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Novos mares para Mar Becker

Artigo publicado no Caderno DOC do jornal Zero Hora, 24/12/2022.

Pode parecer galhofa, como dizem os portugueses, mas, na falta de uma estimativa (e de qualquer rigor matemático), palpiteiros desocupados arriscam dizer que existem em atividade no Brasil contemporâneo algo em torno na casa dos milhares de poetas. Milhares ou milhões, afirmam os mais entusiasmados.

Considerando-se o Estado do Rio Grande do Sul e sua população estimada em 11 milhões de pessoas, pode-se presumir, portanto, a existência contemporânea de um número não pouco considerável, mantidas as proporções geográficas. Dentre estes, certo é que quase nem um conta ainda com o reconhecimento do nosso maior poeta, Mario Quintana. Lembre-se, por exemplo, da intensa repercussão da descoberta de um inédito seu no início de 2022, quando no Brasil inteirou se discutiu a autenticidade dos versos escritos em 1942, de acordo com a data grafada ao final dos versos de Canção do Primeiro do Ano. Setenta anos mais tarde, a descoberta suscitou o interesse de intelectuais como Antonio Hohlfeldt e Gilberto Schwartsmann, que se dedicaram a autenticar a autoria do poema escrito em papel amarelecido e conservá-lo junto ao acervo mantido pela Casa de Cultura Mario Quintana.

Coisas assim, que acontecem com a obra de Mario Quintana, é muito possível que não se repitam tão facilmente com poetas que lhe são posteriores. Não será por falta de qualidade ou de nomes, mas por uma escassez de reconhecimento diretamente proporcional à profusão de autores e autoras. Isso tanto é real e factível quanto o constrangimento regional do alcance de uma literatura que, todavia, extrapola em muito – e há muito – quaisquer limites, especialmente após a expansão digital das redes sociais, espaço privilegiado de divulgação literária na contemporaneidade. Não seja por isso. Por seus meios e trabalho intenso, poetas contemporâneos têm ampliado sua repercussão e chegado às bordas da publicação intercontinental quase sem que se note. É o que acontece agora com a poeta Mar Becker, que, após vencer o Prêmio Minuano na categoria poesia em 2021 e tornar-se finalista do Jabuti no mesmo ano, prepara-se para lançar em Portugal, pela Assírio & Alvim, um volume que reúne os poemas de Sal, livro lançado por aqui pela mesma editora em 2022, e variações de A Mulher Submersa (2020). Publicado pela Urutau, de São Paulo, foi com A Mulher Submersa que a poeta logrou sua ampla divulgação e os prêmios conquistados em 2021.

Pertencente a um ínfimo percentual de poetas brasileiros que obtiveram a publicação ultramarina, Mar Becker deve lançar âncora em mares portugueses logo no princípio de 2023. Pelo que se sabe por meio de dois dos apresentadores de Sal, os tradutores e também poetas Lawrence Flores Pereira e José Francisco Botelho, sua poesia distingue-se por uma vibração que classificam nada menos que como sublime e inusitada. Por certo o reconhecimento de dois tradutores de Shakespeare não é de menor importância, no entanto o grande reconhecimento de Mar Becker se notabiliza muito mais pela intensidade com que a poeta se apresenta e discute com os seus leitores e leitoras a natureza da sua escrita, seu processo criativo e fontes das quais extrai sua matéria poética ao mesmo tempo tão larga, vasta a ponto de comunicar mundos distantes, quanto aproximar os leitores ao seu universo mais íntimo.

Gaúcha de Passo Fundo, Mar Becker adotou o seu nome de autora a partir da corruptela pela qual é mais conhecida. Se o nome “mar” remete imediatamente à vastidão oceânica, a poeta não se restringe a explorar efeitos secundários de uma auto poetização. Muito pelo contrário. Em Sal e na Canção Derruída, ela empreende uma busca de confirmação de sua origens ao mesmo tempo em que permite ainda mais que se veja da poeta a pessoa. Há quem ache isso impossível ou reprovável, tendo em vista que a persona poética acaba sempre prevalecendo, mas estamos lidando aqui com uma poeta que fala sobretudo com honestidade e que lida com as memórias familiares com o mesmo zelo que se dedica à poesia mais lírica e amorosa. Não é tarefa fácil delimitar a poesia de Mar Becker, mais simples e proveitoso deixar-se levar pelo canto translúcido de ondina que ela entoa com uma naturalidade que espanta a quem quer que lhe dedique a atenção.

Pois em breve serão os portugueses que terão a oportunidade de conhecê-la. Além da publicação em Lisboa, seus poemas vêm sendo vertidos para outros idiomas por poetas e tradutores que não apenas se deixam levar pelo entusiasmo, mas demonstram com seu labor a intensidade dos seus versos e prosa poética. Nada mais justo poderia acontecer, pois Mar Becker é uma poeta em tempo integral, isto quer dizer que é dedicada ao feito poético com tal entrega que, esta sim, se distingue e reconhece de imediato, bem como a sua voz lírica tramada em guinadas potentes e condução impecável.

No futuro, quando for necessário reconhecer uma postagem de Mar Becker no Instagram e creditar-lhe a autoria de um poema, talvez falte o instrumento paleográfico de que se valem os averiguadores de hoje, mas sua poesia saltará aos olhos pelo que tem de mais inconfundível e legítima. Ainda que seja possível falseá-la numa forma semelhante, é bastante improvável que se obtenha o seu efeito, qual o seja de inevitavelmente naufragar, como se numa busca pelo incontornável, como os mares que os navegadores portugueses enfrentaram no passado. A saber, será passível de erro aquele que jogar-se à poesia de Mar Becker. Logo se saberá de quem se trata, pois o reconhecimento é instantâneo e, imaginam assim tantos quanto eu, dos mais duradouros que já partiram daqui.

A mulher submersa

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 05/09/2020.

Os livros costumam ter itinerários fora e dentro da casa de gente. Fabricam-se, viajam e um dia chegam aonde deveriam chegar. Depois, diligentes, ocupam o seu lugar nas mesas, cabeceiras e depois ainda vão dormir, às vezes mal acomodados, nas prateleiras, como um volume a mais entre volumes. No entanto há livros que nunca couberam nem em si e logo vão encontrando, em sua vocação líquida, uma forma de se esparramar tão logo desembarcam. Como um parente antigo que, de repente, decide-se por cumprir uma promessa antiga e em definitivo regressa. Há pouco veio “morar” na minha em casa um livro assim, de pessoa que nunca vi, mas vi desde o primeiro instante de “quem” se tratava.

A mulher submersa, primeiro livro de Marceli Becker (ou Mar Becker, como é mais conhecida) e publicado em São Paulo pela editora Urutau, vê-se logo que é livro de gente viva e que se reconhece tão instantaneamente como a alguém que estivesse fadado mesmo ao destino de se deixar compartilhar sem receios, numa poesia impraticada, singular, e ao mesmo tempo comum, tal fosse parte da nossa própria voz a dizer aquelas coisas, em nós mesmos já incorporadas. Pois esse livro antes de chegar para ocupar um espaço entre as coisas da casa, veio não para ser guardado em fileiras de outros livros dorminhocos, mas para dizer por tantos que já andaram e disseram nos dias e noites da nossa vida.

É mesmo um livro um tanto fantasmagórico esse. E, por isso, mágico. Dentro dele, uma poesia discreta e vigorosa deixa falar mais que uma pessoa, mais que um tempo, mais que um motivo só. E antevejo nele minha bisavó, também poeta, e seus poemas riscados com pedaços de hulha no imenso tempo que há numa vida. Numa daquelas fotografias dentro do livro, sei que ela está lá também, carcomida do tempo, como eu a conheci.

Boa parte das pessoas, gaúchos inclusive, pensa na cultura do Rio Grande do Sul como uma cultura formatada em temas perenes e paisagens iridescentes e aconchegantes. O horizonte púrpura, crepuscular, a madrugada fria. Pouco se vê dos pátios, dos lugarzinhos, das gavetas dos móveis, das peças de roupa, das asperezas e dos gestos de pessoas que, muito ao contrário da imagem falastrona, dizem pouco, às vezes até desistem de dizer e deixam-se viver como se numa ciência tácita do próprio destino – e suas coisas.

Marceli é uma poeta que faz disso tudo matéria poética e está além das fronteiras porque sua poesia alcança a intimidade essencial das pessoas seja quando evoca o erotismo de Safo e os temas ancestrais da humanidade e das referências clássicas, da paixão bíblica e o estranhamento do ser e do sentir, como se trouxesse consigo um tanto de paraíso e apocalipse em sua poesia definitiva, como bem definiu certa vez o também poeta e amigo comum José Francisco Botelho, por intermédio de quem a conheci e pelo que sou grato. O fato dele ser poeta também é algo que a seu tempo será revelado, pois consagrou-se como excelente contista, mas há rumores de que logo um livro de versos seus vem por aí também.

Elogiada no Brasil inteiro por estudiosos, diletantes e leitores, desde antes do lançamento de A mulher submersa Marceli é de uma transparência que a faz ainda mais autêntica e se pode enxergar instantaneamente uma poeta devotada à sua arte e a quem ela é, em sua identidade. É algo muito estranho acompanhar o seu perfil nas redes sociais e ver que um dia bem ela está mencionando Herberto Helder como cantores populares do sul. Gildo de Freitas, Jayme Caetano Braun, Pedro Ortaça e os músicos do Folklore 4, de Bagé, estão tão presentes na sua timeline como Antonio Gamoneda, Alejandra Pizarnik, Bashô e Jacques Roubaud. Com uma tranquilidade temperada e um humor semelhante, Marceli é uma excelente companhia (mesmo virtual) e eu recomendo muito segui-la tanto quanto lê-la. É impressionante mesmo que se trate da mesma pessoa na sua composição mais íntegra de simplicidade e complexidade. Talvez daí venha justamente o apodo “Mar”.

Gaúcha de Passo Fundo, Mar Becker revive uma sentimentalidade do sul, nada óbvia, e faz caber num detalhe doméstico qualquer a imensidão de seu olhar e seu afeto cultural.  Quase nunca se vê o tanto de desterro, de solidão e de reflexão que acompanha a poesia de quem se afasta do seu lugar de constituição e afeto original. Numa gaveta de sua casa, em São Paulo, Marceli encontra um conjunto de atavismos e memórias e imagens a quem ela dá vida como quem é capaz de encantar e transmitir esse encantamento em versos fluídos dos quais ela mesma se faz.

No Quebec ou nas estepes do Azerbaijão, os temas da poesia são os mesmos porque as pessoas são as mesmas em sua aventura. De um olhar atemporal, de quem se observa e reconhece suas faltas, amores, saudades, tristezas, alegrias, de tudo isso se preencheu a minha casa, casa da minha família, em razão deste A mulher submersa. Engraçado é que parece possível encontrá-la numa janela de Porto Alegre, das muitas que vejo desde a reclusão da pandemia. Prova de que a sua poesia viaja apesar de tudo e está também onde estamos e mal notamos. A poesia de Mar Becker tem também a poesia que nós somos e pouco lembramos. Agora, com o livro, tudo finalmente ficou mais fácil e simples, como é de seu modo de ser. O Rio Grande do Sul pode congratular-se sem medo do surgimento em livro de Mar Becker e dizer que ela é sua. Quem a leu, afinal, já notou que a verdade é que nós é que somos dela.