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Fernando Brant é um colosso

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Num de seus muitos textos primorosos (ver aqui), a Eliane Brum faz duas sugestões letais. A primeira é uma constatação: “Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um imortal morre.” A segunda é sobre os efeitos da constatação: “De certo modo, é assim que o mundo da gente começa a morrer antes da gente.”

O que ela faz é dizer de um sentimento geracional, de perceber-se que o mundo como o conhecemos é povoado de ícones imortais que vão, aos poucos, partindo dessa para a presumivelmente melhor. Como se dissessem sem querer que o tempo compartilhado, em que se sabia mesmo remotamente da sua existência, vai escoando. O tempo vai escoando. E ninguém precisa entender de Física para perceber isso.

Ontem, quando li a notícia de que o Fernando Brant havia morrido, imediatamente lembrei dessas duas frases e, sem que notasse como, elas ocuparam o vazio que o pipocar da manchete começou a perfurar na minha memória. Mas então um tipo de magia sinestésica começou a acontecer, porque de cada rombo emergia um pedaço das músicas escritas pelo Fernando e cantadas pelo Bituca. E, como todo mundo sabe, a voz do Bituca exerce um predomínio incomum entre os sons que há no mundo.

Não era uma magia de libertação, acho que especialmente porque o que mais lembro do Fernando é uma expressão de perplexa generosidade, como de alguém que, com os olhos e com as palavras, sempre tentou dizer que não há muitas alternativas entre as pessoas senão o amor, a amizade e esses sentimentos tão evidentes na sua poesia.

E já que falei em poesia, é justo dizer que embora nem o Fernando nem os demais letristas da música popular brasileira sejam reconhecidos, a rigor, como poetas, seu legado em ter desencerado os ouvidos e a sensibilidade de uma, duas ou três gerações é colossal. Fernando Brant será sempre um desses colossos. E reconhecer isso, nesse momento de instabilidade, pode nos ajudar a situar na própria memória e na memória nacional, da qual ele tanto se ocupou fixando momentos irrepetíveis da música brasileira.

Assobie essa melodia

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Esses dias topei sem querer com uma lista inusitada na internet, onde listas de qualquer coisa proliferam alucinadamente. Era uma lista com dez assobios musicais que não desgrudam da cabeça. A seleção foi feita pela Rolling Stone e, entre os 10 assobios grudentos, apenas um brasileiro na lista. Coube a Gilberto Gil o feito, pela sua gravação de Esotérico, registrada no álbum Um Banda Um, de 1985.

Achei uma injustiça tremenda, porque de cara lembrei-me de pelo menos outros 5 ou mais assobios celebrizados por cantores e compositores brasileiros que não fariam feio numa lista dessas ou até poderiam sobrepujá-los no quesito “grudento”, senão (felizmente) em outros critérios musicais.

Na minha lista de assobios da música brasileira, mas não apenas para não contrariar os caras da Rolling Stone, constaria também o Esotérico de Gil, porque sem dúvida é um assobio que cai muito bem na melodia e na harmonia. A seu lado, para variar, caberia bem a companhia de Caetano Veloso, em pelo menos dois registros, ao que eu me lembre. O primeiro que me ocorre é sua fabulosa versão de For no One, de Lennon e McCartney, gravada no long play Qualquer Coisa, de 1975. Logo a seguir, por que não incluir também Você é Linda, gravada em 1983 em Uns?

Voltando um pouco no tempo, o que dizer então de O Vento, de Dorival Caymmi, assobiada e gravada pela primeira vez nos idos de 1949?

Dos baianos para baixo, logo ao sul, encontra-se obviamente Milton Nascimento e sua turma de clubeiros, em Minas. Em Cravo e Canela, gravado no seminal Clube da Esquina, de 1972, já se podia ouvir o assobio que repetiu em Bola de Meia, Bola de Gude, que ele mesmo só foi gravar em disco em 1982, no álbum Amigo.

Em Vida Noturna, de João Bosco e Aldir Blanc, gravada em 1976 no álbum Galos de Briga, o cantor e violonista mineiro introduz a noturna letra de Aldir em um longo e melodioso assobio. Lembrava dessa?

Elis Regina, com o assobio de Toots Thielemans, por sua vez gravou Você, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli em 1969.

Timidamente, como não podia deixar de ser, Chico Buarque também aparece nessa minha lista sem ranking, com um assobio quase furtivo em Futuros Amantes, de Paratodos, de 1993.

Luiz Gonzaga Jr, o Gonzaguinha, em Eu Apenas Queria que Você Soubesse, no álbum Coisa Mais Maior de Grande, de 1981, também está aqui.

Pulando algumas décadas e pensando em que está mais perto de mim, aqui no sul, lembrei-me de Vitor Ramil, que gravou no ano de 2000 o disco Tambong. Nele, a faixa Espaço tem como introdução um longo e melodioso assobio.

Os tribalistas Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, também assobiaram juntos em Mary Cristo, em 2002, ainda que bem discretamente.

A cantora Fernanda Takai, do Pato Fu, em parceria com Rodrigo Amarante, dos Los Hermanos, regravou do jovemguardista Demétrius a faixa No Ritmo da Chuva, para o especial sobre a jovem guarda da série Um Barzinho e Um Violão, de 2004, que conta com um trecho delicadamente assobiado por Rodrigo.

Igualmente recente, de 2010, o paulista Marcelo Janeci gravou um assobio na hiperexecutada Felicidade, do festejado Feito pra Acabar.

Toda essa história de gravar assobios na música brasileira data, porém, de muito tempo atrás. Consta que já em 1904 o trinado de Geraldo Magalhães já podia ser escutado em Meu Assobio, composta por Eustórgio Wanderley (parceiro de Chiquinha Gonzaga) e gravado mais ou menos nessa época, pela Odeon.

Refúgio dos maus cantores, o assobio pode ser tanto o meio de evocar uma melodia como de criá-la. Não é preciso dizer que, obviamente, os exemplos acima não se referem a maus cantores. Talvez isso ajude a demonstrar que se trata, provavelmente, do mais portátil, natural e espantoso instrumento musical, porque fabricado e transportado no próprio corpo.

Ele surge ou introduz melodias que nascem fáceis, especialmente de compositores da música popular. Afinal, talvez não haja mesmo expressão musical mais simples do que estas nascidas com a boca quase fechada, mas complexa a ponto de soar tão bem quanto o mais afinado instrumento. Então se, como eu, você canta mal a ponto de espantar a passarinhada, quem sabe assobiando..?

Tire seus olhos verdes de minha filha

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Estou prestes a cometer a heresia de voltar a falar de Chico Buarque de Hollanda sem tocar no assunto biografias. Penso tanta coisa sobre isso e tenho tão pouca certeza do que penso que, por via das dúvidas, acho quase tudo cabível (e ao mesmo tempo muita coisa condenável). Parece contraditório? Se a vida sabidamente o é, por que diabos a biografia não seria?

Mas meu assunto não é esse. Meu assunto é o Chico e, como se trata dos encantos de uma filha minha para com o sujeito, deveria até dizer que meu assunto é “com” o Chico.

Por muito tempo achei que a razão de todo o seu encanto estava naqueles seus translúcidos olhos verdes, varados de timidez. Ou na voz mansa e relutante. Ou num certo bom mocismo de quem cantava sobre moças nas janelas e detalhes da vida corriqueira das pessoas mais comuns com delicadeza, com boa educação e com um bom gosto indiscutível. Ora, mas isso não seria encantador em qualquer pessoa? É verdade, mas deu o acaso de cair tudo numa pessoa só. Isso pode acontecer e, como sabemos, aconteceu de verdade…

A descrição acima, porque obviamente já tenha passado pela cabeça de inúmeras pessoas deste país, é uma constatação até certo ponto repetitiva. O inesperado, no meu caso, é de que jamais imaginei que esse senhor quase septuagenário (sim, ele é de 1944) pudesse tontear de encanto uma criança de nove anos de idade.

Pois é. Mas o Chico pode. Um dia cheguei em casa e encontrei minha filha em prantos. Embora lá em casa a gente vá aos prantos com certa facilidade, obviamente que fiquei preocupado. O que teria acontecido? Brigou na escola? Tomou uma nota ruim? Puxaram-lhe o cabelo? Afinal, digam de uma vez… Não, se acalme, não é nada disso. Está assim porque esqueceu de uma música linda que ouviu no YouTube, não lembra de quem, nem porquê, nem coisa nenhuma. Só uma melodia em sua pequena boca soprando em meus ouvidos um som melancólico e familiar, com uma letra entrecortada sobre enamorados numa praça. Deus meu, o que pode ser isso? Um vídeo cômico não é. É uma música. A mais bela de todas, cantada numa voz de fada…

Vamos em busca disso, falei. E fomos. Ali de cara, no histórico do navegador, estava a razão definitiva daquele desespero. A razão defintiva e digna de ser. A Valsinha, de Chico e Vinicius cantada pela Mônica Salmaso, fritou o coração e a memória da minha pequena menina.

Como pude não precavê-la de que isso podia um dia acontecer? Falhei como pai, porque pensei em protegê-la destes “terríveis” ídolos teenagers que saem por aí pichando as ruas cercados de guarda-costas, expondo-se ao risco absurdo de fazer alguma coisa de verdade na vida, como esse menino que andou esses dias em tournée no Brasil, o Bieber. Deixei de perceber que a poesia e a música são mais perigosas que tudo. Isso que ela ainda não cresceu o tanto para prestar atenção naqueles velhos olhos verdes…

Para mim, é um espanto real viver essas coisas. E é mais espantoso ainda que a ternura consiga falar mais alto para uma criança que o espetáculo incessante e em alta definição de tudo, oferecido o tempo inteiro aos seus incautos sentidos. E será sempre um espanto que depois de tantos anos eu voltasse a redescobrir a poesia e melodia do Chico pela voz embevecida (e abençoada) de minha pequena filha. E assim como o tesouro é grande, grande será a descoberta. E como isso não vai ser contado em nehuma biografia, fica aqui o registro.