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Palavrês inclusivo

“Há sempre alguém que começa a falar; aquele que fala é o manifestante; aquilo de que se fala é o designado; o que se diz são as significações. O acontecimento não é nada disto: ele não fala mais do que dele se fala ou do que se o diz.” (Deleuze, Gilles. Lógica do sentido)

Os linguistas, pessoas que se dedicam a estudar entre outras coisas significados e significâncias dos signos linguísticos, devem ser das pessoas mais atormentadas do mundo. É tanta polissemia, sinonímia, antonímia, paronímia (e pantomima, sobretudo) que muitas vezes é um verdadeiro milagre uma pessoa qualquer conseguir se fazer entender perante os demais. Mas isso é em toda parte e, pelo jeito, acontece mesmo com todo mundo.

No mundo educacional não seria diferente. Nele, dificilmente alguém se entende mesmo ao procurar usar as mesmas palavras para abordar uma mesma realidade. Às vezes, é desanimador tentar entabular um diálogo, principalmente quando as pessoas envolvidas têm vivências e interesses muito díspares em relação ao que é verbalmente tratado.

Vou procurar ser mais claro e tomar uma palavra do jargão (diga-se de passagem uma palavra polissêmica, que tanto pode significar “discurso especializado” quanto “discurso incompreensível”) educacional como exemplo. Mas não vou escolher aleatoriamente. Vou tomar como exemplo nada mais nada menos que o termo “inclusão”.

Isso mesmo! Acho que é uma boa palavra, não parece? Não haverá (espero) de representar maiores problemas semânticos.

Bem, como se sabe, há no mundo educacional muitos usos e empregos que se desejam para o termo “inclusão” ou seus derivados “inclusiva/o”, assim como seus opostos diretos “exclusão” ou derivados “exclusivo”, “excludente”, etc. Além dos opostos diretos, há também que se tomar em consideração os significantes indiretos: “segregado”, “especial” e por aí vai.

Eu, ainda que isso seja um tanto quanto incomum, incluiria outro na lista, com o qual implico muito mais do que os acima citados. É o termo “regular”.

Trata-se de palavra/conceito consagrado tanto na pedagogia quanto na legislação educacional e diz respeito à seriação escolar convencional: aquela que começa no primeiro do fundamental e termina no terceiro ano do ensino médio.

Além de que “regular” costume aparecer nos dicionários como “mediano” e “conforme as regras” me parece um tanto quanto inadequada a conjugação de seu uso com “inclusivo”. Quer dizer, “inclusivo conforme as regras” ou “inclusivo convencional” me soam sempre combinações no mínimo estranhas.

Corrobora minha argumentação o uso cada vez mais crescente de espaços educacionais que aboliram a seriação e aproveitaram para também democratizar o currículo. Cabe lembrar o exemplo pioneiro da Escola da Ponte, de Portugal, mas também outra miríade de experiências mundo afora, como a Die Kleinen Pankgrafen, em Berlim ou na Vittra School Telefonplan, na Suécia. Se o leitor não quiser ir muito longe, tem a bem conhecida Politeia, logo ali em São Paulo, que não me deixa mentir. E outras, conforme se pode conhecer ao menos nos muitos documentários que se têm produzido sobre o tema recentemente.

Mas, como a vida não comporta exceções para todo mundo, a regra é que se incluam mesmo os alunos dentro desse conceito de escola “regular”, seriada, disciplinar e progressiva. Muito embora, como já disse, tudo o que é “regular” me soe como o exato oposto de “inclusivo”.

Dito de outra forma, acho apenas pouco imaginativo (ou singelo) pensar que todas as pessoas irão adaptar-se (ou tenham como único direito) perfeitamente bem à normalidade dos equipamentos educacionais “regulares” providos (ou autorizados a funcionar como se fossem) pelo Estado. Como se a instituição escolar tivesse, num passe de mágica ou pela abertura de compartimentos burocráticos, avançado conceitualmente acerca de processos e finalidades que perduram há muito e muito tempo. Ou, como dizia o sociólogo francês Pierre Bourdieu, extrapolado de seus próprios limites de produção de hierarquias e sentidos.

Mas será mesmo que chegamos a isso, já? Ou ainda fazemos o caminho da circularidade, centrípeto, que joga para a margem o “irregular”, o “diferente”, mas agora com a legitimidade normativa, constitucional?

Não olhem para mim. Não tenho respostas. Tenho apenas perguntas e a vaga impressão de que ao menos conceitualmente a escola “regular” é tão oposta ao significado do conceito de inclusão quanto consegue ser a escola especial. E, por mais que se reafirme que “incluir” não é o mesmo que meramente “aceitar”, então não se trata mais de invocar crença e amor como instrumentação pedagógica. Não que sejam dispensáveis, claro! Mas é preciso decidir o que se deseja edificar: se serão aproveitados os alicerces de um projeto cultural institucional que sempre primou por acabar com as exceções, como afirmava Nietzsche, ou se especulará pela utopia de uma escola inclusiva, esta sim para todos e não apenas para os mais bem adaptados, continuamente seletiva e meritocrática por definição.

Do uso mais coloquial ao meramente acadêmico, as disputas conceituais são mesmo as mais acirradas e insanas (é preciso cuidado redobrado, portanto). Há amizades que são desfeitas por um mínimo desvio de compreensão e outras que se celebram por mútuo e aparente entendimento. Ainda que no plano das ideias, é hábito consagrado na espécie humana lutar-se em prol da manutenção de certas definições. É bem natural o fenômeno. Do outro lado, o que há é um deslizamento cultural e das implicações morais entre os sujeitos. Às vezes, trata-se de fenômenos evitáveis, contornáveis. Muitas vezes, como na metáfora da avalanche, não há o que possa segurar a ruína de determinado campo conceitual. E convenhamos que edificar na imprecisão está na ordem do impossível.

No limite, apesar das minhas dúvidas, respeito e também tenho procurado abrigo no modelo predominante pelos quais se organiza o ambiente escolar brasileiro. Não há alternativas/bairro mesmo. Por outro lado, não imagino que as formas testadas até aqui de transmutação regular >>> inclusiva sejam suficientes. Não creio em passes de mágica, quanto a isso sou cético e incrédulo. Além do mais, das iniciativas douradas da experimentação, por que delas pouco se extraem soluções pedagógicas? Por que inviabilizariam a dinâmica “regular”? Pois que se o assuma, assim, então, sem mais eufemismos.

Quer dizer, transformar a educação inclusiva numa coleção de ajustes ao sistema excludente só mesmo por alquimia produzirá algo de diferente no cenário educacional. Porém, a recusa em desconstruir um modelo “regular” excludente e ali meramente adaptar os desadaptados muitas vezes beira à violência pura e simples. Ou então devo crer que especificamente no Brasil a evolução conceitual e de praxis pedagógicas em tese complexas ocorreram magistralmente e simplesmente saltamos de paradigmas como quem alterna entre poças de lama (e sem sequer enlamear-se!). Eu não sei, mas muitas vezes me parece que a adoção da educação inclusiva vem servindo justamente para abandonar-se a utopia da escola inclusiva, além de reduzir ao indivíduo/aluno e suas dificuldades o “problema” a ajustar. E, numa proposição amalucada, como forma de humanizar per se o espaço educacional. Que uns se adaptem bem a isso (eu sei que existem e respeito) nada contra. A mim, parece mais da legitimação da crueldade institucional.

Dirão os menos esperançosos que é “tudo” o que temos para o momento e que há que se conformar com isso. Porém, como sou verdadeiramente utópico (e nem um pouco panfletário), quero imaginar que no futuro melhoraremos nisso e em muito mais. Desde que não tratemos o status quo da sabida precariedade como o “melhor dos mundos possíveis”, creio que seja algo da ordem do possível, sim. Quero manter-me pensando assim, pelo menos. É minha esperança que está em jogo e não costumo entregá-la a ninguém, mas luto por ela.

A judicialização kafkiana do direito à inclusão

Há poucos dias, tomei conhecimento de uma decisão proveniente do STJ, exarada através do ministro Hermann Benjamin, sobre recurso interposto pela Defensoria Pública do Distrito Federal, que me causou a impressão de estar diante de mais um típico enredo kafkiano. Não há muita novidade aqui, o sistema jurídico boa parte das vezes se parece mesmo assim: propositalmente incompreensível. Basta o indivíduo estar situado no lugar de quem pleiteia um direito fundamental qualquer e, do outro lado, a muralha procedimental e normativa do direito concretizada como poder de Estado a impugnar-lhe as demandas numa canetada.

Joseph K. é o conhecido personagem do tcheco Franz Kafka que, em O Processo, sucumbe ao maquinário da burocracia e depois de ser processado de forma inclemente é levado à pena capital sem nunca ter entendido direito do que estava sendo acusado. Dizem que é em razão deste livro e não do mais conhecido de Kafka, A Metamorfose, que se começou a usar o termo “kafkiano” para definir tudo o que é real e ao mesmo tempo incompreensível. No linguajar comum, “kafkiano” passou a significar tudo aquilo a que se está irremediavelmente submetido e que acontece à revelia de qualquer racionalidade, embora travestido de razoabilidade e coerência.

A decisão em questão (REsp 1.667.748 – 2.ª Turma – j. 27/6/2017) trata especificamente do pleito de um aluno com deficiência em contar com o acompanhamento de um monitor exclusivo em sala de aula, da redução no número de alunos e o direito a adaptações pedagógicas. O aluno, menor de idade, representado por sua mãe e no caso defendido pela Defensoria Pública do Distrito Federal, tem 15 anos de idade e diagnosticado com a síndrome de Asperger, variação do Transtorno do Espectro Autista. A decisão em primeiro grau, atendida parcialmente e apelada em segunda instância ao STJ, foi ali novamente negada.

No inteiro teor da decisão, pode-se saber o argumento utilizado pelo ministro Hermann Benjamin: “a necessidade da pessoa com deficiência deve ser contrabalançada com a parca capacidade financeira do Estado de prover monitores exclusivos para todos os alunos especiais que demandam judicialmente acerca desse serviço”.

Ora, se isso não significa negar de uma vez só a todos aqueles que acreditam que a Constituição Federal, a Convenção sobre Os Direitos da Pessoa com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão devem provisionar o atendimento a cada aluno em sua necessidade, é que deve me estar faltando capacidade interpretativa.

Se isso não significa oferecer de mão beijada ao poder executivo em suas diversas instâncias um precedente que o autoriza a descumprir o marco legal, está me faltando capacidade interpretativa.

Se tal decisão não ofende o Art. 24 da CPCD (Dec. 6949, de ), que prevê que as pessoas com deficiência recebam o apoio necessário com vistas a facilitar seu acesso à educação, está também me faltando capacidade interpretativa.

E está me faltando capacidade interpretativa sobretudo se uma decisão como esta não se confronta, na realidade, diretamente com o Art. 16 do mesmo diploma legal, favorecendo a violência institucional, liberando seus agentes de qualquer responsabilidade e expondo justamente o elemento vulnerável da relação, objeto final das leis e tratados internacionais com força de emenda constitucional a situações de abuso e exclusão.

Mas como o poder judiciário poderia estar agindo nesse sentido, favorecendo o descumprimento legal ao invés de provisionar a responsabilização coletiva e a segurança jurídica dos mais elementares direitos fundamentais, como é o acesso à educação? Como pode punir indiretamente pessoas vulneráveis, usuárias dos serviços públicos, e liberar de qualquer responsabilidade gestores que, estes sim, deveriam responder pela falência das contas públicas? Como pode justificar, por esse tipo de razão, a não observância sistemática de um marco legal celebrado por todos, mas seguido à risca, como se vê, por muito poucos?

Pois não se trata de mera má vontade pessoal do ministro em simplesmente denegar o direito social a um aluno com deficiência em específico. O mais duro de admitir é que o engessamento institucional afronta especialmente os direitos dos mais pobres, tendo em vista que no âmbito privado todas as soluções que se somam à garantia do acesso à educação do alunado com deficiência costumam ser muito bem vindas e endossadas, quando não dadas como exemplares.

Já no caso da educação pública, a mera menção de disponibilizar apoio individualizado costuma representar nada menos que a falência do Estado. É uma espécie de ameaça que a população pobre conhece de muitas outras situações e para a qual, infelizmente, conta sempre com muito pouca solidariedade e empatia social.

O mais duro de admitir é que o papel exercido pela corte de apelação acaba sendo este mesmo: proteger o Estado de cumprir as políticas que ele mesmo optou, com o respaldo da ampla maioria dos congressistas que votaram favoravelmente à Constituição Federal, ao status de emenda constitucional da Convenção Sobre Os Direitos da Pessoa com Deficiência e também à Lei Brasileira de Inclusão. Será preciso mostrar as fotografias festivas de tais eventos para lembrá-los disso? Ou então será preciso apenas reforçar a certeza da precariedade da efetivação dos direitos? Aceitar, como o Joseph K. de Kafka, que a burocracia é inapelável e condenatória? Ou tomar por certo que o império da lei está em vigor, mas que isso pouco significa quando o que está em jogo é a vida real das pessoas?

Por certo é exigir demais do Estado e de sua saúde financeira que atenda com decência às pessoas com deficiência. Nessa mesma visão de reserva do possível se deveria, inclusive, desincumbir o Estado de seus menores deveres para que, enfim, pudesse dedicar-se a outras finalidades mais nobres e inenarráveis. Não bastam as dificuldades inerentes às mais diferentes condições de deficiência, é preciso sempre contar com a irracionalidade política, a impassibilidade jurídica, a impermeabilidade social e a indiferença de classe socioeconômica. Eu sinto informar, mas um modelo social baseado neste modelo de sociedade, com poderes de Estado atuando da forma como atuam, é um modelo que nos tem servido de muito pouco, que é uma maneira delicada de dizer “nada” mesmo.

Equalização inclusiva

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Volta e meia me perguntam, entre pessoas próximas e não tão próximas, se “afinal” a inclusão “funciona”. Se funciona “de verdade”. A educação inclusiva, no caso. E pedem que eu diga “com sinceridade”, como se eu alguma vez tivesse escondido alguma coisa ou vendido irresponsavelmente uma fantasia (a troco de quê eu faria uma coisa assim?).

Pergunta complicadíssima, porque a impressão que fica é que tenho algo a delatar contra o processo ou salvá-lo de qualquer crítica. Bom, não se trata de uma coisa nem de outra. Ou, pelo menos, penso que isso não é tudo o que importa. Isso porque, na minha visão pessoal, há muitas coisas aparentemente desimportantes na inclusão que às vezes importam muito mais que os resultados comumente esperados do processo educacional: aprovação e progressão.

Importa muito, para mim, se os alunos estão felizes, por exemplo. E este é um “indicador” que ninguém avalia, nem gestores, nem governos, nem UNESCO e aí falando com aquela “sinceridade” solicitada, nem mesmo muitas famílias. Questão de prioridades, preferência e expectativas pessoais. Todos atributos inquestionáveis do ponto de vista pessoal, diga-se de passagem. E garanto que não é minha intenção aqui pesá-los ou compará-los, mas apenas fazer algumas ponderações sobre a pergunta que me foi feita e que muita gente se faz, inclusive os diretamente envolvidos no assunto. É justo que se faça a pergunta e mais justo ainda questionar-se. É um sinal de honestidade para com o assunto, nada aquém nem além disso.

Também penso que importa muito se os alunos têm uma boa relação entre si e com os professores e me parece bastante relevante que isso aconteça de verdade, para que qualquer coisa “funcione” bem no ambiente escolar. E outras coisas dessa mesma ordem eu penso que, sim, têm muita importância, embora respeite integralmente pensamentos discordantes. Coisas que, para muitos, são dispensáveis ou estranhas ao processo educacional, eu penso que não deveriam ser entendidas dessa forma e não apenas porque facilitam a atividade educacional propriamente dita, mas porque também lhe dão significado. E isso diariamente.

É por isso que minha resposta a essa questão específica nos últimos tempos tem se tornado cada vez mais evasiva. Digo apenas “depende”. E esse “depende” “depende” principalmente do que se quer dizer com “funciona”. É essa a resposta que tenho. É a única que me parece possível e honesta, a depender da expectativa do freguês e também de outras expectativas.

Do desencontro de expectativas é que, aliás, penso que decorram a maioria dos problemas educacionais e isto não se refere especialmente à educação inclusiva. Em qualquer situação envolvendo mais de duas partes interessadas, há que se fazer uma equalização de expectativas e, antes disso, há que se convencer todos os interessados de que é necessário proceder assim para, além de dirimir dúvidas e conflitos, começar a pensar na construção de uma perspectiva verdadeiramente inclusiva, ou seja, uma em que todos sejam considerados. E que isso aconteça sempre, de forma perene. E que se consolide como uma prática, ainda que às vezes imperfeita e conflituosa.

Não é mesmo fácil e às vezes, em determinadas situações, talvez não seja possível atender integralmente às expectativas de todos no que diz respeito à educação. A instituição “escola”, inclusive, nem sempre costuma perceber-se nessa função, ainda que seja dela que cada vez mais se esperem respostas nesse sentido. Às vezes até inadequadamente, seja por falta de diálogo, compreensão mútua, planejamento ou ainda outras situações.

Além disso, é preciso pensar igualmente nas expectativas dos alunos que, como se sabe, vão à escola com dezenas ou centenas ou milhares de expectativas diferentes. Os alunos também intimamente parecem fazer essa equalização de expectativas e por isso dirigem-se aos seus portões em busca de muitas coisas, além do aprendizado e do conhecimento, funções seculares dos estabelecimentos de ensino. Vão para socializar-se. Muitos vão para encontrar, conhecer, educar-se e deseducar-se pelos seus iguais. Para brincar. Para namorar. Para divertir-se e por aí vai, numa miríade interminável de anseios particulares nem sempre (compreensivelmente) coincidentes.

Já a escola, em função da desocupação humana do espaço público, cada vez mais resume e concentra a vida social dos alunos. E por certo com os alunos “incluídos” não é diferente. É por isso que é bastante normal que, na visão de um professor, por exemplo, a inclusão possa não “funcionar”. E para o aluno “funcione” sim, e muito bem. E para os pais do indivíduo, “funcione” apenas mais ou menos. Trata-se de uma questão de expectativas e perspectivas. Trata-se, portanto, de equalizá-las para que atinjam uma frequência que atenda e dê voz e espaço a todos.

Diante disso, a única resposta possível que eu tenho encontrado é mesmo aquele “depende” e, embora eu pense que seja necessário realmente a todos fazer a equalização de expectativas, na prática as coisas nem sempre são bem assim. No esquema de empoderamento das escolas, pelo menos na maioria delas (talvez possa excluir-se deste grupo aquelas mais experimentais ou alternativas), há o predomínio de um ordenamento unidirecional e isso decorre de um modelo que, ao menos em tese, vem “funcionando” dessa forma pelo menos desde meados do séc. XX. Nesse protótipo de “equalizador”, vamos chamá-la assim, funciona bem apenas o que está programado para funcionar. Fora disso, usando dessa mesma terminologia, o resto lamentavelmente é apenas disfuncionalidade.

É por isso e não por outra razão que têm prosperado em todo o país a noção de que alunos incluídos com deficiência intelectual, principalmente estes, funcionam bem apenas através de uma mediação individualizada. Nessa perspectiva específica, a escola não precisa fazer nada em absoluto para sair da sua zona de conforto pedagógica. Basta criar-se bolhas cognitivas em torno dos alunos, neutralizá-los enquanto sujeitos de desejo e garantir que a convivência aconteça em níveis socialmente toleráveis. Por incrível que pareça, essa é uma ideia que ganha amparo e adesão de muitos pais. Mas será mesmo o suficiente?

Não me atrevo nem me outorgo ao direito de responder por ninguém, mas quero cogitar que, dessa forma, talvez funcione, e muito bem, para as próprias escolas, que assim desincumbem-se de repensar a si próprias e modificar condutas. Talvez também funcione bem para algumas famílias que acreditam ser essa a única forma de salvaguardar o direito à educação dos filhos, chancelando a conduta. Já a perspectiva dos alunos, afinal são filhos e clientes nesse mesmo ambiente, por sua vez talvez seja solenemente ignorada, embora sejam eles o objeto e interessados finais no processo. É uma tradição que um projeto inovador como o da inclusão deveria suplantar, mas quase nunca isso está em questão, porque talvez quase nunca isso aconteça de verdade.

Em processos como esses, a equalização é do tipo outorgada. Possivelmente “funciona” em muitos casos e até seja satisfatória, mas não para todos. É uma solução individual que, dada por uma solução standard, mumifica o significado da inclusão, para usar uma metáfora de fácil compreensão. Parece, inclusive, que lhe é sinônima, enquanto a mim parece ser mais apenas um dos arranjos possíveis dessa “equalização”, mais jamais o único e exclusivo porque senão o comprometimento do conceito seria imenso e as consequências educacionais e culturais muito graves.

Às vezes, muitas vezes, tenho a sensação incômoda de estar tentando, ao menos metaforicamente, fazer funcionar um software moderno num hardware antigo e inadequado. Mas a questão, tendo-se em vista que não tenho meios de modificar as características do meu filho, não é o software, é o hardware. Deveria, talvez, simplesmente mudar de hardware e decretar a disfuncionalidade da escola. Então eu tranquilamente poderia sair e dizer como muitos parecem querer ouvir: “não funciona!” É um tipo de solução mágica com a qual não simpatizo em nada, porque me parece levar a um círculo vicioso infinito.

Porém, pelo contrário, eu quero insistir, tanto por que é um direito constitucional quanto porque sinto que as escolas de um modo geral precisam que isso aconteça, porque os desafios da educação não são ponderáveis previamente, precisam ser constantemente discutidos e modificados (ou equalizados, como quero dizer) e deixar de provocá-las a isso é o mesmo que abandoná-las, mas no caso com crianças, muitas crianças, a bordo. E isso está longe de me agradar. E se agrada à sociedade, talvez o problema seja ainda de maior monta.

Se alguma vez o tive, agora é certo que já abandonei de vez o sonho de encontrar a escola ideal. Minha ideia, por outro lado, é fazer da escola possível a escola ideal. Nem sempre as minhas expectativas serão atendidas, devo saber isso de antemão. Nem sempre as do meu filho serão e é preciso aceitar isso com o mínimo de naturalidade e serenidade. Principalmente ele precisa assimilar isso, ainda que isso tudo possa representar dificuldades importantes!

Também é certo que não vou atender exatamente a todas as expectativas da escola, isso é claro que não. Vou reclamar, sugerir mudanças e também acatar negativas justificadas, além de dialogar civilizadamente também, com argumentos, para que tudo não se transforme num queixume generalizado ou numa batalha campal. Isso também não posso ver como um território de construção do que quer que seja. Parece mais à terra arrasada. É preciso um mínimo de espírito colaborativo, porque senão o processo é esfriado e, principalmente, esvaziado de sentido. Tudo isso faz parte do que estou chamando aqui de “equalização” e, se isso não existe nem como possibilidade, bem, aí o problema então é bem mais sério. É um problema de quebra de confiança, de necessidade de mudança, e talvez até de mudança de endereço.

Por outro lado, existindo a boa vontade para o diálogo, então eu acho que, pode, sim, pode mesmo, “funcionar” bem. Mas não é nada que vá se dar por conta própria, num passe de mágica ou automaticamente. Vai “depender” e muito do que se quer atingir. Do que se quer priorizar, avaliar e valorizar. Ou, como digo, do que se quer “equalizar”. E vai depender se a todos é dado o direito de participar dessa equalização. Sei que essa não é uma boa maneira de responder a uma questão aparentemente tão simples e objetiva, porém em se tratando da educação, acho que não poderia ser diferente. À guisa de oferecer alguma solução mágica ou ideal, que desconfio que sequer exista, pelo menos é uma tentativa em diminuir o ruído e amplificar possibilidades. Num cenário por vezes adverso, num país cujo momento político valida e dá o exemplo da agressividade e da gritaria como argumento, pode ser o caminho de todos escutarem-se e fazerem-se entender, do modo pelo qual isso for possível. Porque se precisa – e todo mundo quer – é uma inclusão de sujeitos e não meramente uma educação de objetos.

O indispensável despreparo necessário à educação inclusiva

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Por muito tempo acreditei, ou quis acreditar, ou me fizeram crer (difícil saber ao certo) que os principais problemas da educação inclusiva no Brasil seriam o despreparo e a falta de experiência dos professores. Santa ingenuidade, Batman. Só hoje consigo compreender que o “preparo” e a “experiência” tanto podem representar pontes desejáveis quanto armadilhas quase irreconhecíveis nos caminhos tortuosos ou retilíneos da educação e do aprendizado dos alunos com deficiência, especialmente daqueles com deficiência intelectual.

É que o atributo da experiência, mesmo que para uns signifique aprendizado, para outros tantos significa apenas acúmulo. E o acúmulo de más experiências e baixas expectativas pode ter um resultado pior que a encomenda, ou seja, pode colaborar em compreensões e abordagens pré-estruturadas e negativas dos indivíduos, no caso os alunos.

Assim, não é incomum encontrar-se professores que alimentam a crença de que seus alunos podem ser tomados genericamente com base em um CID ou diagnóstico e que, portanto, basta replicar possíveis fórmulas de sucesso e evitar previsíveis receitas de fracasso para que as coisas aconteçam. Vã ilusão. Cada ser humano é inesperado e enquanto pensarmos que é possível encaixotá-los em categorias da “diversidade” não avançamos além da rotulagem mais do que imaginamos, quando não apenas se está a reforçar ainda mais, mesmo que de uma maneira aparentemente democrática, a bem conhecida estigmatização.

Por mais estranho que pareça, sempre tive melhor (no meu caso pessoalíssimo) sorte com professores despreparados. É sério, não é piada. Não faço piada sobre esse tipo de assunto porque realmente às vezes é difícil distingui-la de algumas coisas, novidades, cursos, eventos, publicações e teorias que parecem muito sérias, mas que na prática nem sempre são tão sérias e aproveitáveis assim. Não vou citar nomes aqui não por uma questão de respeito ou indulgência, mas porque há muitas sobre as quais ainda tenho muitas dúvidas e se encontram sob investigação.

Das muitas vantagens de um professor despreparado, eu citaria rapidamente a principal delas: um professor despreparado tem muito menos preconceitos e ideias errôneas em mente que aqueles que optaram por uma compreensão unidirecional dos processos de construção/aquisição/elaboração/ou seja lá o que for do conhecimento. Ele está aberto a surpresas enquanto o “preparado” predominantemente imagina que já sabe o que vai encontrar, carregando na sua compreensão e práticas muitas vezes mais os quilogramas de conceitos e preconceitos disponíveis no mercado de ideias que o mínimo indispensável ao ofício: amor e respeito às crianças pelo que elas são.

Essa vantagem poderia ser suficiente para encerrar minha argumentação, mas ainda há outras de que não posso esquecer. O professor “despreparado”, por exemplo, pode afeiçoar-se pelos alunos individualmente (ou seja, suas pessoinhas) enquanto os “preparados” lidarão sempre com categorias de alunos. Os “inexperientes” procurarão entender o percurso individual do aluno de uma forma natural, já o “experiente” poderá tentar empilhar o sujeito (ou sujeitinho) em alguma camada do seu know-how prévio. E, glória das glórias, o “experiente e preparado” poderá tentar repetir fórmulas indefinidamente, enquanto que o “despreparado” será sempre obrigado a procurar caminhos e alternativas, instigando-se a si mesmo, o que é uma característica das mais desejáveis para a profissão.

Então quero dizer com isso que não existe preparo adequado ou ganhos pela experiência que sejam possíveis? Claro que não quero dizer isso. Mas então.. eis a pergunta que não quer calar: como saber? Não sei. Realmente não sei. Se eu dissesse que sei então estaria incorrendo no mesmo erro que acabo de condenar, que tenho a fórmula, como se alguém pudesse ser ou portar-se como uma agência de certificação, não que algumas pessoas não tentem ser um tipo de oráculo educacional. Definitivamente, os há. E como! Demasiado até, no meu ponto de vista.

Quero dizer com isso que um professor despreparado fará melhor trabalho que um mais preparado? Também não sei. Não tenho como saber. Fazê-lo seria aplicar a mesma regra com que muitos professores empregam a seus alunos, encaixotando-os e rotulando-os. Não é disso que se trata. Estou pensando e falando sobre comportamento real, não sobre teoria ou literatura científica.

O que eu quero dizer essencialmente para pais como eu, de crianças pequenas que dependem muito de uma comunicação indireta ou mediada por profissionais externos para revelar seus problemas e progressos, é que encontrar um professor “despreparado”, mas realmente dedicado e interessado, pode ser em muitos casos a verdadeira sorte grande, com quem será possível aprender e compartilhar para um mútuo proveito.

E também que, infelizmente, encontrar um professor “preparado” e “experiente” ou tudo isso conjugado nem sempre é garantia de coisa alguma, não cabendo, ressalte-se, tomar isso como regra. É claro que a soma de boas experiências e boa fundamentação teórica é o substrato ideal para que um professor encare satisfatoriamente a sua tarefa, embora haja muitas coisas a considerar também, desde a questão salarial, suporte, recursos adequados e espaços reais de colaboração com as famílias, que são os interessados finais no processo todo, afinal de contas.

Longe de mim querer ser ou parecer ser o agente da “intranquilidade”, mas de certo modo é exatamente disso que se trata. É claro que as metodologias de ensino são importantes e tudo o mais, mas igualmente é necessário restabelecer um pouco de espanto, surpresa e curiosidade no processo educacional como um todo, sob pena de que ele resulte artificial e com pouquíssimos atrativos, especialmente em se tratando do público infantil.

A infância, como sabemos, é um momento único na vida. Para os pais e mães de crianças pequenas – e nesse ponto se são crianças com deficiência intelectual ou não isso pouco importa -, seus filhos não podem ser resumidos em oportunidades ou experiências de maior ou menor sucesso escolar, mas constituem e integram efetivamente suas famílias e, através da escola, eles esperam apenas que ela os ajude a pertencer dignamente à sociedade. Se o preparo e a experiência conspirarem a favor dos alunos, então está tudo ótimo e há pouco a melhorar. Caso contrário, talvez seja interessante convidar os educadores a restituírem pelo menos um pouco a importância da dúvida para a constituição do saber. E isso não requer tanto preparo quanto, talvez, um pouquinho mais de boa vontade.

Haja terapia!

Um puzzle é montada à força por um boneco

Por natureza, sou péssimo montador de puzzles. Os de oito peças para cima são desafios que sobrepujam com sobras minha ridícula capacidade combinatória. Talvez isso seja um defeito meu (que não me afeta em nada a não ser na capacidade de montar puzzles) que eu deva corrigir o quanto antes e a qualquer custo. Vá que eu adquira um problema de auto estima em função disso. Ou um trauma. Ou uma marca cármica que passarei através das gerações e, portanto, amaldiçoará um monte de gente que nem nasceu ainda.

Coitados, mal sabem o que os espera. Trata-se de um estigma inextirpável. Uma marca distintiva mais encravada que tatuagem mal feita. É uma maldição o negócio esse de ser uma nulidade em puzzles.

Mas a minha situação estaria muito pior ainda caso a montagem de quebra-cabeças fizesse parte do currículo escolar. Eu não teria passado do fundamental, seguramente não. Já vejo os professores me olhando de longe e o bullying que eu sofreria por ser nada além de um desastre em pessoa. Nesse caso, sim, minha auto estima estaria ameaçada, assim como os destinos da ciência, das letras, da engenharia, do comércio e etc. Como alguém não habilitado a resolver um simples quebra-cabeças pode imaginar-se concluindo o ensino médio, por exemplo? Ou frequentando uma universidade?

É por isso que, toda a vez que eu fico sabendo que um aluno com dislexia, discalculia ou alunos com deficiência de um modo geral são avaliados com base exclusiva naqueles conhecimentos os quais têm dificuldade inata, eu realmente posso dizer que entendo o que estão passando. Felizmente, nunca segui os conselhos daqueles que me disseram para estudar a combinação dos puzzles e não me atravesse para além deste desafio fundamental para o universo. Segundo estas pessoas, eu estaria ainda patinando pela eternidade num tipo específico de problema que não afeta absolutamente ninguém a não ser eu mesmo e, confesso abertamente, que nem a mim mesmo faz falta também.

Na verdade, eu gostaria de sugerir fortemente que cada pessoa procure individualmente – das ciências e das artes – a que menos lhe interessa, mais causa repulsa e para a qual tenha menos habilidade e concentre-se exclusivamente nisso, até “superar” a dificuldade. Depois pense, ou pelo menos tente pensar, em que tipo de aluno e ser humano daí pode resultar.

A educação de um modo geral, e especificamente a educação inclusiva, pela necessidade de encontrar-se meios de viabilizá-la nas escolas regulares, vem mantendo-se ao custo de muitos dogmas, mitos e pacotes fechados. Assim como por muito tempo justificou-se a exclusão de alunos pela sua suposta incapacidade de responder a um modelo uniforme de transmissão e expressão do conhecimento, finalmente parece ter-se chegado a um modelo sublime de educação inclusiva, um que vislumbra apenas o ser humano e sua respectiva “problemática” e investe pesadamente em compensá-la, mesmo que através de um conhecimento absolutamente estéril. Em virtude disso, coisas como adaptação de conteúdo e avaliação diferenciada são ditas a meia boca, como se fossem ofensivas ou minorativas.

Um modelo assim é como um rito inescapável pelo qual o sujeito passa ou não passa. É um modelo educacional onde o sujeito se enquadra ou não se enquadra. É uma prática que não traz alternativas, mas embretamento. E tudo o mais seria tolerância e solidariedade, mas parece que essas também são palavras cada vez menos toleradas, apesar de ilustrar comoventemente políticas pedagógicas, cartões comemorativos, peças de marketing, etc etc. Por tanto não atribuir sentido algum a elas, acabaremos por inutilizá-las justamente onde elas mais faltam: no cotidiano escolar. E a escola inclusiva finalmente logrará seu mais novo status: o de espaço reabilitador de competências.

Se você tem o azar de ter um filho que tem repulsa, escasso interesse ou qualquer dificuldade especial como, por exemplo, a montagem de quebra-cabeças, como eu tive e ainda tenho, considere a possibilidade de fazer uma poupança para um psicólogo, porque até hoje não se descobriu forma mais eficaz de gerar e manter alunos “problemáticos” que tomá-los prioritariamente por seus pontos fracos e dificuldades.

Haja terapia!

PNE e educação especial: vazou água para dentro da canoa furada?

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O título acima parece pessimista? Irônico? Sarcástico? Derrotista? Diga você (pense um pouquinho antes) o que ele a si mesmo parece. A mim parece definitivamente claro que o Plano Nacional de Educação (PNE) é uma canoa furada. Eu poderia ser mais cruel e chamar de engodo, mas como acredito que algumas pessoas realmente envolvidas e comprometidas participaram desse arrastar de correntes em que se tornou sua tramitação, não irei usar esse termo. Se você acha que estou demasiado amargo, sinta-se livre. Procure outras fontes, não há profusão de fontes interessantes e sérias por aí? Vai lá.

Se você quiser continuar, já vou antecipando uma salvaguarda pessoal. Quando estou falando em pessoas comprometidas e envolvidas não estou inserindo nesse grupo nem um e nem meio sujeito desses que se chamam políticos. Nem senadores nem deputados. Nem deputados nem vereadores. Nem a presidente nem os governadores. Nem os prefeitos nem os vereadores. Nem os com mandato nem os que o buscarão no próximo ano.

Dito isto, posso mostrar alguns argumentos que o caro leitor poderá ou não refutar. Somos adultos, livres e desimpedidos. Correto? Então não há o que temer.

Primeiramente devo dizer que não gostaria de analisar a situação atual partindo do próprio PNE. Pelo menos em relação à educação especial, o arrastar de correntes ainda é mais antigo, remonta a outros momentos, outras situações. É claro que, se tivéssemos a capacidade de aprender com os erros, não chegaríamos aqui dessa maneira. Todavia insistir nos erros parece um destino fatal que ronda a sociedade brasileira. Toda ela. A sociedade, essa quase abstração. Penso que isso ocorre ainda mais quando suas condições sociais estão indelevelmente marcadas pelo imobilismo social (a despeito ou a exemplo das políticas afirmativas) e a educação pública – foco central do PNE – mantém seu locus social inalterado.

Desta forma, embora hoje se discutam filigranas para um plano que deveria apontar para indicadores concretos e realidades “sensoriáveis”, o embate repetitivo volta a ser, no caso das pessoas com deficiência, o mesmo de sempre. Procura-se definir num plano de metas concretas (onde não deveriam constar verbos no infinitivo, mas quantidades) o que é cabível e até legal (isso incompreensivelmente) em relação à oferta de educação especial e possibilidades de escolarização. Parece até que há legisladores convencidos de mudar os ditames constitucionais com o plano, o que é um devaneio jurídico. O que o plano é, de fato, é um retrato de um projeto ou, como quero metaforizar, de uma canoa. Acontece que parece que a tal abstração chamada sociedade, governos e movimentos sociais parecem não querer entender o que são, onde estão e porque existem os furos no casco dessa canoa, que a impede de ir adiante e torna o debate claudicante, arrastado e às vezes até modorrento.

A despeito das pressões legítimas de todos os setores sociais envolvidos (falo nas pressões a favor da educação inclusiva e nas pressões a favor da escola especial), do crescente interesse da mídia pelo assunto e da premência governamental, a impressão que eu tenho é de que a canoa não vai partir nesse ano e talvez nem no próximo (imagina na Copa) ou, pior, de que possa partir para chegar a lugar nenhum, porque seu alicerce prometido – os investimentos do pré-sal – também já se mostrou bastante comprometido, conforme visto no caso do leilão do campo de Libra.

Então, o que há de acontecer? Bem, como os senadores tomaram para si a tarefa de reescrever e deturpar o discutido pela sociedade, deve acontecer o que sempre acontece quando tais pessoas decidem a coisa pública no Brasil. Alguns interesses serão acomodados, algumas aberrações inconstitucionais serão propostas e vamos assim, tocando a canoa.

Como se trata de um debate que veio a público através de inúmeros veículos, como o site do Luis Nassif , o blog do Sakamoto e em outros lugares, poucas vezes se pode ver tão claramente o que o público (não vamos chamar isso de sociedade) pensa a respeito, já que seus comentários lotaram os sites e suas matérias. Embora se saiba hoje que “comentador de internet” é até profissão, penso que há muito que depreender das apreensões populares registradas nestes comentários, mantido algum fitro, talvez o da mesma espécie que devemos ter em relação à mídia governamental e para-governamental, por exemplo, assim como toda a mídia caso você pense em contrário (vai sobrar alguém?).

Mas o que se pode ler sobre inclusão e sobre escola especial nesses comentários são ambos relatos concomitantemente assustadores e alentadores. Aqui penso que cada um deve tornar-se sensível ao que lhe parece admissível ou não. Não serei eu a declarar um édito dessa importância. Minha intenção é apenas tentar reendereçar aos cidadãos, às pessoas comuns, a atenção de formadores de opinião e até mesmo dos políticos (embora eu acredite que eles estão lixando-se e preocupados com outro tipo de coisa, haja vista sua total ausência pública).

Eu não sei quanto às demais pessoas, mas eu sinto-me verdadeiramente agredido tanto pela violência quanto pela indiferença institucional em relação às pessoas com deficiência, principalmente as que dependem dos serviços públicos ou dos serviços assistenciais. Preocupa-me também a persistência do modelo assistencial, é claro que sim, mas me preocupa mais ainda a permanência de condições políticas e sociais que favoreçam isso. É preciso ter consciência de que o modelo assistencial é duradouro também porque parcelas significativas da população vivem em situações de extrema carência e o sistema educacional público não consegue (quero muito que um dia consiga) aplacar suas necessidades, que são muitas vezes mais assistenciais que propriamente educacionais.

Tanto quanto procuro fazer a leitura dos fatos políticos, até porque recebemos muitos comentários aqui na Inclusive, leio com muita atenção tanto as críticas das pessoas comuns, das famílias, às escolas especiais quanto às escolas regulares. Leio com mais atenção ainda seus relatos pessoais, que dizem respeito às situações reais da vida das pessoas. Como não existe um filtro que indique onde há ficção ou realidade, afligem-me seus temores, indigno-me com situações violentas e, sobretudo, com a indiferença institucional, parta de onde partir. Como pai de uma criança com deficiência, sinto-me muitas vezes emocionalmente espancado.

Sei que é ingênuo querer que políticos sintam-se como eu ou que gestores acostumados a cadeiras almofadadas embrenhem-se com suas ideias na vida real, lá onde as pessoas já não esperam muito da educação, ou seja, em boa parte das escolas públicas deste país. Quando eu penso na necessidade de um amplo diagnóstico social e mirar estrategicamente outros alvos no sentido de promover o acesso a uma educação inclusiva com dignidade, quero também crer que é para essas pessoas que relutam diante aos portões de escolas sucateadas (que muitas vezes elas mesmas frequentaram e conhecem melhor que ninguém) que devemos mirar.

Quero crer ainda que devemos exigir mais que um PNE, ou uma meta sua, para lhes garantir um atendimento educacional digno, mas que esse movimento social seja permeado pelas camadas populares que ele visa atingir, com todas as suas características sociais e culturais, tão diversas. Que ele angarie tanto autocrítica quanto a bem conhecida autoreferência. Que se manifestem às claras e coloquem-se disponíveis ao exame social. Quanto a mirar o poder e políticos comprometidos com sua vida eleitoral, a esperança de que um gesto vindouro de bondade extrema no qual eles percebam as necessidades das pessoas com deficiência pobres e comovam-se (ou mais difícil ainda, dêem sua vida política por isso), esse tipo de esperança social tem uma história nefasta no Brasil, como atestam outras movimentos sociais (e até raciais) e segmentos minoritários.

Se é preciso estratégia tanto para melhorar este plano e, como disse antes, felizmente temos muitas pessoas verdadeiramente interessadas trabalhando nesse sentido, quanto para o próximo, talvez seja fundamental parar de olhar tanto a canoa e conhecer melhor seus buracos. Pode-se chamar isso, inclusive, de diagnóstico. Reflexão só parece já não bastar. Ainda que às vezes uma palavra nos demova, como estamos falando de pessoas, talvez devamos procurar exercitar a empatia que temos (se é que temos) e considerar que mesmo as ideias que para o nosso tempo social estejam ultrapassadas – até porque as condições econômicas permitem acesso seletivo a bens sociais e capital cultural – para outros podem simplesmente não estar. Voltando à metáfora da canoa, eu quero pensar que talvez seja a hora de considerarmos seriamente as preocupações de seus ocupantes, isso mesmo se vamos de barco oficial ou barco particular.

Educação especial, uma miragem no Plano Nacional de Educação?

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A semana que começa deve recolocar no cenário político, através da expectativa pela votação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado Federal do PNE (Plano Nacional de Educação), uma situação recorrente no que diz respeito ao financiamento da oferta de educação especial no Brasil. Trata-se da polêmica Meta 4, que organiza o plano sobre a distribuição de verbas do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

A polêmica, que envolveu entidades filantrópicas associadas ao modelo de escolarização especial e movimentos em defesa da educação inclusiva irrestrita, resume-se para este caso na disputa em torno a presença ou não da expressão “preferencialmente na rede regular de ensino”, o que garantiria – ou não – a continuidade do financiamento público da escolarização no ensino especial, contrariando orientação do direito constitucional vigente, principalmente após a adoção da CPCD (Convenção sobre Os Direitos da Pessoa com Deficiência) que orienta os países a adotar sistemas inclusivos em todos os níveis, com a educação especial servindo de modalidade complementar e transversal.

Mas afinal, o que significa dizer “preferencialmente”? Preferencialmente quando? Preferencialmente por quê? Talvez aí esteja o erro fundamental, a miopia verdadeira. Não se trata de simplesmente suprimir o “preferencialmente”, mas de explicar em detalhe as condições para que um aluno não possa frequentar a escola regular. O cruel de manter o “preferencialmente” assim, como um termo vago, é que a culpa, no caso, recai sempre sobre o elo fraco da corrente, ou seja, o cidadão: o aluno e sua família, e se obtêm vilões e heróis automaticamente.

O que o executivo deveria assumir, mas prefere deixar em suspenso, é que muitas vezes não tem como ofertar uma educação com dignidade. Não digo que se precise ver com os próprios olhos a situação de muitas escolas, fotografias já são suficientes. Relatos são de fazer c(h)orar. E não é porque lhe falte recursos, mas na perspectiva do pacto social vigente, ele (o governo) prefere simplesmente lavar as mãos e manter a roubalheira que se faz com os recursos públicos. Inclusive os do FUNDEB, que sabidamente são foco de intensa corrupção.

Suprimir o “preferencialmente” para agradar a quem não está na escola pública sem enfrentar o problema em si mesmo, que é a oferta de uma educação pública de qualidade para todos, não é nem miopia, é uma política minuciosamente equivocada que envolve sistemáticos desrespeitos, a começar pelo salário dos professores, passando por escolas esfrangalhadas, salas de aula lotadas, serviços especializados sobrecarregados (porque os problemas educacionais atingem a muito mais pessoas que as pessoas com deficiência), carência de equipamentos e, principalmente, o direito – este sim inalienável – dos alunos em ter na escola pública uma educação que não seja meramente aquela que nos envergonha quando a UNESCO e outros organismos multilaterais vêm olhar de perto, já que a tal “sociedade” prefere olhar bem de longe os próprios problemas, ou tratá-los como se fossem alheios.

Então eu penso que o preferencialmente deveria ser mais bem detalhado e que se o usasse simplesmente quando o Estado não tivesse nada melhor para substituir as escolas especiais e que, nesse ínterim, o Ministério Público se ocupasse em punir e exigir do executivo até que ele se mostrasse em condições de oferecer o que suas leis constitucionais ordenam, e o Judiciário prendesse os políticos e gestores comprometidos exclusivamente com sua vida eleitoral e sua corrupção ordinária, e a cadeia os mantivesse presos lá, a fim de evitar danos sociais repetitivos.

O que eu quero dizer é que há bem mais que um termo impreciso atrapalhando a inclusão de alunos com deficiência na escola regular pública. Preferencialmente, a sociedade deveria entrar em consenso sobre essas coisas mais do que por uma terminologia formal. Eu fico me perguntando é se é digno tratar dos interesses públicos tão restritamente ou se não estamos fazendo disso um tipo de miragem com a qual nos compadecemos do centro do oásis da nossa vida privada.

Já disse em outra oportunidade e volto a dizer: se enfrentar o “preferencial” no campo político é duro, talvez seja mais oportuno criar debates de outra ordem. Penso que a construção dos indicadores de qualidade previstos no item 13 da Meta (definir, no segundo ano de vigência deste PNE, indicadores de qualidade, política de avaliação e supervisão para o funcionamento de instituições públicas e privadas que prestam atendimento a alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação) já está mais do que atrasada no âmbito da sociedade civil, até para que se possam contrabalançar os apelos assistenciais com dados mais concretos que a simples contabilização de matrículas.

Do ponto de vista estratégico, mesmo com o aporte legal da CPCD, o debate está sustentado pelos argumentos – e pela realidade – de sempre, onde se sabe bem como as coisas terminam, principalmente quando os atores que a decidem são preferencialmente os atores políticos, através de suas emendas à legislação e bastidores costumeiros. Se a sociedade e seus representantes se ocupassem da qualidade da educação pública e dos direitos dos outros com a mesma intensidade que defendem os próprios direitos, esse “preferencialmente” não significaria absolutamente nada. Além disso, as pessoas, que deveriam ter o direito a sempre deixar seus filhos na escola com toda a tranquilidade do mundo, também não precisariam se preocupar com isso. Nada mais justo, nada mais complicado que isso…

Educação inclusiva: circunstância ou projeto?

Estou entre aquelas pessoas que prefeririam que a educação fosse uma ciência exata e seus problemas pudessem ser resolvidos através de uma fórmula, de uma equação. Acontece que a educação é tão dependente de outras circunstâncias que qualquer tentativa de abordá-la unilateralmente acaba por ir fatalmente de encontro a situações tão díspares quanto diversas, como se num redemoinho de particularidades. Por uma situação muito pessoal, há mais ou menos sete anos acompanho e participo de alguns debates sobre uma faceta que vem ganhando cada vez maior destaque no que diz respeito à educação. Estou falando da assim chamada “educação inclusiva”.

Assim como a educação em seu sentido mais amplo, a educação inclusiva também está sujeita a particularidades de toda a ordem e também não são poucos nem desconhecidos aqueles que gostariam de aplicar uma fórmula e dar por encerrada a questão, que efetivamente diz respeito a pessoas com interesses tão distintos quanto a própria “diversidade” das pessoas, para usar um termo do jargão do tema, mesmo que isso seja evidentemente impossível. Exatamente em função dessa diversidade de interesses, há pelo menos sete anos tenho assistido (e às vezes participado) a uma luta de gladiadores entre os defensores da inclusão de alunos com deficiência em escolas regulares e aqueles que consideram que sejam as escolas especiais, as que concentram exclusivamente alunos com deficiência, as que melhor prestariam o serviço educacional.

O embate é recorrente e principalmente motivado por questões que envolvem o formalismo legal, o debate sobre direitos sociais e também a destinação final de investimentos públicos. Então, a cada vez que uma peça nesse tabuleiro é movida, os envolvidos e os interessados apresentam suas armas e vão a luta. O resultado mais visível demonstra que o assunto continua tratado mais no âmbito político do que efetivamente no educacional. De qualquer forma, há bem pouca renovação na temática, sendo que o possível fechamento das escolas especiais sempre está no centro do confronto, seja por decorrência de resoluções do MEC, projetos de lei no legislativo ou, mais recentemente, da aprovação do PNE – Plano Nacional de Educação.

Assim como a disputa é recorrente, o mesmo pode ser dito dos argumentos utilizados e também das intenções em jogo. À exceção do executivo, que eventualmente retrocede de suas próprias iniciativas, trata-se de um “jogo” no qual as cartas não costumam mudar de mãos. Embora fosse desejável que o sistema educacional acompanhasse o desejo social e implementasse políticas de acordo com esse desejo, a política de um modo geral e, mais especificamente a educacional, parece ter seus próprios desígnios, inclusive a despeito de dispositivos constitucionais irrefutáveis, como a Lei de Diretrizes e Bases, a Constituição Federal e os tratados internacionais adotados como emendas constitucionais, caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, fato que já não é mais ignorado por ninguém.

Diante disso, parece que nem há o que debater. Seria o caso de obedecer e fazer cumprir o marco legal e pronto. O que ocorre é que a sociedade não se move exclusivamente pela conformação das leis, mas também por outros interesses e circunstâncias. E é óbvio que, enquanto houver pessoas interessadas em manter seus filhos em escolas especiais, haverá quem lute por mantê-las e representar politicamente estas famílias. Tudo isso, diga-se de passagem, faz parte de outro jogo, o assim denominado “jogo democrático”. Mas é exatamente nesse ponto que uma questão se faz relevante, ou seja, afinal por que mesmo existem famílias que relutam em enviar seus filhos com deficiência às escolas regulares?

Excluindo-se qualquer maniqueísmo infantil e hipocrisia política, trata-se de um problema sério. Sério e simples. Simples e inefetivo. Não é preciso ser gênio para perceber que não há família que não deseje para seus filhos um ensino de qualidade. Também não é preciso ser gênio para saber qual qualidade de ensino é oferecida aos cidadãos na rede púbica de ensino. Excluam-se aqui as pessoas que podem e estão pagando caro para garantir a tal “qualidade” para seus filhos no ensino privado, que constitui um universo à parte, as demais veem-se entre a cruz e a espada, o que só não é perceptível para quem não deseja perceber.

A despeito dos investimentos reais que o executivo vem fazendo, mesmo que muitas vezes em evidente oposição a outras esferas do mesmo poder executivo (como nos casos de políticas municipais contrárias às políticas federais), estão ao alcance de quaisquer pessoas dados informando o grau de precariedade que atinge o ensino público de um modo geral. Então, se há um impasse em questão, este é o impasse por excelência, até mesmo porque a principal fonte de investimento na educação especial na perspectiva inclusiva são as verbas do FUNDEB que, recentemente, têm sido objeto de desvios investigados pela Controladoria Geral da União (ver aqui) e outros órgãos da administração e poderes. Trata-se de um impasse real que exige medidas e respostas concretas, porque terá repercussão direta justamente no ponto crítico do debate, a busca por uma educação de qualidade, desejo de pais de alunos com e sem deficiência.

Dito em outras palavras, a disputa deverá subsistir enquanto as melhores escolas públicas inclusivas continuarem atendendo as famílias com menor qualidade que as piores escolas especiais. E isso segundo o critério das próprias famílias, que efetivamente é o único que importa, muito embora seja dito muitas vezes a estas que elas não sabem decidir, que o Estado ou as instituições é que sabem, etc. Some-se ainda o fato de que o tema muitas vezes se encontra sob os cuidados dos mesmos “zeladores” – ou políticos – responsáveis por desviar os recursos públicos, o que sabidamente não é também novidade nenhuma no Brasil.

Isso não significa dizer que não haja, por outro lado, escolas especiais – até porque há muitas mantidas pelo próprio poder público – em terrível situação e precariedade. Ou ainda que haja filantrópicas isentas de problemas de gestão, etc. Embora tal argumento também esteja na ponta da língua daqueles que usam como artefato de guerra o mesmo maniqueísmo infantil já mencionado, basta conhecer-se a realidade para perceber-se que o tema é mais sério e exige muito mais do que costuma interessar às disputas políticas. Exige interesse pela educação, mas justamente em um país que direitos como educação, saúde, etc. estão menos a serviço das pessoas e mais à disposição de uma política de baixíssimo calibre, mesmo que os eventos solenes demonstrem outra realidade e a corrupção quase nunca seja movida por ninharias.

Assim como muitas vezes os piores exemplos educacionais sejam invocados como fonte de argumentação, por outro é evidente que há excelentes experiências e ideias a respeito da educação como um todo e também sobre educação especial ou educação inclusiva, até mesmo no combalido ensino público. Ressalte-se que, em sua maioria, trata-se de iniciativas locais e comunitárias, como o Projeto Âncora, o CPCD do educador popular Tião Rocha e tantas outras iniciativas que, talvez por um desejo social conflituoso, pouquíssimas vezes conseguem materializar-se em escala.

Fica, portanto, a educação inclusiva sujeita a mesma intempérie que corrói a educação pública e transforma a necessidade social pela educação de qualidade em uma equação sofrível na qual o elemento menos considerado é justamente o de que mais dela necessita. Se a equação por uma educação de qualidade para todos passa por tantas circunstâncias e particularidades, a sociedade tem demonstrado claramente que quer mais que uma promessa de melhor atendimento aqui ou acolá.

Ela quer – e andou mostrando isso claramente nas ruas recentemente – mais que um direito nominal e um acesso precário aos serviços públicos, mais que compromissos formais e promessas vazias, ela quer simplesmente uma realidade decente para viver. Que isso também é circunstancial é bem sabido. Mas será que ao invés de “mudar para melhor” a educação, nesse protótipo permanente de truque frustrado, não seria mais adequado começar a mudar elas, as circunstâncias?

Educação especial e inclusão: de volta à berlinda

2 pesos 2medidas - um jogo da velha vencido apesar das regras, sem completar-se a sequencia exigida

Em cerimônia no Palácio do Planalto, no último dia 17, a presidente Dilma Rousseff anunciou aquela que é a primeira grande iniciativa de atenção à pessoa com deficiência em seu governo. O Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, batizado “Viver sem Limite”, destaca a necessidade de viabilizar a inclusão social das pessoas com deficiência em todo o país e prevê um investimento de cerca de 7,6 bilhões de reais até 2014, em áreas como acessibilidade arquitetônica e urbanística, saúde e educação, entre outras.

Na esteira do plano, o governo também lançou um conjunto de medidas visando sustentá-lo legalmente, entre as quais os Decretos 7.611 e 7.612. Este último diz respeito ao detalhamento do plano em si mesmo, enquanto o primeiro reorganiza os serviços da educação especial, complementares ou suplementares ao ensino regular, o assim chamado atendimento educacional especializado (AEE), e a específica distribuição de verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) destinadas a financiá-lo, nas diferentes modalidades de sua oferta.

Posicionando o Dec. 7.611 no marco legal

O decreto consolida a legislação anterior e confirma a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, revigorando o conceito de dupla matrícula, presente desde 2007 através do Dec. 6.278, que restituiu às escolas especiais o direito de ofertar educação especial no âmbito da política governamental em vigor. Além disso, o Decreto também dispõe sobre a oferta de educação bilíngue para surdos e outros dispositivos de financiamento aos sistemas de ensino.

Do ponto de vista educacional, a dupla matrícula amplia as condições de oferta dos serviços de AEE pelas escolas especiais, agora novamente habilitadas a captar recursos do FUNDEB e a investir em qualificação, conforme os demais dispositivos do novo decreto. Já do ponto de vista político, o decreto pode ser interpretado como uma fonte de recuperação das escolas especiais, que na atual política haviam perdido a anterior preponderância no atendimento às pessoas com deficiência, uma vez que a adoção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CPCD) e sua incorporação ao texto constitucional, em 2009, obrigou definitivamente o país a implementar e investir na educação para pessoas com deficiência em ambientes inclusivos.

O Dec. 7.611 e a oferta de educação especial

O percurso recente da educação especial no Brasil está vinculado ao estrito conceito de inclusão educacional, que diz respeito à presença dos alunos com deficiência nas escolas regulares. Todo o investimento governamental dos últimos anos dirigiu-se, portanto, a programas destinados à qualificação docente, adaptações e investimentos que pudessem garantir o acesso e a permanência dos alunos nas escolas regulares, espaço preferencial da educação das pessoas com deficiência, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

A opção pela nova política, regulamentada no Dec. 6.571 de 2008 e pavimentada pela Resolução 4, de 2009, do Conselho Nacional de Educação, não se deu entretanto sem uma ruptura. Trata-se, afinal, de partir de um modelo em vigência desde a década de 60, no qual escolas e classes especiais esboçavam um gesto tímido de integração à escola regular, para um outro no qual os estudantes passaram a conviver nos mesmos ambientes e a exigir uma nova organização escolar e também a ressignificação do fazer pedagógico.

Todo esse movimento foi impulsionado nos últimos quatro anos, brevidade que explica, pelo menos em parte, as inúmeras dificuldades que ainda permeiam a escola regular, na qual a praxis educacional está ainda especialmente orientada à competitividade e ao mérito distintivo, política também fomentada pelo governo federal, que a partir de 2011 envida esforços e destina recursos ao ensino técnico e profissionalizante.

A retomada das escolas especiais

A retomada que as escolas especiais obtém com o decreto recém editado acontece sob a mesma gestão que estava à frente do Ministério da Educação há quatro anos, com o Ministro Fernando Haddad. Desde lá, as políticas públicas destinadas à educação têm tido como referência a perspectiva da educação inclusiva, recolocada no centro do debate educacional incorporando uma série de novos conceitos e valores, tais como o mútuo reconhecimento e o amplo respeito à diversidade individual das pessoas. É portanto no foco da nova política de educação especial inclusiva que o Decreto 7.611 se inscreve, modificando alguns de seus detalhes, mas não alterando sua essência, até porque deve obedecer a precedência legal e temporal de acordo com o previsto na CPCD, razão pela qual traz embutidos em seu texto vícios de inconstitucionalidade.

Uma vantagem possível para as escolas especiais de agora em diante, em relação a oferta do AEE nas próprias escolas, é o número reduzido de alunos e a possibilidade reconquistada de outras fontes de financiamento exclusivas às escolas, como convênios autônomos com o poder público nas esferas estadual e municipal, entre outros. A oferta e financiamento de seus serviços, entretanto, continua dependente da dupla matrícula, como assevera o Art. 9-A do Dec. 6.253 de 2007, que regulamenta o FUNDEB, modificado por este novo Dec. 7.611 e circunscrita ao AEE, para alunos que continuam obrigados a frequentar a escola regular para usufruir do direito à dupla matrícula. Frise-se que as modificações impostas pelo novo decreto dizem respeito exclusivamente ao financiamento a alunos matriculados na escola regular e na escola especial concomitantemente, caracterizada aí a dupla matrícula, mote principal do decreto. Fora isso, a escola especial não adquire legalmente qualquer efeito substitutivo. O decreto não se presta a essa finalidade, mas sim à orientação de diretrizes dos serviços do AEE, sua oferta pelas escolas especiais, e ao financiamento público.

Financiamento público, para a educação inclusiva

De outra parte, a desvantagem da oferta do AEE na escola pública é agravada pelas dificuldades de orçamento e recursos ordinários. Por isso, uma verdadeira e qualificada oferta de educação inclusiva compete ainda na ampliação da destinação de recursos orçamentários, como pretende a campanha pelos 10% do PIB na educação, na qualificação e valorização docente, no cumprimento imediato e integral do piso salarial dos professores, na concretização de uma educação em direitos humanos orientada ao fim do preconceito, homofobia, racismo e intolerância no ambiente escolar, apontados em inúmeras pesquisas realizadas recentemente. Estas são necessidades prementes e complementares para uma educação pública, inclusiva, universal e de qualidade para todos.

Além disso, é urgente rever as necessidades de um universo escolar em constante transformação e a crescente deturpação do interesse público e vulnerabilização da educação pública. Além das pessoas com deficiência, aquelas que podem portar um diagnóstico, há uma imensa população de alunos apresentando “necessidades educacioanais especiais”, como os casos envolvendo transtornos de atenção, hiperatividade, depressão, psicoses e aqueles que simplesmente têm imensas dificuldades porque imersos na pobreza e em condições desumanas de sobrevivência, como desnutrição e outras situações de vulnerabilidade social.

Para esta clientela, “preferencial” da escola pública, não há escola especial que abrigue nem escola privada que a deixe passar perto da porta, mas a verdadeira educação inclusiva deve estar apta a recebê-la e possibilitar sua inclusão social, porque se trata de seus legítimos interessados. A escola que estiver apta a receber e educar toda essa clientela, em igualdade de condições e proporcionar seu desenvolvimento social e humano, é que é a digna de todo o investimento público possível. Nesse sentido, outra medida do plano “Viver sem Limite”, o BPC na Escola, que monitora os estudantes de famílias que recebem o Benefício de Prestação Continuada oferecido pelo Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome às famílias de pessoas com deficiência carentes, para garantir sua escolarização, vem somar-se à perspectiva da educação inclusiva.

O que será possível verificar, a partir da vigência do Dec. 6.711 e da injeção de novos recursos na escola especial, é a sua capacidade de encontrar as necessidades presentes na sociedade contemporânea e complementar, através da oferta de seus serviços e acúmulo, lacunas na educação dos alunos com deficiência na rede pública. Por isso, trata-se de uma oferta “complementar”, porque o dever de oferecer e manter a educação pública e universal continua sendo exclusividade do Estado.

* Coordenador-Geral da revista digital Inclusive – inclusão e cidadania (www.inclusive.org.br)

Fonte: Inclusive – inclusão e cidadania