A cada vez que eu vejo escritores reclamando a falência e o esgotamento da crítica literária, fico pensando no que então poderiam dizer os músicos a respeito da crítica musical. Este é um abismo do qual e para o qual ninguém olha muito porque, de um modo geral, a música vive uma sucessão de impasses desde a instauração da crise do disco e do fim do CD. É crise sem fim à vista. Crise em curso ainda.
Se é relativamente simples encontrar-se resenhas de lançamentos de autores nacionais e estrangeiros, no tocante à música o cenário é desastroso. Além de que são raros os jornais e revistas (que revistas?) que contam com críticos musicais, a prática vai por sua vez resumindo-se a uma crítica de eventos. Até pouco tempo, os blogues musicais ainda supriam um tanto a busca por informações, mas, com as redes sociais, foram soterrados pelo big data e sua orquestra de algoritmos.
A reboque da crise de formato, pode-se ver então um pouco mais a extensão da crise de mercado que afeta o métier, uma vez que a remuneração do produto gravado danou-se e a crise de crítica e de consumo vai se apagando à medida que a própria mídia cultural vai se desfazendo. É o laissez-faire da contemporaneidade, a verdadeira balbúrdia para a qual ninguém estava preparado. Mas aqui chegamos.
Perto desse cenário, mesmo a miséria editorial literária parece um banquete perto do que se dispõe de espaços de divulgação e debate musical.
Os efeitos são terríveis para músicos e compositores brasileiros e/ou estrangeiros. Lançamentos relevantes, novos nomes de uma cena musical distante dos hits estratosféricos das redes e plataformas continuam acontecendo, assim como novos trabalhos de artistas vão ficando cada vez mais circunscritos aos próprios seguidores. E como essa contabilidade digital passou em algum momento a ser qualificada como relevância, a situação é de um impasse muito complexo para a qual as fórmulas de debate musical habituais não conseguem mais abordar, pois o campo foi extrapolado (ou entregue) para a tecnologia da informação.
Um exemplo. Dois dos meus compositores e cantores preferidos da última década, o casal Benjamin Clementine e a cantora Flo Morrissey. Dele, com um alcance maior e presença em palcos europeus, ainda se consegue alguma referência em português. Mesmo assim, demorou bastante e por muito tempo o único texto disponível era um que eu mesmo havia escrito. Isso para um artista literalmente gigante.
E ela? Nada ainda. É certo que com seus dois discos a repercussão não seria imediata, porém a invisibilidade é sobretudo de crítica. Seus views nas plataformas são modestíssimos. Há apresentações de estúdio, com alta qualidade de gravação, que não chegam aos 3.000 views no YouTube. Como o de Benjamin, seu disco é dos mais estupefacientes (e duradouro, a gravação é de 2015). Um lirismo rico, arranjos etéreos e sublimes e uma voz que fica entre Billie Holliday e Karen Dalton. Alguma referência a sua existência no Brasil? Nenhuma.
Talvez estejamos bem sem nada disso, afinal, parece que nos bastamos com outra qualidade de coisas. Mas vamos sem crítica. Daqui a um pouco, porque também ninguém é de ferro, vamos sem música mesmo, porque os ouvidos também não são de ferro.