras em torno da cadeira nº 27, a qual é candidato a ocupar, ele está na estrada com a irmã Marina Lima, dividindo irmanamente o palco com as canções que ela interpreta e os poemas que ele lê. Dois irmãos é não curiosamente o título do espetáculo que tem viajado o Brasil.

Ainda que pudesse parecer uma interpretação apressada, A poesia e a crítica está longe de ser um livro pacificador ou um empreendimento em prol da pacificação entre todos os elementos culturais com os quais a poesia tem precisado lidar ao longo dos anos. Pelo contrário, muitas vezes chega a tratar-se quase de uma luta pela sobrevivência e a poesia, que seguidamente é dada como em vias de extinção nas avaliações mais alarmistas, às vezes é preciso defendê-la. Não é tarefa fácil, dado que a leitura da poesia costuma obrigar o leitor a dilatar sua perspectiva pragmática do tempo e a abrir mão das formas usuais de lidar com a própria informação, principalmente em tempos de tanta aceleração digital. Mesmo quando precisa retornar ao episódico debate sobre a “utilidade” da poesia, Cicero defende que o poema, em suas diferentes formas, continua a ser um poderoso agente de catarse subjetiva, mobilizando o aparato sensorial das pessoas, sua cultura, memória, inteligência e, claro, a sensibilidade de cada um.

O gênero, que costuma ser tomado como das mais fáceis formas da literatura, estranhamente às vezes parece necessitar de requisitos muito intricados ou então muito simples de eficácia. Ou é a paixão instantânea, como expressa no livro de Coetzee, ou uma série de complexos quesitos culturais e formais. Chega a ser curioso como se pode chegar a um cânone tão exigente tendo de lidar-se com uma oposição e extremos tão radicais. Ou seja, ou a poesia é inútil ou está para além da compreensão. Ou o poeta é um iluminado ou um alienado do mundo real e imediato, como um ser lunático obcecado pela própria expressividade. Como se vê, é um ataque multilateral que se pratica contra a poesia e é um mistério real sua sobrevivência enquanto experiência literária, ainda mais quando se sabe que entre todos os gêneros é justamente o que menos vende. É o ouro sem valia de quem falou Ferreira Gullar em artigo publicado na Folha de São Paulo ainda em 2012, mas que provável e felizmente provêm de uma fonte inesgotável, já que nem assim poetas cessam de criar e publicar.

A epopeia não finda aí, pois da mesma forma engana-se quem supõe que esta é a única oposição com que precisa se debater a poesia; não é. Outra, e não menos importante, é o tempo. Além de qualquer outra coisa, a poesia requer tempo, apesar da forma muitas vezes expedita passar a ideia de que tanto a criação quanto a leitura fossem eventos voláteis e passageiros. Segundo Cicero, trata-se de outra coisa. A experiência da poesia seria como quase uma fração dimensional da percepção rompida voluntariamente pela pessoa, isto é, por cada leitor. Além disso, ainda que as discussões em torno da materialidade e da concretude dos elementos e das figuras poéticas sejam inesgotáveis, é inevitável pensar que não há meios de conhecer-se a poesia de quem quer que seja sem um mínimo contato com a sua subjetividade e, daí, para a sua cosmogonia. Pois é da retina para dentro que o poeta examina o que lhe chega e acontece, enquanto o filósofo exterioriza as ideias e examina o concreto e o real em si mesmo, como se examinasse o mundo em chapas de microscópio ou nas amostras que lhe estejam disponíveis. Requer-se tempo e, principalmente, o tempo de dar tempo à comunicação poética, tão diferente da que ocorre sob o texto informativo ou discursivo.

Mas o nonsense maior de alguns dos debates travados alhures por poetas e críticos consiste em fabricar um sentido dissociativo ou de disputa entre uma e outra: poesia e filosofia. Se a poesia importa mais ou menos que a filosofia, por exemplo, ou se uma estaria contida na outra. Se irmãs siamesas ou parentes longínquas. Se o poeta é um filósofo pouco instruído ou o filósofo uma espécie de superpoeta. Neste ponto, Cicero costumeiramente é taxativo e é bom que o seja: “Digo às vezes que sou esquizofrênico, porque é como se eu tivesse dois cérebros diferentes (…). Mas são coisas muito diferentes, filosofia e poesia”, ele declarou há pouco em entrevista ao jornal O Globo quando do lançamento do livro de ensaios.

De uma forma muito agradável, porque sua escrita é ao mesmo tempo profunda e acessível, tanto em Poesia e filosofia como agora em A poesia e a crítica, Cicero presta um grande serviço a todos os interessados em ambos os assuntos, qual seja o de romper uma hierarquia sem sentido entre o erudito e o popular e o de poder aproveitar caso a caso cada forma e campo, cada especificidade e manifestação do pensamento devotado à poesia em si mesma ou, por outro lado, ao estudo da estética e de sua compreensão. Isso tudo além da sua própria poesia, pois o autor dos bem conhecidos versos a seguir

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.”
In: Guardar: poemas escolhidos, Rio de Janeiro, Record, 1996.

já declarou que pretende dedicar-se, mesmo, cada vez mais à poesia.

A este ponto, a não ser para fins catalográficos, distinções qualitativas não fazem muito ou mesmo nem um sentido. Provavelmente, não há mesmo vantagem ou desvantagem a cotejar entre poesia e filosofia. Ou então, como disse a polonesa Wislawa Szymborska ao receber em 1996 o Nobel de literatura, “não há professores de poesia”, e a filosofia só lhe estaria em relativa vantagem porque poderia ser adornada por um título que ao poeta falta. De resto, poeta ou filósofo, como Cicero diz, costumam ter a cabeça nas suas respectivas nuvens. Pois mesmo podendo ser denominado como professor de filosofia, poucos críticos e pensadores poderiam ser tão cuidadosos e corroboradores do fazer poético no Brasil contemporâneo quanto ele. Aí está o seu novo A poesia e a crítica para que se possa compreender ainda melhor isso tudo e um tanto mais.

A democratização e o impeachment por Fernando Gabeira

O lado bom de resenhar um autor muito conhecido é que qualquer apresentação da pessoa é desnecessária e pode-se passar diretamente à obra em questão. Este é justamente o caso de Fernando Gabeira e seu novo Democracia tropical. O livro, que reúne a recente crônica política publicada por Gabeira na imprensa brasileira e o seu caderno de notas, é o décimo segundo do jornalista, ativista e ex-deputado federal.

Tomando como pontos de inflexão a redemocratização a partir da anistia, em 1979, e o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, Gabeira unifica a reflexão de quem viveu a luta armada e o combate à ditadura militar e o desfecho político do processo de consolidação da alternativa de esquerda no poder. Uma vantagem, se é que se pode chamá-la assim, de Democracia tropical em relação aos recentes lançamentos editoriais sobre o impedimento de Dilma, é o fato de que suas análises estão calcadas no trabalho jornalístico e na observação dos fatos no calor dos acontecimentos. Quer dizer, não se trata de um trabalho que visa justificar quaisquer condutas políticas, mas tão simplesmente esmiuçá-las como quem examina o tempo presente e seus atores, tão bem conhecidos dele mesmo pelo tempo em que esteve envolvido na política partidária e por ser um cronista das desventuras do poder no Brasil desde, pelo menos, meio século.

O livro poderia ser tranquilamente dado como pessimista, e isso não porque ele faça previsões tenebrosas a respeito do futuro político brasileiro, mas por ter podido confirmar as piores expectativas que vêm sendo reveladas nos últimos anos. Para o autor, a dinâmica democrática foi colocada em risco justamente porque o projeto de esquerda tornou-se nominal e apartou a política do social, configurando-se por moldar-se rapidamente aos principais núcleos de corrupção existentes. A corrupção, segundo Gabeira, é tanto o elemento de aglutinação de uma política deteriorada quanto o fenômeno pelo qual a sociedade pode depurar-se, caso aceite enfrentá-la sem reservas e exceções.

Em linhas gerais, isto é o que mais importa dizer a respeito do livro, mas ainda há mais, porque o seu texto, diferentemente da historiografia acadêmica ou da ciência política, está mais amparado na experiência do que na coleta de impressões ou na organização de fatos isolados. Além disso, Gabeira empresta à análise dos fenômenos políticos recentes a profundidade que falta aos trabalhos, digamos, hagiográficos que têm por efeito enaltecer o heroísmo da classe política e de seus exemplares. Pelo contrário, a história que Gabeira constrói não é narrada, mas flagrada nos sucessivos tropeços e muitos passos atrás que os projetos políticos costumam dar no Brasil, sejam protagonizados pelo PT, PMDB ou PSDB, partidos que dominaram o cenário nacional nas últimas décadas e cujas figuras máximas reuniram-se melancolicamente, em tempos recentes, na posição de investigados da operação Lava Jato.

Melancolia e não heroísmo, portanto, é o substrato das crônicas de Gabeira. Poderia ser enquadrado até como peça trágica, pois afinal não se trata de uma obra de ficção. A tragédia do real, apesar de tudo o que se diga a seu respeito, é a de sempre fazer-se sentir na vida mais imediata das pessoas e também na credibilidade das instituições democráticas. Contra o sentimento generalizado de falência e de embretamento, Gabeira consegue ser por ele mesmo alentador, já que não está nem nunca esteve conformado pela “governabilidade” e, ainda que não seja nem pleiteie ser um entreposto da unanimidade, é dos raros jornalistas que procuram manter uma visão límpida da história política e dos acontecimentos recentes. Para quem pensa ainda nos termos de “nós contra eles” ou outras dicotomias igualmente simplórias, talvez seja bastante difícil ou forçoso localizar nele qualquer traço de identificação ideológica. Isso importa pouco, porque de quem foi compelido a limpar de e em si mesmo os vestígios e ranços a que tantos se apegam como se conteúdo fosse, apenas se deveria exigir clareza e tranquilidade, e isso é o que não falta nas análises e registros do seu livro.

Um prato para comer frio

ilustvinganca

Amalgama

Dois filmes produzidos e lançados recentemente retomam um tema ao que tudo indica muito caro à humanidade: o desejo por vingar-se e a perpetração da vingança. Relatos Salvajes e Dracula Untold são, cada um a seu modo, novos blocos do edifício aparentemente infinito da exaltação desse sentimento que parece ser um dos lastros fundamentais da psique humana, ao lado de outros que poderiam ser tomados como mais nobres, caso existisse uma hierarquia organizada para os sentimentos.

A ideia de perpetrar-se a vingança é antiga e tem vigorado inclusive na forma de lei em sociedades mais ou menos primitivas e mais ou menos civilizadas, de outros e também destes tempos. Assim como na longínqua Babilônia do imperador Hamurabi, há culturas que ainda hoje autorizam que vítimas de crimes “devolvam” a “ofensa” na mesma moeda, sendo possível até que assistam ou participem da “reparação” máxima: a pena de morte do outro. Tudo isso parece esdrúxulo e aterrador, mas pode estar acontecendo neste exato instante no Irã mais próximo a você ou até mesmo em lugares supostamente mais civilizados, como o estado do Texas, nos Estados Unidos da América, no qual mais de 500 pessoas já perderam a vida desde a instituição da injeção letal, segundo dados da Anistia Internacional.

Que o cinema parece querer às vezes funcionar como escape à trivialidade e miserabilidade cotidianas não é nenhuma novidade; muitas vezes seus argumentos são projeções e sublimações evidentes de sentimentos comuns às pessoas os quais a vida corriqueira nem sempre pode abordar, isso por uma questão de acordo social, e que ali estão transformados em produto cultural. Minha primeira dúvida, neste caso, reside em procurar entender se as pessoas que se regozijaram com as vinganças perpetradas nestes dois filmes e na série interminável de outros filmes sobre a vingança (o site Cinema 10 elenca uma lista de 219 filmes sobre vingança) estão ali realmente para sublimar esse sentimento dado como dos mais vis, digno de figurar entre os pecados capitais, sob o pecado “ira”, ou se são por eles conduzidas a isso. Minha segunda dúvida seria entender se esse sentimento pode restar sublimado ou não ao final da exibição.

As seis histórias curtas de Relatos Salvajes, por flertar com o tragicômico, aproximam muito os espectadores das situações narradas. São situações envolventes mostrando o ser humano corriqueiro no apogeu do uso da sua flutuação moral. Os desfechos insólitos e absurdos, por outro lado, transformam as histórias em alegorias, livrando-as da dureza da realidade. O filme de Damián Szifron, produzido por Quentin Tarantino (dos igualmente vingativos Kill Bill, Django Unchained e Inglourious Basterds), aposta alto na sublimação pelo absurdo e, tomando-se em conta o imenso sucesso de bilheteria, parece que acertou muito bem no alvo proposto, embora nenhum dos desfechos possa ser descartado ou dado totalmente como inverossímil.

A dúvida em saber se aqueles que se divertiram bastante, como eu mesmo, das situações narradas por Szifron pelo menos adiaram suas intenções e anseios vingativos mais íntimos e velados ainda assim permanecerá em aberto. Talvez seja mesmo impossível saber o quanto a linguagem cinematográfica é capaz de conduzir e elaborar o pensamento individual, se é que ela pode pretender ser em si mesma mais do que mais uma fonte, entre tantas, de lazer e prazer intelectual. É certo que muitos cineastas não gostariam que sua obra fosse reduzida a mero objeto de consumo, disso tenho certeza absoluta, mas nem todos pensam assim e, dessa forma, o cinema se mantém atingindo muitas e muitas pessoas, ao contrário de outras artes e produções culturais mais elitizadas.

Dracula Untold é, por sua vez, um filme de ação projetado para ser exatamente um objeto de consumo, na esteira de uma extensa fila recente de filmes sobre vampiros, sobre um roteiro que busca as origens do Drácula de Bram Stoker, mas não tem para com este nenhum compromisso. O tom é épico e busca recriar a atmosfera bélica entre romenos e turcos, quando Vlad Tepes, o empalador, ajudou a Europa a deter o avanço do império Otomano, no séc. XIV, isso de acordo com os livros de História.

No filme, Vlad busca forças sobrenaturais para defender seu povo e executar sua vingança pessoal e as encontra através de uma criatura amaldiçoada, um vampiro com remotas origens greco-romanas. Mesmo sabendo do risco de tornar-se ele mesmo um outro vampiro, no filme Vlad não vê outra alternativa e une em si mesmo o desejo de vingança política e pessoal, sacrificando sua própria humanidade. A vingança para Vlad parece não ser uma questão de escolha, mas sua sede insaciável por revanche converte-se como em uma espécie de pensamento obsessivo, não muito distinto daquele que embota a razoabilidade das pessoas que desejam aniquilar a contrariedade e costumam clamar pela morte alheia como tábua de salvação de alguns males mundanos, sejam de ordem política ou pessoal.

Entre a tolerância e a vingança, até mesmo no cinema a distância parece ser descomunal. Se é possível encontrar listas imensas de filmes que enfocam a vingança e lembrar qualquer um destes títulos não exige grande esforço, a tolerância enquanto argumento cinematográfico parece não viver seus melhores dias. Na internet, onde há listas e rankings para praticamente qualquer assunto, não só não é nada fácil encontrar listas evocativas em relação à tolerância como nas redes sociais as fanpages destinadas à vingança e suas formas e fórmulas são extremamente populares, ao passo em que as que tratam da tolerância e de suas variantes quase nem existem; e, quando existem, costumam ser desérticas em termos de seguidores e compartilhamento.

O que isso prova? Não tenho a menor ideia. O fato inegável é que as pessoas parecem comprazer-se mais em testemunhar atos vingativos do que em demonstrações do que se poderia compreender como elementos de uma “cultura de paz”. Uma outra explicação seria de que o desejo de vingança poderia ser um tipo de reação natural frente ao sentimento de injustiça enquanto que a tolerância implicaria em algum investimento cultural e moral, notadamente em baixa nestes tempos em que a linguagem da violência parece prosperar e manifestar-se com bastante veemência.

Também há que se considerar que a tolerância impõe por ela mesma um tipo de paradoxo, dado que exigiria sua aplicação inclusive no que se refere às manifestações do seu anverso, a intolerância, porque ela mesma não poderia ter um valor seletivo senão fracassaria em sua própria formulação. De outro modo a vingança parece mesmo ser um “prato” que, mesmo frio, cumpriria a função de alimentar e saciar aquele que é vingado. Talvez não seja mesmo possível concluir se o cinema requenta a fórmula vingativa porque ela é mesmo psiquicamente desejada ou se é ele que a oferece como prato preferencial, colaborando para um público adicto e ainda mais crente nas soluções belicosas para os impasses morais de toda a ordem. Seja como for, no olho por olho e no dente por dente, pelo menos no cinema a “cultura de paz” parece estar levando a pior. No mundo real talvez se dê o mesmo.

Prepare-se para cair

Eu não sabia que Diogo Mainardi escrevia sobre capoeira, até que terminei, em cerca de 120 minutos, de ler A queda. É uma novidade que me faz olhar mais uma vez para a capa do livro como quem olha para um pedestal, já que o seu efeito imediato não é outro que o de uma rasteira, de uma rasteira de só quem frequentou muito o chão sabe desferir. Minha dificuldade no momento é me recompor da minha própria queda, providenciada pela leitura do livro, mas é daqui mesmo, do chão, que posso avaliar melhor o estado de coisas antes e depois da leitura porque, por minha própria experiência, atesto que estar em pé é uma transição permanente, um tipo de concessão da gravidade ou, como para muitas pessoas, um desafio da vontade, uma experiência cuja compreensão requer boa parte da energia de viver.

A queda é um livro econômico. As frases são objetivas. Os trechos são curtos como comunicados, o que dificulta um pouco a tarefa de classificá-lo em algum dos gêneros literários disponíveis. Em determinados momentos, lembra um caderno de notas ou um tipo de blog impresso. É dentro dessa forma imprecisa que nasce a tensão do livro, suplantando a própria necessidade de classificá-lo, por mostrar um Mainardi tal como ele é, pelo caráter confessional e autobiográfico que reconstrói em 424 passos uma trajetória na qual ergue-se e pode caminhar com o filho Tito, seu pequeno búlgaro, e onde enfim pode tombar o próprio Diogo.

Não faz muito tempo que os pais, os homens, frequentam o chão. Antes dos hippies, a masculinidade vivia como numa clausura, na imagem de um eterno galanteio como os atores de Hollywood ajudaram a fixar. De terno e gravata ninguém vai ao chão. E a própria noção do chão enquanto espaço infantil é igualmente recente. Foi a médica e pedagoga italiana Maria Montessori uma das primeiras pessoas a considerar o ângulo próprio da infância, de quem vê de baixo um mundo gigantesco. Para ela, que inclusive chegou a conceber espaços pedagógicos miniaturizados, são as crianças que gestam o homem, e não se pode pretender mudar este último sem valorizar a experiência daquelas. Nada como uma criança, como um filho com deficiência, para deitar ao chão a inutilidade da formalidade, para sujar a alvura do distanciamento, para valorizar o que efetivamente importa, para reduzir a nada as imagens cristalizadas. Como se pode saber em A queda, foi Tito quem acostumou Mainardi ao chão, para que ele pudesse ver-se livre inclusive da imagem que se colou a ele ao longo da última década, quando Mainardi encarnou um tipo de personagem de si mesmo, angariando tanto a devoção de alguns quanto o ódio de seus detratores.

Como ele mesmo diz, o livro o deixou nu. Parece impossível, aliás, que um homem trate da paternidade sem que fique nu, para o bem ou para o mal. Mainardi não foi o primeiro pai a escrever sobre a vida com um filho com deficiência, mas foi o primeiro a abordar a paternidade a partir do seu efetivo exercício. A queda é autobiografia em estado puro. Não há personagens ali. Não há trama. Não há cenário senão uma colagem de referências que arquitetam e refazem lugares, trajetos e situações que fazem todo o sentido para o livro, justamente porque fazem parte da vida do autor. Não há uma construção, mas um tipo de descolamento que deixa ver um pai e um filho através de pequenas confissões capazes de destruir a imagem de um pai poderoso e recolocar em seu lugar um pai como qualquer outro, nem sombra de um pai “especial” ou “escolhido”. Como bom capoeirista, ele derruba num golpe só a fantasia heroica e o abandono depressivo, deitando ao chão quem sabe e não sabe cair, levando de roldão o desamor que tem se fixado junto à literatura sobre filhos com deficiência.

Repetindo, A queda é autobiografia em estado puro. Ali estão um pai, um filho, uma mãe, um irmão e outras pessoas, não personagens, que marcaram suas vidas indelevelmente. Não há espaços vazios, silêncios, fantasmas do filho desejado ou laivos de rancor e decepção. Mainardi ama seu filho como ele é e faz de seu livro um tipo de ode à paralisia cerebral, sem envergonhar-se disso. A queda consegue a façanha de colocar “felicidade” e “deficiência” numa mesma frase, sem efeito algum a não ser o da própria realidade. Talvez Diogo não saiba quanta felicidade isso pode causar principalmente aos pais de outros filhos com alguma deficiência, porque a um tempo só torna possível abandonar o tom trágico que cerca o tema e abraçar a realidade da vida como a vida pode ser, com ou sem paralisia cerebral, com ou sem alguma deficiência. O testemunho dos 424 passos de Tito não permite saber aonde ele vai, mas permite saber que ele logrou sua ida e que há um pai que o permitiu, que há uma paternidade para este filho que passa a viver, ao cabo da leitura, livre da contabilidade de seu sucesso ou fracasso, mas cada vez mais dono de sua própria vida.