Os primeiros meses de 2023 parecem ter abreviado muito a distância entre as fronteiras da normalidade literária e do apocalipse autoral antevisto ainda na década de 60 nos textos clássicos de Michel Foucault (O que é um autor, 1968) e Roland Barthes (A morte do autor, 1967). Mas não provém de um estudioso ou intelectual público impactante o estreitamento em questão; de outro modo, veio “ao natural”, como consequência do incremento galopante do uso dos recursos de inteligência artificial no processo de criação literária.
Muito embora na literatura os estudos das interações homem-máquina venham sendo estudados há algum tempo (o estudo de John Searle sobre “o quarto chinês” é de 1980), são as notícias do mundo geek, por outro lado, que têm revelado a dimensão da colisão (ou confluência) em curso.
Apenas nos últimos meses, com a disseminação viral dos aplicativos portáteis do chatbot desenvolvido pela OpenAI, o popularíssimo ChatGPT, parece mesmo que se conseguiu finalmente sentir o tamanho do estrago. Sim, verdade que a força de expressão traz embutido certo juízo de valor, mas é disso mesmo que se trata, ou como se poderia reagir à disseminação de manchetes que alardeiam a ferramenta como o “ajudante dos escritores”, responsável pela “criação de mais de 200 títulos”, “aceleração criativa” e co-autora em pelo menos meia dúzia de artigos destinados à literatura científica? Mas em que consiste, afinal, o “estrago” e o que se pode saber a seu respeito? É o que desejamos saber e passaremos imediatamente a palavra ao próprio ChatGPT.
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[Pergunta] O ChatGPT pode ser considerado autor de um texto? [Pergunta]
[Resposta] Como modelo de linguagem, o ChatGPT é uma ferramenta criada para gerar textos baseados em padrões de linguagem identificados em grandes conjuntos de dados. Portanto, embora possa produzir textos que parecem ser escritos por um autor humano, o ChatGPT não é um autor no sentido tradicional da palavra.
O ChatGPT não tem uma identidade pessoal ou criativa, nem é capaz de ter suas próprias ideias, opiniões ou perspectivas. Em vez disso, ele é programado para gerar texto com base em padrões de linguagem encontrados em um grande conjunto de dados de treinamento, usando algoritmos matemáticos para gerar continuamente novas sequências de palavras que se encaixam nesses padrões.
Portanto, embora o ChatGPT possa ser uma ferramenta útil para gerar texto, é importante lembrar que o texto que ele produz é gerado a partir de um conjunto preexistente de dados e não reflete as ideias ou opiniões de um autor humano. [Resposta]
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Em que pese qualquer precaução ou preconceito, deve-se admitir a competência do “réu” em defender-se. É apenas uma suspeita, mas é muito difícil imaginar que os próprios Roland Barthes e Michel Foucault discordariam dessa formulação. É praticamente o mesmo, mas mais perfeito se ele dissesse como Barthes em A morte do autor: “a escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem se perder toda identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve”.
Explica-se isso de uma forma muito simples: é certo que no repertório prévio do chatbot incluem-se as obras de Barthes, Foucault, Bakhtin e mais uma infinidade de outras teorias e proposições argumentativas.
Se algo é certo sobre a inteligência artificial, é que sua capacidade de aprendizagem não tem o mesmo fastio e enfaro da concorrência humana. Desse modo, ela não apenas devora conhecimento como aprende a fazer correlações lógicas com eficiência e velocidade assombrosas. Talvez se possa apontar apenas que, ao contrário das pessoas, sua limitação maior seja mais moral do que cognitiva. Se o ChatGPT atua tomando em conta o idealismo ou o consequencialismo é difícil saber, mais provável que ele recombine as instruções visando preservar sua superveniência. Curiosamente, parece proceder de um autor de ficção científica e não de um filósofo grego o cerne de sua moralidade. Pois as “leis” de Asimov se aplicam perfeitamente: este réu não produz provas contra si mesmo.
Mas essas questões éticas que se esboroam numa complexidade técnica quase inabordável pelo público leigo, se estão sendo consumidas como “brinquedos virtuais”, por outro lado estão na raiz (raiz digital) de uma nova conformação tecnológica que vem há muito se desenvolvendo para sustentar novos meios de produção e subsistência da humanidade. Não são poucos os dilemas econômicos, culturais, sociais, bioéticos e geopolíticos aí envolvidos, e alguns pensadores contemporâneos vêm procurando colaborar no esclarecimento dessas questões, mas mesmo o historiador israelense Yuval Harari, que se dedicou com seu livro Homo Deus, de 2015, a alertar dos riscos da criação de “uma geração de pessoas inúteis”, parece agora encantado com as possibilidades estéticas dos aparatos. Recentemente, ele divulgou em suas redes sociais um filme produzido inteiramente por estes recursos para explicar nada menos que a “vida”. Faz parte dos encantos da inteligência artificial, como se vê, fascinar até mesmo seus maiores críticos. É um filme que vem se reprisando na história esse.
Pode ser mesmo por um desejo e curiosidade impossíveis de se atender; mas que seria interessante saber de quem afirmou que “não importa quem fala” ver suas ideias recombinadas num aplicativo de celular, isso seria. Apesar de que a proposição tenha ganho relevância por ter partido justamente de Foucault e não de um manifesto apócrifo, a dissolução autoral presente encontrou na tecnologia quem a execute, consuma e venere. Se logo, ao invés de se consultar os livros de Foucault, Barthes ou quem seja, passar-se a apenas a indagar-se ao oráculo tecnológico a explicação de tudo, bem, então os educadores precisam estar prontos para perder o emprego. Os educadores e uma série de outros profissionais cuja atividade será doravante realizada com muito mais eficácia por um remoto algoritmo funcionando num ainda mais remoto mainframe.
Em objeções estéticas, embora possíveis e cabíveis, consistem o maior imbróglio dessa combinação. Com a dificuldade de distinção do texto humano e do texto técnico (perfeitamente articulado e virgulado), é preciso desde já abrir mão da verificação de originalidade. Uma recombinação mínima é suficiente para embaralhar qualquer ferramenta da busca. E os textos literários produzidos são ricos em figuras de linguagem, às vezes mais do que um bom número de pretendentes à autoria. Não comparando, a inteligência artificial pode receber instruções muito precisas, como as de uma prescrição, e desdobrar parágrafos e mais parágrafos a ponto de obter um livro de 200 páginas em menos de 48 horas. Em vista dessa “concorrência”, muitos autores preferem assumir a condição de coautoria.
Sem ter em mente as malhas da atribuição nem os liames biográficos que amarram ainda hoje bem firmes autoria e obra, é um pouco impossível saber o que mais acontecerá no mundo das ideias e no mundo literário a partir de agora. Pensando-se na possibilidade do espólio inominado e direitos autorais conexos e contratos editoriais indevassáveis, é mesmo de tomar as cautelas tomesianas: ver para crer. Apostar que o leitor formado justamente por essa nova técnica saberá safar-se e manter intacta a autonomia de sua vontade intelectual é de um risco imponderável. O mesmo vale para juízos estéticos que estão sendo lapidados com a ajuda da gameficação educacional. No entanto, justamente não saber e manter a reserva dialética da dúvida parece um meio caminho possível entre ser absorvido ou se afastar completamente, o que também já não é mais possível a ninguém.