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Inventário

Publicar é um leilão da mente, escreveu Emily Dickinson. Sabe-se lá em qual de suas hesitações lhe surgiu a ideia, mas eu acho que ela tinha razão quanto a isso. Duvido muito dos poetas que não vacilam diante à possibilidade de multiplicar a sua criação e submetê-la à leitura dos demais. É uma situação no mínimo estranha porque, apesar de que a poesia prescinda da publicação para ganhar forma, é por meio dela que a obra pode ser avaliada, medida, esquadrinhada, aquilatada, amada ou, horror dos horrores, detestada..

Quando a ideia de reunir e antologizar meus poemas surgiu numa conversa com o Thomaz a fim de integrar a coleção “Poesia” da sua nascente TAN Editorial, não imaginava que, afinal, eu estava prestes a colocar o que havia escrito a um leilão para mim mesmo. Havia que arrematar de um conjunto relativamente extenso o que de mais valioso me parecia ou, melhor, deixasse de lado o que julgava de menos valor. Não fosse a ideia uma antologia, seria uma sugestão das mais terríveis: cortar na carne..

Esse exame dos três volumes que produzi de 2017 para cá, no entanto, me permitiu pesar com uma balança de precisão os exageros e descaminhos dos livros que havia feito de modo quase privado para resultar, finalmente, num volume como talvez devesse ter sido sempre. Um tanto grande, de fato, nas suas 414 páginas, mas do tamanho necessário para que não perdesse o seu “tutano” e, ao mesmo tempo, resultasse do desbaste de uma vida, a ver que compreende um período de 35 anos (1986 -2020) de atividade..

Brinco com o Thomaz que os seus livrões parecem obra póstuma e é verdade que juntei essa hesitação às anteriores, de voltar a mexer nesses poemas. Isso num ano em que eu desejava mesmo parar tudo e me dedicar a um novo trabalho. Com ardis mais de leitor que de editor, ele foi demovendo minhas ressalvas de um modo inacreditavelmente sábio: colocando-me a trabalhar..

E outra: se eu não soubesse que havia continuado a escrever, pensava que seria hora de parar. Uma injustiça terrível, já que parece que comecei ontem..

Felizmente, não se tratava disso. A verdade é que não tenho meios nem palavras para dizer da minha sorte em ter encontrado “este” editor. As mil vezes que revisamos tudo: ordem, margens e detalhes do volume já seriam impagáveis. Ao final, ficou claro que não se tratava de um trabalho de editor, mas de um amigo mesmo. E um amigo obcecado em qualidade. Só que ele tenha me proposto o livro (numa clássica inversão de papéis) já seria para mim razão de orgulho, mas conhecer de perto sua devoção à poesia apenas me fez esclarecer algumas intuições prévias. Antes de tudo um leitor respeitoso e atento e, ainda por cima, ao tempo em que editava e publicava a obra do seu próprio pai. Bah! Não sei o que mais se poderia pedir de um editor. Sorte a minha.

Em tempo: embora o livro ainda não se encontre à venda nas livrarias (na editora estará a partir de segunda-feira – https://taneditorial.com.br/), pode ser encomendado comigo, em privado. A partir da próxima semana, já tenho condições de remetê-lo aos interessados. Em breve digo aqui onde mais comprar o livro. Estamos vendo de fazer um lançamento “oficial”, porém não tenho porque trancá-lo aqui. É uma edição pequena e numerada. Vai com meu autógrafo e agradecimento sincero.

Tomorrow will be beautiful

A cada vez que eu vejo escritores reclamando a falência e o esgotamento da crítica literária, fico pensando no que então poderiam dizer os músicos a respeito da crítica musical. Este é um abismo do qual e para o qual ninguém olha muito porque, de um modo geral, a música vive uma sucessão de impasses desde a instauração da crise do disco e do fim do CD. É crise sem fim à vista. Crise em curso ainda.

Se é relativamente simples encontrar-se resenhas de lançamentos de autores nacionais e estrangeiros, no tocante à música o cenário é desastroso. Além de que são raros os jornais e revistas (que revistas?) que contam com críticos musicais, a prática vai por sua vez resumindo-se a uma crítica de eventos. Até pouco tempo, os blogues musicais ainda supriam um tanto a busca por informações, mas, com as redes sociais, foram soterrados pelo big data e sua orquestra de algoritmos.

A reboque da crise de formato, pode-se ver então um pouco mais a extensão da crise de mercado que afeta o métier, uma vez que a remuneração do produto gravado danou-se e a crise de crítica e de consumo vai se apagando à medida que a própria mídia cultural vai se desfazendo. É o laissez-faire da contemporaneidade, a verdadeira balbúrdia para a qual ninguém estava preparado. Mas aqui chegamos.

Perto desse cenário, mesmo a miséria editorial literária parece um banquete perto do que se dispõe de espaços de divulgação e debate musical.

Os efeitos são terríveis para músicos e compositores brasileiros e/ou estrangeiros. Lançamentos relevantes, novos nomes de uma cena musical distante dos hits estratosféricos das redes e plataformas continuam acontecendo, assim como novos trabalhos de artistas vão ficando cada vez mais circunscritos aos próprios seguidores. E como essa contabilidade digital passou em algum momento a ser qualificada como relevância, a situação é de um impasse muito complexo para a qual as fórmulas de debate musical habituais não conseguem mais abordar, pois o campo foi extrapolado (ou entregue) para a tecnologia da informação.

Um exemplo. Dois dos meus compositores e cantores preferidos da última década, o casal Benjamin Clementine e a cantora Flo Morrissey. Dele, com um alcance maior e presença em palcos europeus, ainda se consegue alguma referência em português. Mesmo assim, demorou bastante e por muito tempo o único texto disponível era um que eu mesmo havia escrito. Isso para um artista literalmente gigante.

E ela? Nada ainda. É certo que com seus dois discos a repercussão não seria imediata, porém a invisibilidade é sobretudo de crítica. Seus views nas plataformas são modestíssimos. Há apresentações de estúdio, com alta qualidade de gravação, que não chegam aos 3.000 views no YouTube. Como o de Benjamin, seu disco é dos mais estupefacientes (e duradouro, a gravação é de 2015). Um lirismo rico, arranjos etéreos e sublimes e uma voz que fica entre Billie Holliday e Karen Dalton. Alguma referência a sua existência no Brasil? Nenhuma.

Talvez estejamos bem sem nada disso, afinal, parece que nos bastamos com outra qualidade de coisas. Mas vamos sem crítica. Daqui a um pouco, porque também ninguém é de ferro, vamos sem música mesmo, porque os ouvidos também não são de ferro.

Por que escrever?, de Philip Roth

A rigor, é desde a publicação de Nêmesis (Companhia das Letras, 2011) que os leitores brasileiros deixaram de contar com textos inéditos de Philip Roth por aqui. E como parece mesmo que o escritor falecido em 2018 foi definitivo em sua aposentadoria anunciada em 2012 e não deixou nenhuma novela ou romance para publicação póstuma, nos últimos tempos restou apenas aos seus leitores e devotos matar amargamente as saudades do autor por meio das notícias envolvendo o polêmico cancelamento da biografia de Blake Bailey, Philip Roth: The Biography (Skyhorse, 2021), a única entre as disponíveis que efetivamente contou com sua colaboração direta. Na prática, restaram efetivamente apenas as notícias: a tradução do livro em si continua suspensa pela Companhia das Letras, editora brasileira interessada na sua publicação antes da polêmica exposição envolvendo Bailey, acusado no começo de 2021 por diversos crimes sexuais.

Agora, a mesma Companhia das Letras oferece ao público brasileiro uma edição retrospectiva compilando dezenas de ensaios e entrevistas de Roth a respeito de literatura e de seu ofício de escritor. Trata-se de um volumoso livro (568 páginas) intitulado Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013). Talvez antecipando a retomada da aguardada tradução, garante-se dessa forma que a editora ao menos ocupará os interessados em Roth com uma boa dose de textos de sua autoria até então inéditos em português. Isso não terá ocorrido sem críticas duras ao gesto de suspensão anterior, pois, afinal, as questões apresentadas referiam-se ao biógrafo de Roth e não a ele mesmo. Enquanto prossegue o embaraço, não custa lembrar que Bailey acabou encontrando nova casa para publicar seu livro nos Estados Unidos e a Dom Quixote, de Portugal, promete lançar sua tradução ainda no primeiro semestre deste ano.

No que importa, o livro que agora chega às livrarias é oportunidade para aqueles mais interessados na literatura de Roth do que nos bastidores da sua intimidade completarem finalmente a sua coleção em língua portuguesa. Com a edição, obtém-se o bônus de enfim desviar a atenção de situações alheias ao escritor que, incompreensivelmente, no último ano tornaram-se mais importantes que a repercussão do seu trabalho autoral. Nesse aspecto, Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura não poderia ser mais lapidar.

Desde o ensaio de abertura em que Roth contempla o retrato de Kafka para daí imaginar um destino mais longevo para o escritor tcheco, passando por comentários a respeito de escritores seus contemporâneos, como Philp Guston e Saul Bellow e transcrições de suas conversas com Primo Levi, Isaac Bashevis Singer e Milan Kundera, entre outros, até o capítulo final de “explicações” no qual responde sobre o próprio trabalho, vê-se um Roth que se propunha a oferecer um legado crítico tão relevante quanto sua obra ficcional. E o melhor de tudo: numa ensaística na qual se reconhece imediatamente os traços de sua inteligência e humor. Veja-se, por exemplo, o ensaio como no qual ele enfrenta a Wikipedia a fim de corrigir uma entrada a respeito de A marca humana (Companhia das Letras, 2002) e a enciclopédia não assimila imediatamente a sua observação, exigindo-lhe uma “fonte confiável”. Roth não se dá por vencido e publica a devolutiva na The New Yorker. No livro, o ensaio aparece completo, sem as supressões da revista.

Parte considerável do livro compõe-se também por discursos em premiações recebidas, entrevistas e ensaios que já haviam sido publicados anteriormente em Shop Talk (Mariner Books, 2001), mas a compilação apresenta ainda textos inéditos em relação à edição norte-americana, de 2017. As entrevistas são na realidade homenagens que ele faz a escritores com quem travou relação e enfrentavam dificuldades em seus países de origem, principalmente aqueles provenientes do leste europeu, como Milan Kundera e Ivan Klíma. Os ensaios a respeito de sua própria obra, todavia, tornam o livro mais apetecível para seus leitores habituais.  Para estes, servem como um anexo indispensável o seu ensaio de aniversário de 45 anos de O complexo de Portnoy (Companhia das Letras, 2004) e o discurso sugestivamente intitulado A impiedosa intimidade da ficção, pronunciado nas comemorações dos seus oitenta anos, em 2013, no Museu de Newark. Em síntese, é praticamente um livro de referência que fixa o legado a seu respeito com seus próprios textos.

Por falar em “legado”, inobstante as “ameaças” literárias que sua obra vem sofrendo recentemente em razão de alegada misoginia e sexismo, mais ou menos no mesmo revés de Bailey, críticos, estudiosos e até amigos de Roth passaram a considerar que seu espólio deveria manter-se disponível para que outros biógrafos nele se debruçassem e dessa forma pudessem até mesmo oferecer novas versões de sua biografia. Ao que parece, junto às caixas de correspondência e demais notas, Roth teria entregado a Bailey pelo menos dois manuscritos inéditos justamente contestando o livro de memórias de Claire Bloom, Leaving a Doll’s House: A Memoir (Little Brown and Co, 1998), atriz com quem viveu por cerca de 14 anos. O temor é que esses manuscritos e os documentos que pudessem consistir em novo apanhado ou publicação recebam a destinação que em vida Roth solicitou aos encarregados do seu espólio: a completa destruição. Por ora, trata-se de um drama sem desfecho.

Quando ainda vivia, Roth havia destinado à biblioteca pública de Newark uma coleção de 7.000 livros anotados, fotografias e documentos pessoais organizados por ele mesmo e algo em torno de 1/5 do seu patrimônio financeiro (cerca de 2 milhões de dólares) para que a biblioteca se reequipasse. Parece que ao aposentar-se com a publicação de Nêmesis, Roth dedicou-se a organizar a eternização de sua memória e seu legado, o que inclui o seu acerto com Bailey. Por meio de sua biblioteca pessoal é possível conhecer suas anotações em Dostoievsky, Colette e Machado de Assis, entre outros. Provavelmente é desse espólio que resultam os ensaios, discursos e apresentação da presente edição de Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013).

Daí pode-se presumir, portanto, que a curiosidade literária acerca de Roth será plenamente aplacada com a edição. É claro que isso se confirmaria apenas caso o interesse vulgar na pessoa, fofocas e informações desencontradas preenchessem menos o interesse das pessoas que propriamente sua obra e vida literária. Quanto a isso, é bem provável que Roth soubesse bem que seria algo impossível de deter, narrar ou conduzir com exclusividade. Certamente não a ponto de prever que sua memória fosse embargada por razões esdrúxulas, mas porque seus confrontos com o moralismo fatalmente se chocariam com a contemporânea tara social do cancelamento. Para estes leitores, Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013) é excelente oportunidade de conhecer de Roth mais no que ele é interessante, um autor fundamental de sua época histórica e com um talento incomum para narrar. Para os que não morrerão de um pasmo ao saber dos incidentes pessoais da vida do autor, espera-se que a biografia saia de uma vez por todas e suspenda-se a onda de exorcismos pelo menos no que se trata de um monstro literário como ele. Não é algo certo de se esperar, mas nunca custa muito o apelo ao bom senso e à razão.

FICA NA TUA : extras

Há famílias que são conhecidas por seus nomes, sobrenomes, posses, pelos feitos de seus pioneiros, a resistência descomunal dos avós que são como mitos fundadores de uma nação particular, de um pedaço seu, ao mesmo tempo mínimo e máximo: a família. Não é raro que elas façam-se notar nas datas, bodas, missas em memória, batizados, formaturas e o que mais for. Nunca há de faltar no calendário ocasião para que seus descendentes não possam caprichar no lustro de seus sapatos, trajar sua diplomacia fidalga, aberta, franca, e comparecer ao centro das atenções de todos. É nessas ocasiões que as pessoas passam a saber do que é feito de uns e de outros; seus destinos são claros como se fosse compulsório sabê-los e todos, até os mais avoados, percebem lembrar-se de seus nomes, dos apelidos e a idade em que foram colegas ou viram-se pela última vez, quando ainda andavam pelas ruas da cidade. Nunca anonimamente.

Mas também há, por outro lado, as que são evasivas, nebulosas e que é como se fosse vedado falar muito nelas porque envoltas ou em escândalos ou em desgraças, às vezes ambas as coisas. Foi em torno do ano de 1985 que o nome do meu pai entrou nessa nebulosa e só saiu de lá ao fim de três infartos; o último deles fulminante. É como se fôssemos públicos e notórios e, de repente, uma imensa nuvem do inominado nos tragou como numa maldição impronunciável, que evitávamos até pensar. O nome do velho Bonifácio, sempre tão solicitado para acudir quem dele precisava e em qualquer circunstância, de repente deixara de se escutar em meio ao rumor impiedoso da maledicência, sempre pronunciada à boca pequena, jamais francamente.

A impressão que eu tenho ainda hoje é de que, por alguma razão, a tragédia dele se fez acompanhar da minha não por uma casualidade, mas porque eu devesse compartilhar da sua sensação de fracasso, de impotência. Ainda que em proporções radicalmente diferentes, ele um dia chegou em casa após a sessão na Câmara de Vereadores e anunciou que precisávamos acompanhá-lo ao Cambuí; que ele precisava ficar ao menos uma semana por lá e longe da voz dos seus colegas e, principalmente, dos correligionários. Por ele ter anunciado daquela maneira a nossa partida, eu cheguei a pensar que ele havia descoberto que meu ano escolar havia sido em vão e que eu me tornaria em breve a decepção que dia a dia se corporificava como se pelos meus ossos e nervos, em segredo absoluto. Parece que ele mais do que ninguém sabia que precisávamos do silêncio do campo e de coisas braçais com que nos envolvermos para além das ideias dos outros, suas opiniões, gestos, olhares e juízos.

Dentro da F-1000 esbodegada, enquanto ele terminava de carregar suas coisas na carroceria, eu coloquei a fita cassete que o Aquiles havia deixado para trás junto com a discografia que mais tarde fui me apropriando e, então, as guitarras distorcidas de sei lá quem tomaram conta da cabine para o pasmo da minha irmã que se limitou a me alertar para tirar aquilo de uma vez, que o pai detestaria ou ficaria furioso.

“Rápido que ele vem chegando! Tira duma vez!”, avisou-me virada para trás enquanto eu tentava inutilmente remover a fita do aparelho grudado ao painel. A fita travara e enrolara-se dentro da gaveta e, embora eu a puxasse com certo desespero, uma ponta do rolo acabou ficando presa em algum lugar, uma roldana, um carretel qualquer do aparelho Motorádio. Se forçasse, arrebentaria e, depois disso, adeus Black Sabbath, adeus Queen, adeus Pink Floyd. Ao entrar na caminhonete, vendo minha apreensão, ele calmamente desengatou a fita do compartimento e me entregou com quase todo o rolo retorcido. “Tem uma caneta ali embaixo, no porta-luvas. Pega e enrola. Mas primeiro tem que distorcer tudo…”, disse-me com um olhar que eu até interpretei como piedoso, mas que significava que era a única chance de salvá-la, isso se eu ainda a quisesse.

“Tá, pai…”, respondi-lhe e me coloquei à tarefa enquanto aos poucos saíamos do perímetro da cidade sem que eu sequer tivesse podido avisar a quem quer que fosse de que estava me escafedendo para um fim de mundo sem nada nem ninguém à vista. Era como se estivesse sendo exilado e pensava que só podia ser por minha culpa exclusiva. Mais tarde, pelas conversas que pesquei entre ele e a mãe, vi que havia algo mais, algo que eu não sabia bem o que podia ser, mas que era fonte de evidentes preocupações.

Naquele instante, no entanto, olhava sem saber por onde começar para a montanha que o rolo da fita desfeito erguera em meu colo e tinha certeza de que seria impossível recolocá-la ali dentro e salvar a gravação. Olhava para os nós infinitos e pensava que aquilo estava ainda em pior estado que a minha vida, mas que, de alguma forma, eu precisaria dar uma solução. Pelo retrovisor, ele me observava e eu não me atrevia a olhá-lo nos olhos. A mãe, quieta ao meu lado, olhava apreensivamente para a poeira da estrada de chão que sugava para dentro da caminhonete a nuvem para a qual nos dirigíamos. A Julia também quieta e espremida junto à palanca exibia sua expressão múltipla de desgosto pela viagem e incômodo; e o Mariano, acocorado em meus pés ao rés do chão, gostaria de me ajudar na tarefa impossível, mas mais atrapalhava, o pobrezinho. Eu olhava para ele e pensava que seria bom ter a sua idade ainda e não ter consciência de nada, apenas ser conduzido pelos outros, mas eu mesmo desfiara o novelo de lã do meu destino. E agora, sem outra chance, intuía que de alguma forma nada nunca mais voltaria a ser o mesmo.

Antes de tomarmos de um caminho à esquerda, caminho interno aos campos, eu havia rebobinado a fita por completo. Lá dentro haveria momentos confusos e retorcidos, quase indistinguíveis, mas, na aparência, estava intacta como o meu futuro escolar e, como logo vim a saber, também o destino politico e a saúde do meu pai. Descer no Cambuí cobertos pela poeira do caminho não nos deixava esquecer de que havíamos entrado numa nuvem. Numa não, em mais de uma, na verdade. Mas isso não adianta explicar. A gente apenas entende estando dentro dela.

O botão imenso do dial tinha pelo menos o dobro do tamanho da mão do Mariano, mas ele insistia em girá-lo da direita à esquerda e também na direção inversa com a esperança de localizar resquício de voz humana em meio ao chiado ruidoso da banda de FM do rádio do novo aparelho de som. Mas não havia nada, nem possibilidade de que o rádio capturasse alguma coisa nas ondas da frequência modulada em Itaborã. Para que serve um rádio FM num lugar onde não existiam estações disponíveis? Nada também, apenas um estado de prontidão para quando se concretizassem as promessas de instalação sempre adiadas de uma estação para aquela região do estado.

Enquanto isso, o jeito era conformar-se com as três ou quatro estações de ondas médias e suas programações esquisitas e que se resumiam em noticiosos locais, chasques destinados ao interior do município e repetições sem fim de músicas de gosto duvidoso e, pela noite, das trilhas das novelas que o radialista buscava em primeira mão de Santa Maria ou Pelotas. Nesses horários de tédio absoluto, eu sonhava em voltar a ouvir as músicas dos roqueiros que viriam ao Rock in Rio no outro ano e que ouvi no carro do maldito Aquiles, mas não acontecia.

Às vezes, eu chegava a entrar na fila dos candidatos à escolha de música (a aventura consistia em entrar ao vivo na programação, por telefone, e pedir ao locutor a execução de uma faixa especial), mas logo me desanimava porque sempre havia dezenas de pessoas com a mesmíssima ideia. Eu chegava mesmo a deixar o tape-deck preparado para gravação na expectativa de que o radialista repetisse Bohemian Raphsody. Ele havia a executado algumas vezes e eu pensava que poderia repetir a qualquer momento, mas quem levava a melhor era Julia. Ao contrário de mim, minha irmã mais velha não se incomodava com as predileções do sujeito que, ainda por cima, dera de sortear aqueles discos horríveis das novelas aos seus ouvintes, além de outros brindes insólitos como tíquetes promocionais de um motel que se tornara seu principal patrocinador noturno e que ele locutava languidamente sob uma trilha extraída sei lá de que porcarias de filmes de quinta categoria.

Ao fim de um tempo, Julia tinha uma fita cassete de 90 minutos gravada em ambos os lados com Foreigners, Erasurers e afins. A minha continuava intacta, esperando o dia em que Itaborã ganhasse a prometida FM. Isso só mudou um pouco lá em casa quando o Alexandre apareceu um dia portando sob a axila uma pequena coleção de vinis herdados do cabeludo Aquiles e deixou, mediante súplicas, alguns ali comigo. Ao lado dos discos da mãe e do pai e das malditas trilhas das novelas das oito, a prateleira vertical ao rés do móvel ganhou a companhia do disco branco do Queen, um Led Zeppelin sem título na capa (só um velho carregando uma montanha de feno), um outro maluco carregando um sabre e de capacete e o operístico disco ao vivo do Supertramp em Paris. Eu finalmente conseguia fazer frente às coisas horrorosas a que sistematicamente todos me submetiam.

Outra vantagem era a presença do Alexandre que, por alguma razão intuitiva, afastava completamente Julia do nosso ambiente musical. O Mariano não se importava e, como um bebê crescido, até se divertia com o rock pesado. No mais das vezes ele ficava por ali pintando e recortando e não nos incomodava. O mesmo não acontecia com a minha irmã.

“Ele vai morar aqui agora?”, chegou a perguntar a respeito da insistente presença do Alexandre. Eu disse que não iria, ora essa, mas queria saber o que lhe incomodava. “Esse aí ainda vai te botar em maus lençóis”, tentou me advertir. “Se tu sabe alguma coisa dele, fala ué. Ou cale-se para sempre…”, retorqui. Mas não precisou, ela apenas com o olhar insinuava alguma coisa, algum perigo, mas eu não tinha paciência para esses códigos mais, especialmente porque incrivelmente o radialista tocava algo que me interessava.

Os acordes iniciais do coro e do piano de Freddie Mercury soaram pela primeira vez a 100 watts de potência e até a mãe veio escutar aquela música que só tinha ouvido então pela televisão, mas havia gostado muito. Bom gosto musical ela sempre teve mesmo. E paciência de sobra, imensa e eterna.

É agora que enguiça. Daqui a segundos. O arranhão atravessa os sulcos e faz ancorar ali dentro a agulha de diamante. E até que alguém levante-se do sofá, a voz de Roger Waters ficará repetindo-se sob o coro da própria voz, ao fundo e aos gritos, como num surto paranóide. As vozes buscando alertar a si mesmo de algo terrível, talvez o anúncio de que eclodiu, finalmente, a terceira guerra mundial e assim serão recompensados todos os loucos do mundo de tanto tempo de ameaças e promessas.

“Troca esse disco, Antônio”, eu ouço a Ana Luiza dizendo-me enquanto folheia a revista Veja com a retrospectiva da década, do século, do milênio.

Eu também quero, mas não consigo. Há muito tempo não o escutava. Quinze, vinte anos? Ou mais? Não conseguia escutá-lo. Era como levar-me de volta a um lugar e tempo que não existiam mais e, mesmo assim, aquilo me puxava para o interior de alguma outra coisa, igual a uma ressaca incurável. Sugava-me para dentro de memórias que talvez fosse melhor esquecer, como se a gente tivesse mesmo disso a opção. Um botão de loudness que ao menos abafasse o ruídos dos carros, o rádio pendendo de estação em estação, as memórias nos lugares onde andei e também os por onde deveria ter andado, mas apenas pensei e imaginei.

“O que foi? Olha o estado da minha barriga. Não vai querer que eu me levante daqui só pra isso, vai?”, ela indaga.

“Claro que não! Só um pouquinho… Eu já vou…”, respondo-lhe.

Sem perguntar-lhe, penso em aproveitar o impulso e ir fazer um café. As bolachas da padaria Mundial estão no ponto certo. Um dia a mais e precisarão ir ao forno, amolecerão por dentro e, apesar da casca dura por fora, por dentro imperceptivelmente amolecem, vão amolecendo. O mesmo se dá comigo. Há ruínas e maldições que eu não deixo que ela veja. Nunca deixei. Foi pelo que que ela me amou mesmo? Pelo verniz de fora ou pelo sangue de dentro? Eu não sei, nunca perguntei e nunca perguntarei. Talvez as duas coisas ou, talvez, outra coisa. Algo completamente fora do meu alcance e domínio.

Disco estranho esse. Parece que é o único que tenho ouvido há anos. Enquanto a chaleira aquece a água, noto um gato atravessando os muros que o irmão dela galgava como um Tarzã, em busca de levar-me para conhecer o mundo ao seu lado, como um escorte e aprendiz. O que ele queria de mim, o Alexandre? De uma criança, como eu? A companhia? Parece tão pouco provável, agora. Acho que nem ele sabia. Tenho certeza disso e também de que deixei a água ferver e, por isso, vou queimar o café. A Ana Luiza detesta café queimado, mas é o que teremos.

Com a bandeja que a mãe servia broinhas e quitutes aos visitantes do velho Bonifácio, carrego as xícaras e a travessa de bolachas. Deposito-a sobre a mesa de centro da sala, quadrangular, e alcanço-lhe a louça ondulada segurando-a pelo pires.

“Não vai trocar o disco?”, pergunta de novo sobre o “The final cut” no prato do aparelho em torre. Levanto-me e penso em vasculhar ali, para ver se encontro outro que possa ter vontade de escutar, mas tomo outro caminho e me dirijo à janela. Fico olhando a rua e o movimento nulo, apenas das janelas abrindo-se e fechando-se anonimamente.

Amanhã, quando não estivermos mais aqui, o disco ainda estará ali. O Mariano não escuta mais música por meio dele, só pelo computador e quase sempre conduzido pelos fones de ouvido, com o silêncio ao redor. Ele quer me gravar não sei quantos discos, duzentos talvez, num CD, e me oferecer. Duzentos discos é música demais. Pensando bem, só “The final cut” é disco demais.

Volto à mesa e sento-me bem diante dela e respondo-lhe: “Não… Vamos aproveitar o silêncio enquanto dá. Amanhã, voltamos pra casa, lembra?”.

A Ana Luiza respira fundo e, dentro da sua barriga, o nosso filho (ou filha) suspira também. Amanhã, é voltar para casa e deixar o que está onde está, no ritmo impossível que se move de décadas em décadas, de vidas em vidas. Ou, pelo menos, até que a mãe decida reorganizar o mundo doméstico, porque ela sempre conseguiu isso (e eu nunca entendi como): reorganizar o mundo. É uma herança sua que não caiu para mim. Mas nada que reclamar. A vida é assim mesmo: cada um na sua.

A debreagem serve para mudar de marcha. Se dentro de uma velocidade ascendente, ela permite que o tracionamento do diferencial aumente ainda mais o giro e a rotação do motor. Numa transmissão descendente, ocorre exatamente o contrário; nesse caso, o veículo vai manter o giro numa velocidade menor de transmissão. É mais ou menos isso. Se for isso mesmo, vai dar certo, mas, se não der, eu faço dar de qualquer jeito. O pedal não vai sair mesmo do lugar e eu não tenho necessidade nenhuma de andar rápido. Depois da quarta vez, não é possível que eu me atrapalhe outra vez nessa idiotice.

Do lado de fora, externo à janela, escuto a voz do fiscal indagando-me sem imaginar que já é o meu quarto exame. Quarto ou quinto, eu nem sem mais. Houve um momento em que comecei a acreditar que, dadas as circunstâncias, sem um suborno, nunca que eles me entregariam a carteira. Nisso resultou o Bonifácio ter morrido antes de me ensinar a chateação que é dirigir. Assim, só me resta mesmo passar por isso tudo e quantas vezes for necessário. Novidade? Nenhuma. Na minha vida, tudo foi sempre assim mesmo.

“Pronto?”, pergunta o sujeito de óculos de sol e cabelo ondulado. Olhando rápido, a figura dele me parece um pouco a do Alexandre e eu fico imaginando se fosse ele ali, em seu lugar, como é que tudo se daria.

Mais velho, não mais o moleque invasor de pátios, mas ainda com aquela fisionomia debochada, como se me fiscalizasse sempre os erros em falso, fingiria me apoiar com o seu ardil teatral inigualável. Como um fantasma que me fosse recolher dos escombros dos meus fracassos, depois colocaria o braço sobre o meu ombro e me arrastaria para alguma loucura improvisada ou planejada, não importa, planejando vingar-se comigo, este o seu objetivo final e inicial.

Então é isso. Parece que vou mesmo fazer o teste para um sósia do Alexandre me avaliar e isso me parece ainda mais absurdo e inaceitável.

É delírio, claro que é, mas eu poderia atropelar a criatura e ir fazer companhia ao próprio no Presídio Central, que é onde ele deve estar agora. Mas quem pode saber onde anda o Alexandre? Pode estar no exterior, quem vai saber? Pode estar em qualquer lugar, até mesmo em espírito dentro do fiscal da minha prova de baliza e, se eu estiver certo nisso, então eu estou fodido mesmo.

O Alexandre sempre foi mestre em ver a minha incompetência, a falta de habilidade, as muitas incompetências. Ele saberia sobretudo me mostrar como fazer, mas sem mostrar, e depois diria que eu é que não faço nada certo e que ele me ensinou o que sabia e fez tudo o que podia por mim, paciência se eu fracassasse. Talvez assim eu me tornasse um homem, um adulto, e deixasse para trás o moleque superprotegido, filho de lá sei quem, do vereador não sei das quantas, e tratasse de ser alguém por conta própria.

Do lado de fora, no meio da rua ainda, o sujeito esperava a minha resposta e, talvez, o certo fosse abandonar o carro ali mesmo e voltar a pé para casa, atravessando os bairros de Porto Alegre como uma espécie de fugitivo, de desertor. Abandonar o carro? Sim, abandonaria… Mas não daria o gostinho a um sósia do Alexandre de me ver fazendo tudo errado e atestando ali que eu era apenas um impostor.

Imediatamente penso na frustração da Ana Luiza e da sua recomendação expressa. “Não vai esquecer de dar o sinal antes de dobrar”, ela lembrou-me muitas vezes de que só isso já poderia complicar em definitivo a minha situação. De acordo com ela, a Maria Clara rodou só por isso. Não sei quantas vezes a Maria Clara fez a prova, acho que umas vinte. Mas conseguiu, não conseguiu? Então fica tranquila, eu lhe disse, eu também vou conseguir.

“Pronto!”, eu respondo finalmente e o sujeito então faz a volta no carro, abre a porta, entra e senta-se ao meu lado. Com uma prancheta nas mãos, ele anotará cada deslize meu, como um Alexandre que se separou do original e ganhou vida própria com o único intuito de me perseguir vida afora. E me tirará pontos até cassar por completo a minha pretensão. A verdade é que não precisava ser o Alexandre para ser o Alexandre, e isso me parecia cada vez mais translucidamente claro, assim como a certeza de que provavelmente haveria ainda no meu futuro outros Alexandres. Muitos deles. Não vai ser por isso. Eu já me livrara uma vez do pior deles, do primeiro e autêntico, que me custaria livrar-me de todos eles (meras cópias–carbono) se fosse preciso?

Ligo o carro e parto.

De imediato, o sujeito anota algo na sua prancheta. Eu havia partido sem dar sinal, exatamente como a Ana Luiza me advertira. Mas que bosta! Menos um ponto logo de partida… Sem sequer olhar para o lado, noto que o sorriso do Alexandre estava bem ali mais uma vez. Não há prisão ou jaula que possa prender o desgraçado. Seja como for, algo me diz que, dessa vez, se eu quiser, não vou cometer nenhum erro mais. E, se desejar, vou sair do perímetro da cidade, passar pela ponte, tomar a BR em direção à fronteira e, então, vou finalmente entregar aos cuidados do Alexandre mais este Alexandre, isso se não abandoná-lo no acostamento desolado junto com o carro de merda e sem freios nem embreagem que eles oferecem para fazermos as provas.

Ao final do circuito, desço do carro e olho de novo para o fiscal. Não sei o quanto errei, não fiz contas, mas trouxe o que tinha até o fim. Também isso parece um destino para mim, repetir-me e continuar tentando quando parece impossível ou já seja inútil. É estranho, mas agora já não me parece tanto assim que seu perfil lembrasse o Alexandre. Não lembrava o de ninguém que eu conhecesse, nem ele e nem ninguém entre os demais candidatos reunidos sob uma paineira da praça e o calor extemporâneo de abril, onde aguardávamos que ele anunciasse os felizardos.

Igual a um fantasma, ele evaporara da minha mente, mas por quanto tempo estarei livre da sua presença? Eu não sei. Nunca soube… Mesmo preso, ele está sempre voltando. Voltando e me reencontrando. Qualquer hora dessas ele voltará outra vez e me reencontrará. Pelo jeito, ainda que eu esteja tão velho quase a ponto de me tornar mero adubo e nada mais reste nem da minha e nem da sua passagem em toda a superfície do planeta, ele me reencontrará.

Um a um, ele foi dizendo os nomes e outra vez o meu não estava entre eles. Na hora, baixei a cabeça e fiz menção de voltar a pé, não importava a distância que estivesse de casa eu iria a pé, como se numa procissão solitária que só a mim cabia cumprir. E como se ele notasse a minha frustração, ou por uma razão que não entendo me absolvesse de continuar aquele martírio, com a mesma voz que ele me anunciava dentro do seu time de basquete quando eu não era ainda mais que uma criança, nos pátios do Lourdes, ouviu-o dizendo: “Tem mais um nome aqui… Antônio?”

Olhei para trás procurando encontrá-lo mais uma vez. Era óbvio que ele já estava ali novamente, com aquele sorriso que insinuaria dizer que havia sido ele quem havia me libertado do martírio infernal, portanto tudo se tratava de uma concessão sua, nada disso de mérito meu. Mas o sorriso do fiscal era franco e parecia mesmo contente em me alcançar um papel que me autorizava a trafegar até que o documento estivesse pronto. Se o Alexandre mostrara alguma vez aquele sorriso? Bem, só a mim cabe decidir pensar com ou sem rancor e eu não tinha, nunca tive, rancor algum do Alexandre. Receio, sim. Cuidado em dobro ou em triplo também. No entanto aceitei todas as vezes que ele me empurrou para frente, mesmo quando foi com força demasiada. E quando foi ele a me jogar no chão, uma única vez isso aconteceu de verdade, sem nem entendê-lo ele acabou me ensinando a levantar também. Mas isso não tem mais qualquer importância. A ninguém é dada a opção de escolher os momentos que se vai viver com os outros. Vive-se apenas e quase sempre sem muita consciência do que está se passando. Vive-se porque é aquela a vida que está disponível, não há escolha nenhuma sendo feita. Nesse momento, a única escolha que eu gostaria mesmo de fazer era quanto a quem estaria na minha carona para dar uma volta em torno da praça central de Itaborã. A primeira como habilitado, como se entrasse numa cápsula do tempo e isso fosse mesmo possível. A despeito de tudo, só haveria um convidado possível. E ele estaria rindo sim, talvez até gritasse, mas ele colocaria o som tão alto, tão alto, que não perderíamos tempo tentando dizer mais nada.

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A prima-pobre do setor livreiro

IHU on-line

Primas-pobres na grande família do sistema literário brasileiro, as bibliotecas públicas agonizam num mercado que se volta cada vez mais à bibliofilia.

O texto podia parar aí mesmo porque inclusive entre pessoas que não frequentam o espaço de bibliotecas (ou por isso mesmo) sabe-se que esta é uma realidade que vem sendo decantada ao longo da história cultural brasileira, especialmente a partir da explosão digital dos anos dois mil. No entanto, a afirmação é insuficiente para compreenderem-se as dimensões do problema. É preciso servir-se de esclarecimentos e maior precisão.

Como primas-pobres, cabe-lhes a atenção ocasional, as roupas usadas que não servem mais e uma promessa de crédito que raramente se cumpre, imaginada desde projetos legislativos que, afinal, parece que tudo bem se nunca forem cumpridos. Não há quem os fiscalize ou tenha em alta consideração. É por isso mesmo que, do Oiapoque ao Chuí, seguidamente vê-se o estado falimentar e número insuficiente de prédios deteriorados da administração municipal e estadual que apontam para a obsolescência do interesse genuíno da sociedade brasileira em cumprir a utopia constitucional de igualdade.

É a internet, diagnostica o senso comum. Bem poderia ser, mas a internet não foi o suficiente para que outros países do mundo deixassem de investir em novos espaços e ampliações. É preciso, pois, explicar a natureza da discrepância. Em vésperas do ano 2000, por exemplo, a Dinamarca reabriu o seu “diamante negro”, a impressionante Biblioteca Real Dinamarquesa. Em 2006, em Taiwan, inaugurou-se a sustentável sede da Biblioteca Pública de Taipéi. No México, fundou-se a Biblioteca Vasconcelos em 2006.

Em contrapartida, de acordo com a FEBAB e o IBGE, o número de instituições públicas vem caindo (de 97,7%, em 2014, a 87,7%, em 2018). No âmbito educacional, o cenário não é melhor. Informa o Censo Escolar de 2018 que metade das escolas brasileiras ainda não contam com bibliotecas. O “atenuante” é que há projetos de lei jogando para um buraco negro temporal a obrigação de cumprir a Política Nacional do Livro, como o Projeto de Lei 4003/20. Menos mal que o projeto continua emperrado na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados.

As comparações são reiterativas, dolorosas e detratam não apenas o descaso político, mas a distância que se amplia em relação ao restante do mundo no único desenvolvimento sustentável efetivo: aquele que é mediado pela educação. Os indicadores são ásperos e os resultados socializados na materialização da precariedade que atravessa o país sob qualquer angulação.

No entanto as bibliotecas padecem por outras razões também. Há a autosuficiência de um mercado que se organiza pela relação paradoxal entre um tempo de leitura cada vez mais escasso e ofertas cada vez mais torrenciais e inacessíveis. Há ainda o fantasma da hipertributação proposta pelo governo federal assombrando o mercado e consumidores. Não bastasse isso, o vaticínio permanente do anacronismo a encantar gestores ávidos por economia sem notarem que o que fazem é investir no empobrecimento.

Certamente não foi em razão do investido nas bibliotecas (cuja maioria vive sem orçamento próprio), mas paulatinamente o ciclo do livro nacional foi se transformando numa cadeia de exorbitâncias. Apesar disso, pesquisas regulares como as realizadas pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros e pelo Instituto Pró-Livro demonstram que a projeção de quebra no começo da pandemia foi em parte detida pelo incremento do comércio digital num patamar de crescimento em torno de 41% em 2021.

Apesar da recuperação, a tendência de queda histórica se consolida em quase 40% desde 2005, pelos números da Câmara Brasileira do Livro. Exorbitância negativa, a caixa-preta dos direitos autorais continua indevassável e objeto de dúvidas permanente, dada a subjetividade da composição de preços e dificuldade em aquilatar-se a expressão real das vendas. Na pandemia, com a ausência de eventos, a crise foi ainda mais nitidamente exposta no que toca ao ciclo.

Embora as bibliotecas públicas participem cada vez mais marginalmente do setor, a situação de subdesenvolvimento exaspera uma população que, por conta da dinâmica de leitura imposta pelos canais digitais, cada vez mais se afasta do mundo da leitura. Seja pela política de preços das editoras que compensam os baixos números com altos valores ou pela substituição de fontes de informação, o setor se especializa cada vez mais em torno de consumidores de alto poder aquisitivo. Os valores praticados para o mercado de tiragens cada vez menores exorbitam, por sua vez, na composição e consolidação do livro como artigo de luxo. Como exemplo disso, basta ver a que títulos e edições se referem os valores mais altos praticados na Estante Virtualmarketplace mais utilizada pelos sebos no Brasil.

Se dirigir o olhar para exemplos de países que investiram massivamente na educação e amparo à leitura no mundo contemporâneo, como Índia e China, é insuficiente e arrebatador, então o que se pode pedir é que o setor se comporte com menos voracidade. O custo da voracidade é diretamente proporcional à dissolução do mercado consumidor, como já atestou a crise das duas grandes redes brasileiras, Cultura e Saraiva. Aplacaria os efeitos colaterais danosos, talvez, um esforço em garantir o livro após o esgotamento do seu ciclo comercial, justificando o investimento na acessibilidade digital e universal. Ao invés de simplesmente tributar, reinvestir o valor nos elos fracos da cadeia. Por complexa, a problemática não será resolvida por uma sublimação do valor simbólico do livro, quem sabe mais pelo empenho em recuperar a cadeia e evitar ao máximo o desperdício do bem cultural.