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“Marrom e Amarelo” e o racismo no Brasil dos anos 10

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 11/01/2020.

O mais recente livro de Paulo Scott, Marrom e amarelo, publicado em 2019 pela Companhia das Letras/Alfaguara, é um livro que não deixa muitas dúvidas, mas deixa algumas (e é bom que as deixe). Desde o primeiro parágrafo, quase um libelo, logo se fica sabendo de sua intenção política: a denúncia da persistência do racismo estrutural no Brasil dos anos 10. É indubitável. Ainda assim, é dessa mesma certeza que provém o seu maior potencial de questionamento e que aos poucos prolifera em dúvidas dirigidas, por sua vez, aos leitores. É que é impossível deixar de pensar em como, ao final de um período político histórico em tese favorável às questões relacionadas aos direitos humanos, não se conseguiu debelar a semente dura, aparentemente inabalável, do racismo em sua forma brasileira.

Ambientado na Porto Alegre contemporânea, o romance é protagonizado por dois irmãos que se reúnem justamente em função de libertar a filha de um deles (sobrinha e afilhada de outro). Ela acaba de ser presa por envolver-se em manifestações políticas emergentes realizadas em torno à desocupação de um prédio no Centro Histórico de Porto Alegre e o responsável pela prisão é justamente um antigo conhecido e desafeto dos irmãos.

Contrapondo experiências de duas gerações de ativistas, o romance de Scott coloca em comparação momentos distintos da história brasileira e também do ativismo negro, apesar de que temporalmente bastante próximos. O primeiro, anterior, e que remonta à redemocratização e aos anos 80 e 90 do séc. XX; o outro, recente, forjado no Brasil pós-2013, no qual uma jovem ativista equipada tecnologicamente vê-se ainda às voltas com o drama inarredável do preconceito e da discriminação.

O romance, no entanto, diz muito mais do que o produto dessa justaposição e desse desconforto político. Lido assim parece resumir uma pedagogia que, de fato, não corresponde ao painel que indiretamente ele conta da vida de uma das capitais com menor distribuição étnico-racial do Brasil. De acordo com o IBGE, Porto Alegre é capital do estado brasileiro com o menor percentual de pessoas pardas em sua população, isto é, de pessoas com múltiplas ascendências étnicas (10,6%). O número de autodeclarados negros também está entre os menores da federação (5,5%). No Brasil inteiro, não poderia mesmo haver cenário mais favorável para um convívio social tão conflitivo.

No livro de Scott, essas diferenças falam da geografia dos bairros de uma cidade ocupada de forma radicalmente diferenciada, mas ainda mais de uma cultura cindida, pouco solidária e, por isso mesmo, violenta. De um lado, toda uma estrutura inacessível e refratária dos bairros ricos e de classe média, dos clubes, das instituições tradicionais da cidade. De outro, as ruas, as escolas precárias e vidas familiares permanentemente acossados por várias espécies de agressão, desde a violência casual, o tráfico, o permanente convite à delinquência e a violência institucional. É curioso, aliás, o modo pelo qual Scott nomeia insistentemente, ao longo do livro, nomes de siglas por extenso. É forma, talvez, que encontrou de imprimir no papel a certeza de que o racismo estrutural chama-se dessa forma justamente por agir muitas vezes desde e a partir das estruturas e instituições sociais e políticas.

Mesmo com um pano de fundo como este, resumi-lo como um livro de denúncia, no entanto, significaria apagar a intensa vitalidade conduzida pelo narrador/protagonista. Seja quando participa da burocracia estatal e manifesta sua crise para com as discussões políticas destinadas ao acesso por cotas ao ensino superior, seja quando retorna à cidade natal e percebe intocada a cultura discriminatória e o cotidiano de pequenas violências, Federico precisa reaver-se com o próprio passado e com as diferenças afetivas com o próprio irmão Lourenço. Não bastasse isso, os dois irmãos são também diferentes na cor da pele (enquanto Lourenço a tem mais escura, Federico é mais claro e tem cabelo liso) e, principalmente, na forma como encararam o drama do racismo individualmente.

Por meio de muitas idas e vindas ao passado, o romance chega a uma culminância muito mais afetiva do que política. É no seu reencontro com a família, os antigos amigos do Partenon e com a projeção das dificuldades enfrentadas agora pela sobrinha que ele precisa tomar a decisão de reirmanar-se aos seus e voltar ou não a viver em Porto Alegre. Até chegar a isso, Scott terá reconstruído uma história e um lugar para Federico que extrapola em muito a jornada pessoal e diz respeito ao destino comum daqueles com quem se importa. O impasse ético de Federico não poderia ser mais crucial. Dividido entre a possibilidade de fixar-se longe de todos, num ativismo cada vez mais anódino e burocratizado, ou a de estar disponível à sua família e comunidade, Federico é recolocado à força nos trilhos da história por problemas tão antigos quanto reincidentes. Suas dúvidas, apesar disso, são o que lhe fazem mais humano e, por tabela, resolvem o romance não numa equação previsível, mas por uma trama que se mostra convincente porque derivada da complexidade inerente às relações humanas e políticas quando tomadas honestamente.

 

Dez contos (ou crônicas) para uma playlist

Não foi tarefa fácil a que escolhi. Em primeiro porque a música popular brasileira é, na minha memória afetiva, predominante. Um hábito familiar do qual jamais declinei em favor de outros estilos e que aprecio desde que me entendo escutador, e isso é mesmo bem remoto no meu caso. Não é difícil explicar: embora nunca profissionalmente, minha mãe tem sempre cantado e cantarolado na sua vida. Creio que, como os demais nascidos no apogeu da era do rádio, a música popular lhe ensinou do mundo até mais que os livros. No interior mais interno do interior, na sua época, só o mesmo o rádio tinha esse poder.

É importante dizer que esta escolha não obedece a nenhum critério de preferência, classificatório, mas apenas elenca, dentro muitos, dez exemplos de quando a música popular brasileira foi literária para além do poético que lhe é comum. De quando foi narrativa da mesma forma de um conto, breve e contundente, e também de quando foi, como crônica, mais calcada na revelação do espírito de um tempo qualquer. Esse, variável por natureza.

Mas não será da sua memória que fiz minhas escolhas, mas da minha própria e de como fui identificando aqui e ali os traços que me permitiram distinguir entre a vertente mais poética da música popular e onde ela se embrenhou, por outro lado, nos meandros da narratividade.

Os exemplos são incalculáveis, em se tratando da música brasileira. No entanto, é preciso aqui traçar um recorte e não será casual, mas escolhido entre os mais de centenas de milhares de registros da música brasileira. Esses dados aproximados são do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que reúne informações de mais de 5.000 compositores brasileiros.

Foi uma aventura das mais agradáveis, afirmo e confirmo, mas precisei me deter naquelas composições que estavam mesmo registradas na minha memória afetiva. Seja pelo impacto ou pela percepção de uma voz narrativa, o que mais este trabalho me mostrou é uma grande vocação do povo brasileiro em contar-se, isso de um modo mais historicista ou constituído pela expressão de quem deseja registrar uma experiência comum, de todos os homens, configurando-se no que talvez se pudesse chamar de “crônica”.

Pois a música popular brasileira tem muito conto, mas também muita crônica. Para mim, pessoa nascida e desenvolvida em meio aos anos 70 e 80 do séc. XX, foi como rever momentos em que entendi muito do meu país, das suas peculiaridades locais e talvez até a certo espírito (às vezes mais recalcado, às vezes mais evidente) de nacionalidade. Hoje seria bem difícil, creio eu, para quem começa a ouvir música popular identificar elementos assim, mas a música tem, para além de uma facilidade em ultrapassar fronteiras formais da expressão, uma potência comunicativa incrível. Nesse território, não convém mesmo duvidar de nada.

Abaixo, não me alongando mais, relaciono alguns destes momentos nos quais a experiência estética literária me parece ter se fundido incomparavelmente à sinestesia da música popular brasileira. E, se me cabe esse tipo de consideração (se não, desculpem-me), a mais impressionante de todo o mundo, como certa vez afirmou o “bruxo” Hermeto Paschoal.

Minha playlist começa por duas músicas com temática rural. Parecem-me contos em sua capacidade de deter a atenção do ouvinte do começo ao desfecho e da riqueza entre esses dois extremos. Por primeiro, a voz mais do coração que já pude ouvir, Milton Nascimento. A canção chama-se “Morro Velho” e é um conto (desculpe professor, não tenho dúvida disso) daqueles que fazem um torção na alma da gente, ainda que seja “correndo atrás de passarinho”. Em seguida, na mesma toada, já fui colocando o menestrel Elomar Figueira de Mello. A sua “Arrumação” o que é senão um desafio a entender a linguagem do povo do sertão na sua própria maneira de dizer? De um povo que conta e espera a chuva para “plantar feijão no pó”? É só danos… Aqui, se a lista fosse ainda maior, sem dúvida encontraria desde o mais popular cantor do Rio Grande do Sul, Teixeirinha, exemplos formidáveis de contos. Todavia, como a lista é curta e o tempo também, vou adiante.

Minha próxima parada é a boa Bahia. Em Gilberto Gil, como não notar a mão oculta do narrador naquele “Domingo no Parque“, no qual Juliana se via triangulando, igual aos pés dos capoeiristas? Foi que ele viu… No segundo ponto, mesma parada, vejo o mano de Bethânia, Caetano, reconstituindo em prosa, como um redivivo Homero, a história de ninguém menos que Alexandre, cujo pai “foi um raio que veio do céu”. Pobre Felipe, também não resistiu à concorrência do glorioso Zeus…

Numa mudança radical, porque o Brasil é mesmo radical, encontro certo poeta, Luiz Gonzaga Jr, carioca de nascença e brasileiro em essência, uma perda precoce e absurda, e que deu vida ao “filho da Dina“… Passado é um pé no chão e um sabiá.

Só que não para. Ainda tem no caminho certo Luiz Melodia dizendo como deveria ser lhe matar de amor no Holly Estácio, certa Pérola Negra, numa crônica absoluta e definitiva do Brasil negro de 1973, mas tente esquecer em que ano estamos.

Alguns aventam (eu tenho quase certeza) que os períodos mais difíceis, mais duros da história também são os mais criativos. Quem melhor atestaria isso que a dupla João Bosco e Aldir Blanc, com um flagrante “De frente pro crime“, ou com a história épica de um menino, um Deus de bermuda e pé-de-chinelo, que nem os Orixás livraram da barbaridade de um “Tiro de Misericórdia” (por que mesmo nos abandonamos em cada cruz?)…

Um longa estadia se poderia fazer com aquele que tirou do anonimato Geni, o Meu Guri e tantos outros, incontáveis.Mas já ficaria demais e não daria tempo de dizer dos meninos que, com guitarras, lá nos anos 80, escolheram não ficar de costas pro Brasil, como dizia Fernando Brant, e botaram pra quebrar porque, afinal, isso é que é rock and roll. Estou falando claro, das histórias de Eduardo e Mônica, de certo interminável Faroeste Caboclo, de Bete Balanço por aí e mais uma enormidade de personagens e situações marcadas pelo capítulo da história da música brasileira que atende por rock nacional.

Como não há epílogo na história, ainda há que não esquecer-se do fenômeno do rap, Racionais MC’s e a saga de Guina, o que não tinha dó, em “Tô ouvindo alguém chamar meu nome?”. Aqueles manos são foda…

Já passam de dez (é um excesso), acho que posso parar aqui. As vozes de todos continuam. São como as nossas. De certo modo, dizem muito por nós. E como dizem… E, como dizia o já citado Gonzaguinha, o futuro é o que virá.

Turismo para cegos

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  • Revista Amálgama

A pior reação que um livro, seja de que gênero for, pode causar em uma pessoa é nenhuma. Ser uma leitura como a de uma bula de remédio ou do invólucro de uma pasta de dentes é, para os efeitos da leitura, o mais alto anticlímax que um livro pode obter. Do outro lado da moeda, há os livros que desde o primeiro parágrafo sacodem os nervos do leitor, desacomodando-o. Fazendo com que desperte do seu ensimesmamento. Aos livros que têm essa capacidade, para todos os efeitos, eu costumo dizer que são meus livros de boxe. São livros que não me espantaram pelo rigor formal ou por qualquer inovação estética, mas por terem sacudido, como em um ou mais golpes, os sentidos e o que vai por dentro deles, seja qual for o nome que se use para isso.

Turismo para cegos, romance de estreia de Tércia Montenegro, é um livro que se impôs muito sutilmente nessa classificação. Digo sutilmente porque é um romance permeado de nuances psicológicas e personagens apenas aparentemente delicados que se revelam mais humanos justamente na medida em que mais se pode percebê-los complexos e falíveis.

O livro conta o romance entre Laila e Pierre. Ela, uma estudante de artes visuais que vai se descobrindo cega em razão de uma doença degenerativa denominada retinose pigmentar. Ele é um funcionário público que se decide a ajudá-la nesse momento crucial da vida, mas com a perplexidade afetiva de quem se encontra, por sua vez, também desamparado e buscando conhecer-se melhor.

Na literatura brasileira, personagens cegos não são novidade, mas também não há muitos. No papel de protagonista, então, diminuem bastante. Via de regra, a deficiência sensorial costuma surgir como uma característica redentora da pessoa, como um poder especial ou uma dificuldade tornada artifício, assumindo como se uma forma de compensação. A Laila de Tércia Montenegro, contudo, passa muito longe do estereótipo. Ela é irresignada, em certa medida amargurada e nem um pouco interessada em transformar sua vida num transbordo de piedade e comiseração.

Talvez este confronto de Laila com um mundo que se dobra forçosamente à condição da deficiência e que é espontaneamente inadequado e inacessível, inclusive delimitando o discurso e o raio de ação dos demais personagens, possa criar ao leitor um ambiente desconfortável. Isso acontece porque Tércia não se ampara na hipótese da condescendência, nem a social nem a afetiva. O tom por vezes até agressivo de Laila para com Pierre, ou de sua recepção ao modo como ele presta cuidados, parece ser um reflexo da sua própria interlocução com o mundo, interrompida pela deficiência que lhe tomou justamente o que lhe era mais caro: a estética visual. No romance Laila é, além de estudante, também artista plástica. E Pierre é também o nome que ela dá ao cão-guia que irá ajudá-la em sua mobilidade.

No novo mundo de Laila, não cabem eufemismos politicamente corretos nem uma jornada pela superação, como é presente em muitas narrativas sobre deficiências, mas o enfrentamento da realidade social e individual, mesmo que ao custo do endurecimento afetivo e de muitos desencontros interpessoais. De certo modo, muito do que se depreende da personalidade de Laila é predominantemente dado pelo que é narrado de sua voz interna, uma vez que sua ação delimita-se pela relação de dependência com Pierre, que é ao mesmo tempo asfixiante. Imbuída de um temperamento instável, a Laila de Tércia vai tentar romper no plano real com as amarrações que a deficiência lhe impõe, exigindo uma dose considerável de coragem para conduzir-se com coerência e veracidade. Coragem e alguma temeridade, portanto, são as apostas de Tércia tanto para sua protagonista quanto para o enredo proposto.

Coincidentemente ou não, Turismo para cegos é também um livro bastante visual. Mesmo quando Tércia internaliza a narrativa, ela o faz como se procurasse demonstrar a eficácia da palavra em transmitir as impressões sensoriais e em fixar o mundo de forma objetiva. Em muitos momentos da narrativa, quando a ação é suspensa e a introspecção toma corpo, torna-se muito fácil entender as reações psicológicas de Laila, justamente porque são descritas com o rigor e a vontade de quem procura não deixar dúvidas sobre os sentimentos, mesmo em suas repercussões mais veladas, já que em última análise é deles que provêm a força narrativa do romance.

É esta coragem precisamente que, para mim, o faz com que o coloque junto ao que chamo de “livros de boxe”, porque é um romance que se realiza através de um esforço que luta contra os desfechos previsíveis e personagens caricaturais, quando só aparentemente a deficiência poderia impor soluções fáceis ou cartadas certeiras. Em Turismo para cegos, se a inocência não resiste a um round inteiro, tampouco os leitores serão conduzidos através de um cenário plenamente sólido. A consistência do romance de estreia de Tércia talvez encontre-se justamente na impossibilidade de antecipar-se o comportamento humano, mesmo diante do abismo imposto pela deficiência visual.

Mesmo que a autora pinte com nitidez o ambiente psicológico de seus personagens, seu livro fixa-se mais por tornar evidentes as incertezas inerentes à vida e seus efeitos nas decisões dos personagens do que por traçar-lhes um destino inescapável, dado ou não pela condição da deficiência. Neste caso, por irascível que possa parecer à primeira vista, sua Laila tem a inconformidade necessária a quem deseja, a despeito de tudo, permanecer em combate e não se dar por vencida. Se um livro “de boxe” precisa de um lutador, o certo é que Turismo para cegos conta com um deles.