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A nova biografia de Fernando Pessoa

Revista Parêntese, ed. 160

Bem no final de 2022, num dezembro tomado de assalto pelo noticiário político e pela turbulenta sucessão presidencial brasileira, foi quando finalmente chegou às livrarias nacionais a esperada biografia de Fernando Pessoa que o jornalista Richard Zenith levou mais de uma década para concluir desde que começou a trabalhar no espólio do poeta. O resultado não podia ser menor do que as mais de mil páginas que a Companhia das Letras publicou aqui numa edição vertida do inglês pelo tradutor Pedro Maia Soares. Em maio do mesmo ano, uma versão pela Quetzal foi publicada em Portugal e a versão original em inglês, Pessoa: a biography, saiu em julho de 2021 nos EUA e na Inglaterra, pela Liveright.

Apesar de que a obra pessoana tenha sido vastissimamente estudada desde a segunda metade do séc. XX, inclusive por estudiosos brasileiros, o trabalho de Zenith é efetivamente considerado a segunda grande biografia do poeta notabilizado pela obra monumental e pela forma de organizar o seu trabalho em heterônimos. Na edição portuguesa, o livro, aliás, é iniciado por uma dramatis personae pessoana na qual Zenith “biografa” parte dos heterônimos criados pelo poeta (na brasileira, foi transformada em anexo). Contudo sabe-se que o número de alteregos de Pessoa continua sendo impreciso, dado que para muitos deles mal chegou a esboçar um texto, apenas o registro de um nome, mas é certo que passam de uma centena e surgiram em seu universo mental precocemente, antes dos seis anos de idade. Antes da publicação de Zenith, a mais extensa biografia publicada de Pessoa continuava sendo a realizada pelo seu contemporâneo João Gaspar Simões, em 1950, Vida e obra de Fernando Pessoa: história duma geração

Embora no Brasil a sua obra tenha obtido projeção e leitores a partir de 1960, quando a Nova Aguilar publicou sua Obra poética organizada e anotada pela pesquisadora Maria Aliete Galhoz, é certo que o nome de Pessoa transitava de contrabando entre os modernistas brasileiros de viagem à Europa, muito provavelmente por meio das edições de Orpheu e de Presença, revistas nas quais Pessoa fez desfilar seus principais heterônimos entre os demais modernistas portugueses. Contatos efetivos com os brasileiros não são muito conhecidos, além do fato dele mesmo ter emigrado o seu heterônimo Ricardo Reis para o Brasil, em 1919, e cuja data de falecimento imprecisa serviu de mote para a escrita de O ano da morte de Ricardo Reis, romance em que José Saramago resolve por situá-la em torno de 1936, na iminência do nazi-fascismo europeu. Mas, para que se situe melhor esse reconhecimento, é suficiente o relato do quase-encontro dele com a poeta brasileira Cecília Meireles, em 1934. Cecília era casada com um antigo conhecido de Pessoa, o português Fernando Correia Dias, e marcaram um encontro de gentilezas a que ele acabou falhando. Para compensar a falta injustificada, mais tarde deixou no hotel onde a brasileira se hospedava uma edição autografada de Mensagem, seu único livro publicado em vida. Outra referência aos brasileiros na biografia é uma menção a Ronald de Carvalho, poeta que se integrou bastante ao grupo reunido na Orpheu, especialmente Mário de Sá-Carneiro, e uma declaração de Carlos Drummond de Andrade no ano de centenário de nascimento de Pessoa, em 1985, na qual afirma que Pessoa é um poeta “frio, apenas toca nosso lado intelectual”, e diz preferir Camões a ele.

Embora sua obra fosse muito conhecida dos brasileiros e contasse com diversas publicações segmentadas, a partir de 1985 entrou em domínio público e ocorreu por aqui uma verdadeira explosão pessoana. No entanto, logo uma alteração na legislação da União Europeia sobre direitos autorais adiou o processo, que foi retomado em 1993, com o surgimento de inúmeras edições nuas (sem notas ou comentários) de sua poesia e prosa conhecidas. Por longos anos, a poesia de Pessoa e seus heterônimos foi das mais vendidas no Brasil, e seu(s) nome(s), tão ou mais populares que muitos poetas brasileiros. Na mesma medida, aqui e em muitos lugares do mundo foram sendo criados núcleos de estudo de sua obra em diversas universidades, disseminando para além do mundo lusófono os “estudos pessoanos”, confirmando-se já o interesse universal em sua literatura.

De imediato, o que se pode garantir em relação à biografia de Zenith é que ela não se faz interessante apenas por um maior conhecimento de sua vida, mas porque Zenith é um grande conhecedor de sua poética. Uma das grandes felicidades do seu trabalho consiste em nunca despersonalizar o poeta entre seus heterônimos. Zenith busca sobretudo garantir a integridade intelectual do poeta e jogar luzes em sua direção valendo-se inclusive de elementos autobiográficos que Pessoa teria lançado em sua produção literária. Pois então se pode saber que o poeta da Autopsicografia, o assumido “fingidor”, muitas e muitas vezes apresentou, mesmo que de forma distorcida, elementos de sua vida mais corriqueira na sua poesia. Se ele obteve uma dicção sublime em função de elementos às vezes frugais, passagens e situações que de fato viveu ou presenciou, certo que isso mais atesta a sua genialidade criativa.

O premiado trabalho de Zenith (foi finalista do Pulitzer em 2022), no entanto, não vem passando imune a críticas. Por investigar com certa exaustão indícios e questões envolvendo a sexualidade do poeta, tem recebido críticas inclusive da parente mais próxima de Pessoa que é ainda viva. Aos 96 anos de idade, a também escritora e poeta Manuela Nogueira leu e classificou como fantasiosas algumas das dúvidas suscitadas na biografia. Também confirma que a imagem de um Pessoa “macambúzio”, de acordo com ela, não procede e afirma que o tio, embora muito desorganizado, produzia num ritmo que não desejava interromper em razão de nenhuma relação interpessoal, mas que era bem humorado e brincalhão.

A imagem de um poeta sombrio é, aliás, também muito questionada por Zenith. Muito presentes na biografia de João Gaspar Simões, de 1950, que elevou enormemente o interesse em torno do poeta com o seu trabalho biográfico, as características psicológicas (e psicopatológicas) do poeta são centrais na busca de Simões, mas notoriamente permeadas por um excessivo psicologismo desde os estudos do também contemporâneo Adolfo Casais Monteiro. Em muitas situações, Zenith explora outras facetas e informações a respeito do poeta de que certamente Simões não dispunha em 1950. O que se vislumbra é um indivíduo interessado na vida política do seu país e do mundo e que, com maior ou menor sorte, procurou manter boas relações e um círculo de amigos composto pela intelectualidade da época, além de ter também boas relações familiares. Com isso esclarecido, o leitor tem garantido poder voltar sossegado à busca por compreender o sentido mais profundo daquilo que Pessoa guardou a sete chaves durante a vida na sua famosa arca: a obra literária. E, ao passo de sua leitura, a tarefa vai se configurando como uma grande jornada de reconhecimento na qual vida e obra têm, por uma característica sui generis e pessoana, praticamente o mesmo peso e relevância.

A jornada proposta por Zenith, cabe dizer, é muito facilitada pela sua escrita leve e jornalística. Há uma visada simpática sobre o poeta, que se alfabetizou sozinho aos quatro anos de idade, num claro indicativo de altas habilidades. Quando se sabe, por exemplo, da sua dificuldade em manter o foco na conclusão dos inumeráveis projetos iniciados que pipocam em sua mente, ele diz não saber “evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões”, seria simples associá-lo ao que hoje se conhece como o transtorno de déficit de atenção. Não é por falta de características psíquicas, como se vê, que se dificulta a tarefa de compreendê-lo, mas pela sua abundância. E quando o biógrafo destina um capítulo inteiro do seu livro para demonstrar o esforço espiritual e intelectual de Pessoa em atingir um alto grau de alta exigência estética e psíquica, o que acaba muitas vezes sacrificando a sua estima e deprimindo-o, acaba por conferir ao poeta o que às vezes perdemos ao conhecê-lo: a dimensão de gozo e sofrimento de seu espírito criativo.

Qualquer leitor de Pessoa, mesmo o mais preliminar, logo ao defrontar-se com sua poesia percebe estar diante de um precipício intelectual. É uma experiência muito dissonante de qualquer outra poesia que se possa conhecer. De acordo com Leyla Perrone, uma de suas principais estudiosas no Brasil, a obra de Pessoa impõe um antecedente que todos os poetas de língua portuguesa devem enfrentar na perspectiva de continuar a usar a mesma língua. Depois dele, o sentimentalismo e a facilidade retórica “aparecem como erros imperdoáveis”, e isso é algo que se intui e compreende mesmo à sua leitura direta. O que a biografia de Zenith tem a oferecer para compreensão de Pessoa, no caso, é a confirmação de que esse universo – o mundo “pessoano” – foi, incrivelmente, tarefa de um homem só. E que, a despeito de viver os seus últimos anos de vida num pequeno apartamento da Coelho da Rocha, em Lisboa, ao morrer, de acordo com Miguel Torga, “Portugal viu passar num caixão sem ao menos perguntar quem era”. Nada disso conseguiu impedi-lo de ter engendrado uma das obras poéticas mais impressionantes e complexas de todo o mundo no séc. XX.


Desbaratando Fernando Pessoa

De todos os poetas do século XX, a poucos – talvez a nenhum outro – se tenha incorporado tão bem a pecha de incompreendido quanto a Fernando Pessoa. Nele, tudo é ao mesmo tempo corriqueiro e misterioso. É corriqueiro como quem esteve agora mesmo a beber em algum café da baixa, como um transeunte a mais; é misterioso como quem perscrutou o mais difícil dos temas, o conhecimento de si mesmo, aventurando-se por ele em inúmeras tradições culturais e até mesmo no ocultismo. E ainda assim, e a despeito de tudo isso, de alguém que, ao morrer, era um desconhecido “das gentes” e poucos notaram-lhe, em vida, a dimensão do gênio. No ano de sua morte, em 1935, Miguel Torga anotava em seus diários:

Vila Nova, 3 de dezembro de 1935.

Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia, fechei a porta do consultório e meti-me por montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.

(Miguel Torga, Diário I, página 19)

Toda essa incompreensão e desinformação que, muito por causa de sua heteronímia e também por suas investidas nos domínios do ocultismo parece às vezes até fruto de mais uma de suas maquinações, durante todo o século passado parece ter paulatinamente consolidado uma espécie de aura (e também um estereótipo) do que seria o poeta atormentado por excelência. Some-se isso tudo às escassas fotografias do poeta míope e a uma produção prolífica e complexa e têm-se então, como resultado, texto e imagem de um personagem misterioso, ainda que reconhecidamente ícone inseparável do modernismo de todo o mundo e da proximidade de seus maiores nomes.

É bem por isso também, por esse mistério todo, que um ponto a que fatalmente chega (ou emperra) todo leitor de Pessoa é o de tentar entender quem ele mesmo fora, o ser humano Pessoa; e o de entender qual a voz que ele realmente tinha, se é que tinha apenas uma ou se não era mesmo todas.

Dentre os seus mais de 130 autores fictícios e dos heterônimos mais conhecidos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares – para quem traçara mapas astrais, assinaturas individuais, biografias e a partir de quem inclusive chegava a expedir correspondências – como seria possível saber de quem realmente se trata alguém que diz a respeito de si mesmo: “Eu vejo-me e estou sem mim,/Conheço-me e não sou eu”? E mais, como saber o que é invenção do poeta e onde ele se esconde nos demais, porque afinal é do seu ortônimo “Fernando Pessoa” a célebre Autopsicografia que sugere que aquém e além de tudo, que todo esse universo possa ser mera invenção e “fingimento”?

Seja como for, se já é complicado dar a ver a “alma” de um poeta, mesmo daquele que possivelmente mais tenha mostrado de si mesmo entre todos, o certo é que Pessoa tem dificultado bastante a vida de seus críticos e biógrafos. Mesmo contemporâneos seus, como João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro, ambos fundadores da prestigiosa revista Presença, com a qual por volta de 1927 passou a colaborar regularmente, divergem em especulações sobre a poesia de Pessoa e sua despersonalização em muitos. Em carta remetida a Casais Monteiro no ano de sua morte, ele revela concordar com a interpretação que este havia feito de sua heteronímia:

O fenômeno da minha despersonalização instintiva (…) conduz necessariamente a essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO. (…) Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou, antes, de fingir que se pode compreendê-lo.

(Carta a Casais Monteiro datada de 20-1-1935)

Já a Gaspar Simões ele diz taxativamente, em dezembro de 1931, entre uma longa explicação sobre a natureza da mesma heteronímia: “Voo outro – eis tudo. (Carta a João Gaspar Simões, datada de 11-12-1931)”. Simões, que havia escrito sobre e poesia de Pessoa durante a vida daquele, continuou mesmo depois da sua morte a preconizar o que Casais Monteiro chegou a chamar de psicologização da obra de Pessoa, ou seja, a interpretar a obra através de elementos da sua vida. Isto era, porém, justamente o que nesta mesma carta Pessoa o advertira a não fazer:

Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão.

Isto posto, parece simples concluir que então talvez seja impossível ser fiel a uma interpretação biográfica ou abordar-se a vida do poeta de uma maneira absolutamente crível. Entretanto, não é exatamente nisto que creem o colombiano Jerónimo Pizarro e o carioca Carlos Pittella-Leite. Com o sugestivo título Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida – primeiras lições (Tinta da China, 2016), os pesquisadores foram buscar na aventura documental o esclarecimento de pequenas “humanidades” do poeta, como se demonstrações cabais e objetivas de que mesmo por detrás de um gênio multifacetado como Pessoa existe obviamente um ser humano tão envolvido em mazelas mundanas quanto todas as demais pessoas.

O livro é o primeiro a trazer para o Brasil novidades do universo pessoano que Pizarro tem investigado anos a fio, sendo o responsável direito ou indireto pelas mais recentes publicações dos inéditos de Pessoa. Para ele, que trabalhou diretamente no espólio do poeta, trata-se de um trabalho para várias gerações, ainda mais que há um percentual do espólio, com anotações e outros originais, que se mantêm em posse dos herdeiros. Ainda assim, Pizarro e Pittella conseguiram reunir e contextualizar muitos documentos inéditos (e inesperados) do grande poeta português e através do livro pode-se saber, por exemplo, que o mesmo autor de Mensagem e de Tabacaria foi o responsável pela criação publicitária de anúncios, entre os quais um da multinacional de refrigerantes Coca-Cola (com a frase “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”…) e fez com que o heterônimo futurista Álvaro de Campos dirigisse um Chevrolet, no que seria, de acordo com eles, o primeiro “product placement da poesia portuguesa”.

Se coisas assim fazem diferença ou não no aspecto qualitativo da poesia de Pessoa, definitivamente não é essa ideia principal de ambos os autores com a publicação, mas a de colaborar na desmistificação e também na popularização da sua obra e biografia. O livro, em tudo semelhante a um curioso almanaque, é bem mais do que isso, na verdade, porque localiza os fatos tanto na biografia quanto na repercussão literária de sua obra.

Nos outros exemplos inusitados da produção de Pessoa, convertidos no livro em aparentes lições de “como fazer”, encontram-se coisas como condutas e “regras” para reinventar o jogo de futebol, sugestões de xingamentos (com um soneto inédito exemplificativo), instruções para interpretar narizes, diversificar bibliotecas, ganhar um concurso em segundo lugar, instruções de como “mentir sinceramente” e outras tantas relativas utilidades às quais o maior gênio literário da língua portuguesa do séc. XX esmerou-se em registrar e que os autores do livro catalogaram e ilustraram na forma de uma espécie de pseudomanual.

Mas nem todas as notícias são boas para os amantes do poeta, pois através do livro pode-se saber que poemas aparentemente em tudo líricos, como o poema Liberdade, não seria senão uma mensagem cifrada dirigida ao presidente Antonio Salazar, a quem ele considerava um financista inculto e a quem dirigira uma série de poemas, como Coitadinho e outros.

Liberdade

(…)

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

Sem dificuldades maiores pode-se concluir, ao final do livro, de que é correta a constatação de que mesmo alguém tão inesperadamente multifacetado acaba por deixar muitos vestígios concretos ao longo da vida e que estes registros podem explicar em muito vários aspectos de sua criação e personalidade. No caso de Pessoa, muitos destes vestígios encontravam-se desconhecidos até 2006, ano em que sua obra caiu pela segunda vez em domínio público e veio a conhecimento geral a existência de mais de uma arca de inéditos em posse de herdeiros e, nela, muitos projetos inacabados, rascunhos, livros, revistas, correspondências, fotografias, versões de poemas, etc.

Assim como o de muitos outros escritores, o espólio de Pessoa esteve no centro de disputas entre herdeiros e instituições portuguesas, como a Casa Fernando Pessoa e a Biblioteca Nacional. Em 1986, por força da legislação vigente ao seu nascimento, sua obra passou ao domínio público até que, em 1993, por iniciativa de sobrinhos herdeiros (que neste meio tempo leiloaram partes importantes do espólio), uma diretiva ampliou o prazo até 2006, depois do que finalmente decaiu a proteção legal e se multiplicaram no mundo inteiro edições dispersas e incompletas de sua obra.

Se confere com a realidade (e isso pode ser comparado pela leitura de sua correspondência) que o próprio Pessoa procurou algumas vezes esclarecer a natureza da heteronímia e de seus inúmeros personagens, por outro lado a extensão de sua criatividade competiu no que poderia dizer-se como uma espécie de desentendimento entre vida e obra. Isso a ponto de suscitar diversas interpretações, algumas inclusive com inspiração na psicanálise, como as realizadas pela professora e crítica literária Leyla Perrone-Moisés. Dado, porém, que ele mesmo refletiu sobre essa dicotomia entre “ser” e “sentir”, essa compulsão gnóstica e existencial aparece ao longo de toda a sua obra, desde as mais singelas quadras populares até às extensas odes de Álvaro de Campos ou nos seus mais herméticos poemas dramáticos. Como se trata do “proprietário” de um dom rítmico incomum e vocabulário inesgotável, é mesmo uma revelação (no sentido investigativo do termo) o aparecimento do indivíduo entre os seus vários “eus”. É certo que isto não poderia ser feito, sem dúvida, a não ser através da imersão na sua pessoalidade, mesmo que isto possa parecer mero trocadilho.

Talvez Pessoa seja mesmo um poeta incontável, incontabilizável, nem mais nem menos do que isso. Mas o livro de Pizarro e Pittella, mesmo que parecendo um álbum de recortes (e, pelo título, em suas “primeiras lições”), acaba por colaborar e muito em tornar o Pessoa real em alguém finalmente menos misterioso e mais cognoscível. Certamente isso não o diminui em nada em relação a outras abordagens biográficas, pelo contrário. Através dos seus achados cada vez mais fica notável que seu gênio era tamanho a ponto de “sentir” e “fazer” com a mesma intensidade e profundidade, ainda que travestido em distintas formas de dizer.