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Dez contos (ou crônicas) para uma playlist

Não foi tarefa fácil a que escolhi. Em primeiro porque a música popular brasileira é, na minha memória afetiva, predominante. Um hábito familiar do qual jamais declinei em favor de outros estilos e que aprecio desde que me entendo escutador, e isso é mesmo bem remoto no meu caso. Não é difícil explicar: embora nunca profissionalmente, minha mãe tem sempre cantado e cantarolado na sua vida. Creio que, como os demais nascidos no apogeu da era do rádio, a música popular lhe ensinou do mundo até mais que os livros. No interior mais interno do interior, na sua época, só o mesmo o rádio tinha esse poder.

É importante dizer que esta escolha não obedece a nenhum critério de preferência, classificatório, mas apenas elenca, dentro muitos, dez exemplos de quando a música popular brasileira foi literária para além do poético que lhe é comum. De quando foi narrativa da mesma forma de um conto, breve e contundente, e também de quando foi, como crônica, mais calcada na revelação do espírito de um tempo qualquer. Esse, variável por natureza.

Mas não será da sua memória que fiz minhas escolhas, mas da minha própria e de como fui identificando aqui e ali os traços que me permitiram distinguir entre a vertente mais poética da música popular e onde ela se embrenhou, por outro lado, nos meandros da narratividade.

Os exemplos são incalculáveis, em se tratando da música brasileira. No entanto, é preciso aqui traçar um recorte e não será casual, mas escolhido entre os mais de centenas de milhares de registros da música brasileira. Esses dados aproximados são do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que reúne informações de mais de 5.000 compositores brasileiros.

Foi uma aventura das mais agradáveis, afirmo e confirmo, mas precisei me deter naquelas composições que estavam mesmo registradas na minha memória afetiva. Seja pelo impacto ou pela percepção de uma voz narrativa, o que mais este trabalho me mostrou é uma grande vocação do povo brasileiro em contar-se, isso de um modo mais historicista ou constituído pela expressão de quem deseja registrar uma experiência comum, de todos os homens, configurando-se no que talvez se pudesse chamar de “crônica”.

Pois a música popular brasileira tem muito conto, mas também muita crônica. Para mim, pessoa nascida e desenvolvida em meio aos anos 70 e 80 do séc. XX, foi como rever momentos em que entendi muito do meu país, das suas peculiaridades locais e talvez até a certo espírito (às vezes mais recalcado, às vezes mais evidente) de nacionalidade. Hoje seria bem difícil, creio eu, para quem começa a ouvir música popular identificar elementos assim, mas a música tem, para além de uma facilidade em ultrapassar fronteiras formais da expressão, uma potência comunicativa incrível. Nesse território, não convém mesmo duvidar de nada.

Abaixo, não me alongando mais, relaciono alguns destes momentos nos quais a experiência estética literária me parece ter se fundido incomparavelmente à sinestesia da música popular brasileira. E, se me cabe esse tipo de consideração (se não, desculpem-me), a mais impressionante de todo o mundo, como certa vez afirmou o “bruxo” Hermeto Paschoal.

Minha playlist começa por duas músicas com temática rural. Parecem-me contos em sua capacidade de deter a atenção do ouvinte do começo ao desfecho e da riqueza entre esses dois extremos. Por primeiro, a voz mais do coração que já pude ouvir, Milton Nascimento. A canção chama-se “Morro Velho” e é um conto (desculpe professor, não tenho dúvida disso) daqueles que fazem um torção na alma da gente, ainda que seja “correndo atrás de passarinho”. Em seguida, na mesma toada, já fui colocando o menestrel Elomar Figueira de Mello. A sua “Arrumação” o que é senão um desafio a entender a linguagem do povo do sertão na sua própria maneira de dizer? De um povo que conta e espera a chuva para “plantar feijão no pó”? É só danos… Aqui, se a lista fosse ainda maior, sem dúvida encontraria desde o mais popular cantor do Rio Grande do Sul, Teixeirinha, exemplos formidáveis de contos. Todavia, como a lista é curta e o tempo também, vou adiante.

Minha próxima parada é a boa Bahia. Em Gilberto Gil, como não notar a mão oculta do narrador naquele “Domingo no Parque“, no qual Juliana se via triangulando, igual aos pés dos capoeiristas? Foi que ele viu… No segundo ponto, mesma parada, vejo o mano de Bethânia, Caetano, reconstituindo em prosa, como um redivivo Homero, a história de ninguém menos que Alexandre, cujo pai “foi um raio que veio do céu”. Pobre Felipe, também não resistiu à concorrência do glorioso Zeus…

Numa mudança radical, porque o Brasil é mesmo radical, encontro certo poeta, Luiz Gonzaga Jr, carioca de nascença e brasileiro em essência, uma perda precoce e absurda, e que deu vida ao “filho da Dina“… Passado é um pé no chão e um sabiá.

Só que não para. Ainda tem no caminho certo Luiz Melodia dizendo como deveria ser lhe matar de amor no Holly Estácio, certa Pérola Negra, numa crônica absoluta e definitiva do Brasil negro de 1973, mas tente esquecer em que ano estamos.

Alguns aventam (eu tenho quase certeza) que os períodos mais difíceis, mais duros da história também são os mais criativos. Quem melhor atestaria isso que a dupla João Bosco e Aldir Blanc, com um flagrante “De frente pro crime“, ou com a história épica de um menino, um Deus de bermuda e pé-de-chinelo, que nem os Orixás livraram da barbaridade de um “Tiro de Misericórdia” (por que mesmo nos abandonamos em cada cruz?)…

Um longa estadia se poderia fazer com aquele que tirou do anonimato Geni, o Meu Guri e tantos outros, incontáveis.Mas já ficaria demais e não daria tempo de dizer dos meninos que, com guitarras, lá nos anos 80, escolheram não ficar de costas pro Brasil, como dizia Fernando Brant, e botaram pra quebrar porque, afinal, isso é que é rock and roll. Estou falando claro, das histórias de Eduardo e Mônica, de certo interminável Faroeste Caboclo, de Bete Balanço por aí e mais uma enormidade de personagens e situações marcadas pelo capítulo da história da música brasileira que atende por rock nacional.

Como não há epílogo na história, ainda há que não esquecer-se do fenômeno do rap, Racionais MC’s e a saga de Guina, o que não tinha dó, em “Tô ouvindo alguém chamar meu nome?”. Aqueles manos são foda…

Já passam de dez (é um excesso), acho que posso parar aqui. As vozes de todos continuam. São como as nossas. De certo modo, dizem muito por nós. E como dizem… E, como dizia o já citado Gonzaguinha, o futuro é o que virá.

O mundo é um moinho mesmo

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Mais que em qualquer outra cultura popular de que eu tenha conhecimento, a música popular brasileira é especialmente pérfida, sádica, terrível e completamente inadequada para os pais e mães de crianças quase adolescentes. Da Menininha de Toquinho e Vinicius, passando pelo O Caderno de Chico Buarque, Antigamente de Paulo Tatit e até mesmo O Mundo é Um Moinho, de Cartola, a coleção de serestas melancólicas e avisos prévios de um mundo terrível no porvir é impressionante. O melhor que todas dizem é: não cresça se possível. Como se fosse possível….

É uma tristeza, ainda mais se pensarmos que o recado passado é de que é melhor ficar para sempre na infância, não crescer jamais. Como os personagens de Peter Pan, por exemplo.

Está muito certo que o país e o mundo não andam lá essas coisas e é sempre bom quebrar desde cedo altas expectativas e evitar decepções talvez inevitáveis, mas há um gosto amargo que permanece na boca de qualquer pai/mãe que se vê obrigado a dizer sobre o mundo externo, por primeiro, um alerta de cuidado. Além de ficar implícita uma espécie inegável de atestado de incompetência.

Daí a versos como “o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos” e “fique assim, meu amor /sem crescer/porque o mundo é ruim, é ruim e você/vai sofrer de repente/uma desilusão” serem tidos como amorosos é de uma violência absurda. Para mim, são dignos de um Edgar Allan Poe de ressaca. E, bem.. A verdade é que, em se tratando dos citados compositores, talvez pelo menos a ressaca seja verdadeira…

No mundo da música pop estrangeira, por outro lado, a adolescência é exaltada e seu comportamento já nem tão infantil, nem ainda adulto, completamente idealizado. Por diversos artifícios da cultura, é feito um mundo de demandas insaciáveis de consumo cuja forma de satisfazer vai criar, mais tarde, insatisfações severas e inevitáveis violências paralelas ou perpendiculares. Talvez por isso haja mesmo uma necessidade em avisar previamente aqueles que abandonam as brincadeiras e bonecas de que, afinal de contas, o mundo é um moinho mesmo..

Longe de mim querer tolher dos meus filhos o seu crescimento inevitável. Como qualquer pai, é lógico que preferiria que ficassem brincando aos meus pés por longos e inumeráveis anos, pra que mentir? Porém, como não é possível e é necessário seguir o exemplo dos que vieram antes de mim, o mais prudente é deixar a roda continuar a girar, porque sabidamente o efeito de mantê-la em inércia costuma ser pior que a encomenda. Ainda assim, por uma intuição paterna diversa daquela dos grandes compositores da MPB, vou tentar evitar assustá-los demais do que eu mesmo colaborei em fazer.

Velho Chico e sua trilha sonora

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Essa nova novela da Globo, Velho Chico, acho que vou tentar assistir. Talvez seja mesmo mais para atender algum desejo melancólico meu de ver um rio que quase já não está lá ou, principalmente, de reconhecer as melodias da trilha sonora. Reconhecer é o termo preciso, porque me são velhas conhecidas e se isso me denuncia a idade, que fazer? Nada, ora.. Vou sentar na frente da tevê e esperar sinceramente por um bom trabalho de fotógrafos, cenografistas, figurinistas e atores também… E, se ficar chato de repente, então é só fechar os olhos e escutar. Não é pouco.

Enredos rurais e interioranos fizeram muito no passado pela teledramaturgia e também pela popularização de cantores que o tempo tratou de despopularizar, transformando-os quase numa espécie de erudito popular brasileiro… Quem sabe enredos assim não podem voltar a fazer isso agora também?

Está certo que antes isso costumava acontecer pelas mãos de um certo Dias Gomes, mas o Benedito Ruy Barbosa, se de imediato não for preso pelo pé dos mais vis desejos ibopeanos, pode fazer o interesse do povo durar um pouco mais do que o normal sem sacar de artifícios fúteis para a manutenção da audiência.

Por enquanto eu pouco sei da trama e personagens e minha esperança é que pelo menos um número razoável consiga escapar da banalidade psicológica ou de uma muito apelativa caracterização. Se for gente parecida com gente de verdade, sem grandes exageros – nem para menos e nem para mais – para mim já está de muito bom tamanho.

E não é por ter trazido de volta à baila nomes que fizeram história na música brasileira, mas é uma brisa de se aproveitar um tantinho, entre sonoridades tão repetitivas quanto as sempre iguais, como as que se replicam como praga nestes tempos contemporâneos.

Para quem ainda não sabe do que estou falando, segue o setlist da trilha sonora preparado por alguém no YouTube.

Segundo informações da própria TV Globo, a escolhida para a abertura do folhetim foi “Tropicália’, gravada por Caetano Veloso e a Orquestra Sinfônica de Heliópolis. Completam a seleção “Gemedeira” (Amelinha), “Me Leva” (Renato Rosa), “Flor de Tangerina” (Alceu Valença), “Enquanto Engoma a Calça” (Ednardo), “Veja Margarida” (Marcelo Jeneci), “Como 2 e 2″ (Gal Costa), “L’Étranger (Forasteiro)” (Thiago Pethit part. Tiê), “I-Margem” (Paulo Araújo), “Incelença Pro Amor Retirante” (Xangai part. Elomar), “Serenata (Standchen)” (Chico César), “Pot-pourri Suíte Correnteza – Barcarola do São Francisco, Talismã e Caravana” (Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai), “Triste Bahia” (Caetano Veloso) e “Senhor Cidadão” (Tom Zé).

Música hidrográfica brasileira

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“…e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”
João Guimarães Rosa – A Terceira Margem do Rio

O que significam os rios para o interior do Brasil e para a cultura popular é algo do indizível. Isso é assim porque os rios são como a seiva dos lugares, dos territórios. São como membros de uma grande família e, se um deles morre, toda a família padece junto. São como limites de uma casa, nossa casa, e não é à toa que estamos delimitados de norte a sul pelo Oiapoque e pelo Chuí: dois rios.

Na semana passada, o Rio Doce, em Minas Gerais, foi sepultado de uma só vez, numa tragédia histórica e aparentemente irreversível. Não foi como acontece com muitos outros rios, arroios, riachos, que gemem diariamente da agonia dos despejos e das drenagens e dragagens incessantes. O Rio Doce foi sepultado vivo, sem direito nem a gritar, numa violência que só uma criatura das bem ruins pode fazer. Infelizmente, é justo a criatura humana, supostamente a mais sábia entre todas, quem vem se especializando nessas ruindades, batizando-as disfarçadamente de “acidentes”, “desastres” e outros eufemismos, conforme intenções mais ou menos veladas.

Não é somente pela pesca que os rios se fazem fundamentais, também é pela presença e pela sua capacidade de favorecer a multiplicação dos recursos naturais. Pelo frescor da vegetação de seus arredores e a rarefação dos ares. Pelas piracemas milagrosas. Pelas nascentes, brotadouros e pelos olhos d’água. Pelas Iaras fantásticas, aparições e pelos animais de verdade que, agora, perdem sua casa, sua imagem, sua sombra no chão da existência.

E também pela inspiração de quem os cantava e agora terá em seu lugar estradas de asfalto, concreto, sujeira ou, ainda pior, coisa nenhuma. Alguém me diga quem escreveria uma história sobre um ex-rio? Quem comporia uma canção assim, com essa finalidade? Seja como for, os rios são como nossas artérias e veias. Somente uma criatura que não se importa consigo mesma os trataria tão mal como os tratamos. Será que deixamos de perceber de que somos na verdade, como o “nosso pai” de Guimarães Rosa, um só, o eu-rio?

Nos links abaixo, tentei reunir alguns momentos da música brasileira onde os rios estão homenageados. Para ver como rios e artistas estão mal considerados no mundo contemporâneo, que já não se os homenageiam tanto, hoje em dia. Mas, de outra sorte, imundície e destruição não tem faltado.

“Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei”
(Força estranha – Caetano Veloso)
https://www.youtube.com/watch?v=LX_hSIGxu4U

“Dentro da terra o rio quer nascer
O rio chora água ao parir”
(Dois rios – Tavinho Moura e Fernando Brant)
https://www.youtube.com/watch?v=e4zYf8gPcJA

“A correnteza do rio
Vai levando aquela flor
O meu bem já está dormindo
Zombando do meu amor”
(Correnteza – Tom Jobim)
https://www.youtube.com/watch?v=6oWlY4l2dy0

“Canoa, canoa desce
No meio do rio Araguaia desce”
(Canoa, canoa – Nelson Angelo e Fernando Brant)
https://www.youtube.com/watch?v=rKrTEQiK8_w

“Vivi na beira de rio, não conheço outro lugar.
Eu e ele é um desafio, pra ver quem mai vai durar.
Rola espuma, rio grande, rola o rio Paraná”
(Rio Paraná – Tonico e Tinoco)
https://www.youtube.com/watch?v=-WTTZXPiyU8

“Nas águas do Rio Amazonas
o meu coração se banhou”
(Rio Amazonas – Dori Caymmi)
https://www.youtube.com/watch?v=goE1fxNGV_g

“O rio de Piracicaba vai jorrar água pra fora
Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora
Quando chegar a água dos olhos de alguém que chora
Lá no bairro onde eu moro só existe uma nascente.”
(Rio de Lágrimas – Tião Carreiro e Pardinho)
https://www.youtube.com/watch?v=Rzrm6dLP4zE

“Cumprindo sua sina, distraindo as mágoas
Parece que o rio inveja o mar
Nas ondas que os peixe branqueia”
(A Vida do Rio – Simone Guimarães, José Pacífico e J. Márcio Castro Alves)
https://www.youtube.com/watch?v=OaE8uiQh8YU

“Óia o dourado que bateu no espinhel
Traz a canoa que rio fundo não dá pé”
(Cantiga de Rio e de Remo – Os Angueras)
https://www.youtube.com/watch?v=STAoRcco29o

“Riacho do Navio corre pro Pajeú
O Rio Pajeú vai despejar no São Francisco
O Rio São Francisco vai bater no mei do mar”
(Riacho do Navio – Luiz Gonzaga)
https://youtu.be/2B2D4Sym5tE

“Vai a me levar como se fosse
Indo pro mar num riacho doce
Onde ser é ternamente passar”
(Rio Doce – Beto Guedes)
https://www.youtube.com/watch?v=xtrGSowtzjY

Tire seus olhos verdes de minha filha

chico

Estou prestes a cometer a heresia de voltar a falar de Chico Buarque de Hollanda sem tocar no assunto biografias. Penso tanta coisa sobre isso e tenho tão pouca certeza do que penso que, por via das dúvidas, acho quase tudo cabível (e ao mesmo tempo muita coisa condenável). Parece contraditório? Se a vida sabidamente o é, por que diabos a biografia não seria?

Mas meu assunto não é esse. Meu assunto é o Chico e, como se trata dos encantos de uma filha minha para com o sujeito, deveria até dizer que meu assunto é “com” o Chico.

Por muito tempo achei que a razão de todo o seu encanto estava naqueles seus translúcidos olhos verdes, varados de timidez. Ou na voz mansa e relutante. Ou num certo bom mocismo de quem cantava sobre moças nas janelas e detalhes da vida corriqueira das pessoas mais comuns com delicadeza, com boa educação e com um bom gosto indiscutível. Ora, mas isso não seria encantador em qualquer pessoa? É verdade, mas deu o acaso de cair tudo numa pessoa só. Isso pode acontecer e, como sabemos, aconteceu de verdade…

A descrição acima, porque obviamente já tenha passado pela cabeça de inúmeras pessoas deste país, é uma constatação até certo ponto repetitiva. O inesperado, no meu caso, é de que jamais imaginei que esse senhor quase septuagenário (sim, ele é de 1944) pudesse tontear de encanto uma criança de nove anos de idade.

Pois é. Mas o Chico pode. Um dia cheguei em casa e encontrei minha filha em prantos. Embora lá em casa a gente vá aos prantos com certa facilidade, obviamente que fiquei preocupado. O que teria acontecido? Brigou na escola? Tomou uma nota ruim? Puxaram-lhe o cabelo? Afinal, digam de uma vez… Não, se acalme, não é nada disso. Está assim porque esqueceu de uma música linda que ouviu no YouTube, não lembra de quem, nem porquê, nem coisa nenhuma. Só uma melodia em sua pequena boca soprando em meus ouvidos um som melancólico e familiar, com uma letra entrecortada sobre enamorados numa praça. Deus meu, o que pode ser isso? Um vídeo cômico não é. É uma música. A mais bela de todas, cantada numa voz de fada…

Vamos em busca disso, falei. E fomos. Ali de cara, no histórico do navegador, estava a razão definitiva daquele desespero. A razão defintiva e digna de ser. A Valsinha, de Chico e Vinicius cantada pela Mônica Salmaso, fritou o coração e a memória da minha pequena menina.

Como pude não precavê-la de que isso podia um dia acontecer? Falhei como pai, porque pensei em protegê-la destes “terríveis” ídolos teenagers que saem por aí pichando as ruas cercados de guarda-costas, expondo-se ao risco absurdo de fazer alguma coisa de verdade na vida, como esse menino que andou esses dias em tournée no Brasil, o Bieber. Deixei de perceber que a poesia e a música são mais perigosas que tudo. Isso que ela ainda não cresceu o tanto para prestar atenção naqueles velhos olhos verdes…

Para mim, é um espanto real viver essas coisas. E é mais espantoso ainda que a ternura consiga falar mais alto para uma criança que o espetáculo incessante e em alta definição de tudo, oferecido o tempo inteiro aos seus incautos sentidos. E será sempre um espanto que depois de tantos anos eu voltasse a redescobrir a poesia e melodia do Chico pela voz embevecida (e abençoada) de minha pequena filha. E assim como o tesouro é grande, grande será a descoberta. E como isso não vai ser contado em nehuma biografia, fica aqui o registro.