É possível fazer um bom filme sobre o suicídio de um adolescente? Como pegar desse enredo inóspito e doloroso e daí realizar um filme que muito provavelmente irá atingir o público que ele mesmo retrata, isto é, o público adolescente? É preciso ser educativo, esclarecedor ou simplesmente basta que conte a história como aconteceu? Como fazer isso se o filme, ainda por cima de tudo, não é ficcional, mas baseado na vida de um adolescente que tomou essa decisão há pouco mais de uma década, aos dezesseis anos, num episódio que talvez tenha mais para amedrontar a sociedade do que, por exemplo, a badalada série 13 Reasons Why, produzida nos EUA e veiculada em 2017 no canal de streaming Netflix?
Para questões como essas, não há e nem deveria mesmo haver respostas fáceis. Mostrar isso tudo, entretanto, será dos maiores desafios que terão pela frente o diretor Hique Montanari e também o ator Thalles Cabral, que reviverá nas telas o compositor e cantor Yoñlu. Yoñlu é o pseudônimo pelo qual se autodenominava e ficou conhecido este garoto (seu nome era Vinicius) nascido em 1989, em Porto Alegre, onde também veio a falecer, no ano de 2006. Também será o nome do filme que em outubro terá sua primeira exibição, no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro.
Enquanto o filme ainda não tem data para estrear nos cinemas, na internet dia a dia aumentam as visualizações da fanpage e de seu primeiro trailer já divulgado. Dificilmente poderia ser diferente: Yoñlu e a internet sempre estiveram muito próximos, quase interconectados. Foi nela que ele primeiro divulgou suas músicas, alcançando o mundo inteiro desde o seu quarto de dormir, exatamente como fazem há bastante tempo já, e no mundo inteiro, milhões de adolescentes.
Há uma década, na era pré smartphone e primórdios das redes sociais, não era tarefa das mais simples encontrar-se grupos de interesse mútuo, porém, em fóruns, blogues e grupos de discussão se podia acessar com relativa facilidade e anonimato quem quisesse compartilhar músicas, opiniões e conversas sobre quaisquer assuntos, inclusive formas de tirar a própria vida. Este território sem limites precisos ou censura, a internet, foi o único palco que o compositor e cantor Yoñlu conheceu. Pelo destino que deu a sua breve vida, foi ali também que ao longo de uma década se tornou uma espécie de mito, consagrado principalmente pelos seus contemporâneos adolescentes.
Tão logo a notícia de sua morte se espalhou, sua história foi ganhando visibilidade para além da web e reportagens na mídia impressa começaram a surgir, diferenciando-se do que costuma acontecer nos suicídios de um modo geral. No caso dele, não parecia tratar-se de mais um número entre as estatísticas, mas da morte precoce de uma mente muito criativa e com enorme talento para a música. E também porque trazia consigo uma mensagem ainda hoje complexa a respeito de um potencial um tanto quanto obscuro da web: o de, além de encerrar por muito tempo as pessoas em uma irresistível sensação de imensidão e liberdade, chocá-las de encontro a uma impessoalidade capaz de compartilhar ideias tão radicais como, por exemplo, o suicídio.
Ainda lembro-me do começo do ano de 2008 como o ano em que conheci a adaptação de Sean Penn para o cinema do livro de Jon Krakauer, Na natureza selvagem. Na verdade, conheci um pouco antes a trilha sonora que Eddie Vedder, do Pearl Jam, compôs para o filme e suas baladas folk. As letras melancólicas tratavam de um personagem real, Chris McCandless, um adolescente em franco processo de desadaptação que aos 22 anos, em 1990, resolve isolar-se da civilização e ir de encontro à solidão de uma floresta no Alasca, para lá viver por uns tempos. Quanto tempo, porém, ele teria desejado ficar mesmo por lá, isolado de todos, é algo que nunca se poderá saber ao certo. Chris, que também adotava um pseudônimo e referia a si mesmo como um certo Alex Supertramp, acabou morrendo completamente só, dentro de um ônibus, sem a ajuda de ninguém, vítima de inanição ou um possível envenenamento decorrente da ingestão de sementes tóxicas.
Naquele mesmo período, em uma revista de circulação nacional, li pela primeira vez a respeito do suicídio de Yoñlu. Retratado como um adolescente que perdia a vida após a realização de um meticuloso procedimento todo obtido e reportado na internet, ele deixara uma coleção de canções que entrevia seu talento para compor e aspectos psicológicos de sua abreviada trajetória. Logo após isso fui conhecer a sua música, disponível em registros caseiros aos quais se dedicava intensamente. Na escrivaninha do quarto onde compunha suas músicas, encontrou-se um disco com suas gravações e explicações deixadas aos pais. Além dos registros no CD, Yoñlu deixara gravados em seu computador algo em torno de cem canções. Mais tarde, parte delas seria transformada em dois discos, um produzido no Brasil e outro nos EUA, pelo selo Luaka Bop, de David Byrne dos Talking Heads.
Assim foi que as duas histórias (e músicas) se misturaram por algum tempo em minha mente. Dois adolescentes, duas espécies distintas de morte, mas duas perdas de garotos excepcionalmente inteligentes numa época da vida em que excessos (e sentir em excesso) são muito comuns, mas o único que não se deveria aceitar tão tranquilamente é o de que justamente pessoas com um potencial tremendo deixem, de repente, de acreditar que ao menos vale a pena continuar vivo.
Sempre pensei na adolescência como o momento da vida em que o tempo perde toda a linearidade e, todavia, não se pode saber ao certo quando aquilo vai acabar nem quando será possível chegar ao próximo platô, ou o que se costuma denominar por “maturidade”. Importa dizer que para muitos adolescentes este pode tratar-se de um processo muito difícil e, se o entorno não colabora, muitas vezes a sensação subjacente é a de aprisionamento, isolamento. E, diga-se de passagem, um isolamento que nem a rede das redes costuma ser capaz de romper ou ainda que, de outro modo, muitas vezes parece colaborar ainda mais em certo confinamento, dado que na internet se configura uma espécie de duplo do mundo real em suas muitas representações, declarações e uma sorte infinita de contatos indiretos e impessoais. Mesmo assim, sob o argumento de ajudar as pessoas até onde seja possível, a rede social mais utilizada no mundo, o Facebook, tem entre suas políticas de conteúdo a permissão para que os usuários realizem inclusive a transmissão ao vivo de tentativas de automutilação ou suicídio. A informação foi divulgada em maio do ano passado pelo jornal britânico The Guardian, após investigação que revelou as diretrizes mais secretas da rede de Mark Zuckerberg.
A implicação de adolescentes em um mundo em que a representação da morte é banalizada e até certo ponto erotizada, como o psicanalista Contardo Caliigaris alertou em seu artigo Sempre há um exército dos mortos, que amam e propagam a morte, não é exatamente uma novidade. Desde a publicação de Werther, de Goethe, em 1774, teme-se pela replicação entre o público juvenil do drama suicida e as ideias românticas, afinal, são ideias que não podem simplesmente extirpar-se da cultura. Na realidade, são ideias e valores que estão integrados a ela e nela são recicladas periodicamente. Seja na literatura, no cinema ou na música, não poderia haver medida mais infrutífera ou contraproducente do que limitar-se o acesso do público, ainda mais o adolescente, do que se pode obter na internet. Felizmente, em anos recentes, se tem procurado outras condutas e alternativas, como o esforço educativo e campanhas de esclarecimento como o “Setembro Amarelo” e a inserção da temática no âmbito escolar, reduto por excelência do público adolescente.
A ocorrência suicida entre a população adolescente parece não decorrer de mera insegurança ou exclusivamente pela falta de perspectivas econômicas, ainda que tudo isso tenha seu peso na situação de vida de qualquer pessoa. Talvez a situação seja um pouco mais complicada que isso e, para pessoas que já não são mais crianças e ainda não completamente adultas, implica muitas vezes em sentir-se e saber-se impotente em dar conta de um legado ao qual não deram causa e nunca estiveram integrados ativamente, mas que, de repente, é todo o mundo que há para existir. Como lidar com tudo isso não é algo simples ou que se resolva com simples recomendações, isto é, trata-se de um tema socialmente tenso, eu só consigo ficar muito curioso em saber como o filme que conta a história de Yoñlu irá tratar disso tudo, tendo-se em vista um ano que começou com o furor em torno a 13 Reasons Why e logo a seguir entrou em pânico com a disseminação do jogo de automutilação “a baleia azul”.
Se Hannah Baker, a personagem central de 13 Reasons Why causou apreensão por um suicídio decorrente da violência sexual e do bullying por que passou, nesta história não há propriamente um incômodo externo, mas um interno, e por isso mesmo de mais difícil abordagem. Não que as causas de diferentes mortes possam ser comparadas, mas enquanto é relativamente simples localizar num personagem um elemento externo, uma razão prática, do outro permanece uma nebulosa associação com a depressão e uma dificuldade de abordar-se adequadamente – e em tempo hábil – as dificuldades de natureza psicológica que muitas vezes transformam adolescentes em alvos potenciais de ideações suicidas. Seja como for, neste terreno não se tem o direito de ser leviano nem por um instante, dado que as estatísticas apontam para números crescentes entre a população dessa faixa etária por aqui e em todo o mundo.
Embora muitas vezes a associação entre depressão e suicídio pareça a mais óbvia, é relevante pensar que outros elementos possam colaborar tanto para o desfecho quanto para que se aventem medidas para que se o evite. No livro O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, o jornalista e escritor norte-americano Andrew Solomon destaca que depressão e suicídio nem sempre fazem uma equação indissociável. Ele diz ainda que, embora apareçam juntos muitas vezes, a ideia e pulsão de morte são inerentes à vida e que ambas as situações têm vida própria e, portanto, generalizações deveriam ser evitadas a fim de não estigmatizar-se ainda mais as pessoas. Para a psicanalista Julia Kristeva, autora de O sol negro: depressão e melancolia, mesmo a pessoa mais deprimida debate-se com o afeto e sua expressão. Para ela, talvez seja justamente pelo afeto, pela recuperação da saúde afetiva, que passe muito do que pode ser feito em prol das pessoas, especialmente os adolescentes, antes de qualquer outro desfecho.
Até que se possa saber mais e chegue em definitivo aos cinemas, não se pode dizer ainda como Yoñlu, o filme será recebido pelo público. Antes mesmo de seu lançamento, entretanto, já é possível perceber o quanto tem despertado o interesse. Seja como for, o inegável é que cada pessoa é única e tem sua história, seu percurso inigualável e sua forma peculiar de lidar com a informação. Por enquanto, não se pode saber se o filme dará mais eco ao que nunca se entenderá por completo, isto é, a morte em si mesma, ou então da vida e do que se pode fazer por ela. Como uma está imbricada na outra e compõem espontaneamente o drama humano, não se trata de simples desmistificação, mas de uma perspectiva a qual todos estão vulneráveis e para a qual, ao mesmo tempo, ninguém nunca está preparado.
Mito que é cada vez mais decomposto, o suicídio continua assombrando e fascinando as pessoas justamente porque, dos gestos humanos, talvez seja o que mais desestabiliza o mundo como ele é, isto é, o mundo de quem fica. Tudo ao que se confere apreço, que está imbuído de valor e pelo que se preza, em um momento apenas se evapora diante de quem confere sentido ao mundo e lhe dá significação. Se o adolescente está especialmente vulnerável ao suicídio, assim como também a outras formas de violência, e isso em qualquer classe social ou geografia, seu gesto fala não apenas de si, mas de todo o seu entorno afetivo e social. É preciso falar sobre suicídio, sem dúvida, mas também do que isso importa à família, à escola, à sociedade e, já que não se restringe exclusivamente aos adolescentes, aos sentimentos de todas as pessoas. Yoñlu, o filme certamente não tem o dever de fornecer todas as respostas de que precisamos. Por outro lado, nós é que temos o de aproveitar a oportunidade do filme e incrementar as necessárias discussões a respeito do assunto.
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Há quase duas décadas atrás, no ano de 2000, a OMS publicava um guia voltado aos profissionais da mídia na intenção de instruir as abordagens e notícias sobre o suicídio. Em linhas gerais, as recomendações giravam em torno de evitar-se o detalhamento de métodos, certa tendência à espetacularização, associações diretas com outros transtornos mentais, alusões que possa levar a uma estigmatização das pessoas e suas famílias, bem como destacar-se informações alternativas e fontes de informação confiáveis sobre o assunto.
Seguindo o exemplo da OMS, há cerca de uma década o governo federal, através do Ministério da Saúde, publicou as Diretrizes Nacionais para Prevenção ao Suicídio, oferecendo indicações a respeito da necessidade de ações de prevenção ao suicídio e de sua caracterização como um problema de saúde pública. Apenas desde 2004 a OMS passou a publicar relatório exclusivo sobre o tema. Dois anos atrás, em 2015, foi instituído no Brasil o “Setembro Amarelo”, iniciativa conjunta do Centro de Valorização da Vida (CVV), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) dedicada a reflexão e medidas de enfrentamento ao suicídio.
Na última semana (21/09), o Ministério da Saúde divulgou o primeiro Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil, contendo dados obtidos entre 2011 e 2015. Importante destacar que a interpretação cuidadosa de estatísticas, o evitamento de generalizações e comparações geográficas, recomendações publicadas pela OMS no longínquo ano de 2000, parecem ainda muito distantes de serem observadas.
Os links abaixo remetem aos conteúdos publicados em alguns meios de comunicação sobre a publicação do boletim:
Mapa dos suicídios no Brasil coloca Rio Grande do Sul em alerta (Zero Hora)
Brasil registra uma tentativa de suicídio por hora, diz boletim inédito (Correio Braziliense)
Núcleo identifica uma tentativa de suicídio a cada 10 horas na Capital
Suicídio é a quarta maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos (Agência Brasil)
Brasil registra 30 suicídios por dia; problema afeta mais idosos e índios (Folha de São Paulo)
Cerca de 11 mil pessoas tiram a própria vida todos os anos no Brasil… (UOL)
Suicídios aumentam 12% em 4 anos e preocupam Ministério da Saúde (Estadão)
Fontes e links de apoio:
CVV – Centro de Valorização da Vida (Tel: 188)
FIOCRUZ – Especial sobre suicídio