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Deficiência: da presença indesejada à vida indesejada

balanca

Existe um Brasil antes e outro depois do Zika vírus e da epidemia da microcefalia, mas têm coisas por aqui que dificilmente mudam. Uma delas é tendência aparentemente inexorável ao pensamento binário, maniqueísta, de oposição sistemática. Pois é justamente quando o maniqueísmo que ronda a consciência de cada um estende suas garras em direção a um dos maiores tabus brasileiros, o possível direito ao aborto, que essa tendência mais uma vez se confirma e amplifica, como não seria difícil prever que aconteceria.

Até aí nada de novo, afinal desde as últimas eleições presidenciais viu-se que esta lógica é cada vez mais imperativa: quem não pensa como eu é meu inimigo e não é preciso aceitar de todo a opinião do outro, basta parecer tolerá-la ou então ignorá-la. Este parece ser o princípio moral que rege estes tempos de relações virtualizadas, mas basta que se avente mudar o mundo real, no caso a legislação e os direitos petrificados sobre o aborto – ou sua jurisprudência – para que a reação ora titubeante erga-se nas patas das mais profundas convicções.

Então, outra vez e agora por uma razão muito, muitíssimo séria, temos a nação novamente dividida. Só que, desta vez, opondo-se o pleito de que as mulheres tenham o direito à escolha por levar a termo gestações em situação de risco ao direito à dignidade das pessoas com deficiência. Mas será que interessa saber se esta oposição é mesmo real ou artificiosa? A que interesses pode servir a ideia de manter-se as restrições ao direito ao aborto mesmo num cenário adverso para a qual as maiores vítimas, as mulheres gestantes, sequer contribuíram para dar causa? Seja quais forem, as respostas até aqui têm sido bastante parciais e a dúvida social permanece: seria legítimo, como a própria ONU propôs, que mulheres gestantes tenham o direito a optar por fazer a interrupção e ela ser bancada pelo mesmo poder público que, por permitir a proliferação do vetor transmissor, o mosquito Aedes aegypti, favoreceu as condições para que elas fossem infectadas pelo vírus Zika, provável causador da microcefalia e outras decorrências graves, como a síndrome de Guillain-Barré?

A despeito das dúvidas imensas e dilemas morais diversos, uma certeza é tão imperativa como a inevitável disputa de ideias em torno aos temas: no embate de preconceitos de toda a espécie, é difícil quem consiga restar em pé. Seja por ser deitado ao chão por cansaço ou por ter recebido um nocaute argumentativo, o mais difícil em todo o debate travado com ideias é aceitar que a realidade do outro é sempre incomparável e que recusá-la sob qualquer pretexto pressupõe numa das principais raízes do pensamento totalitário, no qual apenas uma versão do real é legitimada enquanto todas as outras são inutilizadas, seja por artifícios discursivos quanto por argumentos improváveis e falaciosos, mas a essa altura dos debates isso é o que menos tem importado.

Por outro lado, compreender-se em que condições se desenrola a vida das pessoas com deficiência no Brasil contemporâneo, assim como compreender o contexto da emergência dos casos de microcefalia decorrente da epidemia de Zika vírus, consiste no requisito primeiro de todo o debate que se pretende respeitoso com o outro.

Claro que, caso isto não esteja no horizonte do interesse imediato do leitor, o presente texto é muito provavelmente inútil e continuá-lo daqui em diante implicará necessariamente num ato de livre autopunição, porque aqui nem por hipótese se buscará fazer a muito bem conhecida caça às bruxas a quem defende o direito à escolha, nem tampouco dar a entender que a vida com deficiência merece um comportamento à vade-retro, definição precisa que recolhi dentre os muito debates que ocorrem no mundo digital, fomentados por um temor crescente e a propagação de uma mensagem na maior parte das vezes negativa a respeito da microcefalia.

A presença indesejada

Às vezes tenho a impressão de que é muito difícil para pessoas que não têm a vivência ou nunca acompanharam de perto a vida familiar de uma pessoa com deficiência, entender a dimensão do que seja a experiência social de ter um filho assim. Diga-se de passagem que, neste “assim”, cabe um sem número de condições (entre físicas, sensoriais, intelectuais e múltiplas), além de que, é bom lembrar, nenhuma seja equiparável à outra. Porém não estou pensando nas dificuldades iniciais, de assimilação ou qualquer outro dilema da experiência individual, mas na relação da pessoa com o mundo tal como ele é, cujo marco principal via de regra é o ingresso na vida escolar.

Muitas pessoas não sabem, porque o assunto ou lhes é distante ou muito distante, mas nesse momento, no Supremo Tribunal Federal, está para ser julgada a ADI 5357, impetrada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) para sustar alguns dos efeitos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) que passou a vigorar no começo deste ano. O objetivo da ação é “proteger” os estabelecimentos particulares de ensino da obrigatoriedade de assegurar educação aos estudantes com deficiência, assegurada na LBI.

O que muitas pessoas sentem, percebem, interpretam ou identificam em uma ação assim, com objetivos tão claros e explícitos, é um rotundo NÃO social. Um enorme NÃO. Um NÃO sem metáforas. Um NÃO é aqui o seu lugar. Um NÃO pense que o seu filho ou filha está apto a pertencer a este mundo. Um NÃO sonoroso que pode ramificar-se em: NÃO temos vagas, NÃO temos preparo, NÃO temos recursos, NÃO temos acessibilidade, NÃO queremos saber disso aqui, NÃO temos o menor interesse em sair dessa posição, NÃO isso, NÃO aquilo. E mais uma série de NÃOS que repercutem na individualidade, ainda que de muitas formas.

É muito difícil que um pai ou mãe de uma criança com deficiência não tenha pelo menos uma história dessas para contar. Na rede privada, não faltam histórias de recusa expressa de matrícula, embora haja também as apenas insinuadas (como quando dizem “Seu filho/a seria melhor atendido/a na Conchinchina, onde têm experiência prévia, etc, etc.). Também proliferam as que dizem respeito à imposições de taxas extras (porque se não tiver alguém que faça metade das suas tarefas ele/ela apenas estorvará o tempo dos professores, etc, etc, atrapalhando os demais).

É igualmente muito difícil para muitos pais continuarem a insistir diante de tão evidente recusa. Muitas vezes é penoso e não são poucos os casos de “procissão” que ainda hoje perduram, a despeito de ocorrerem à margem da lei. No Brasil contemporâneo, não se imagina que um família tenha seu filho barrado na escola porque é negro, por exemplo, e ainda assim a sociedade identifica facilmente que vivemos num racismo que se revela velada ou escancaradamente. O preconceito contra a deficiência, entretanto, encontra amparo em instituições que são justamente aquelas que deveriam ser as primeiras a acolher as crianças e obtêm concessão do Estado para exercer esta função. É um recado bastante duro. Quem o recebeu a seco, sem preparo prévio, dificilmente esquece.

Na rede pública, até há pouco era praxe que as escolas simplesmente reorientassem as matrículas em direção às escolas especiais, nas quais os alunos deixavam de conviver com o contexto social em seu sentido mais amplo. Atualmente, as queixas a respeito da oferta e do atendimento de qualidade predominam em muitas reclamações a respeito da rede pública, enquanto o único indicador disponível à sociedade diz respeito ao número de matrículas. Sobre qualidade no atendimento, os dados são precários a quem quer que tente consultar dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), do Ministério da Educação ou mesmo de pesquisas não governamentais.

Além da escola, o preconceito contra a deficiência se expressa de muitas outras maneiras: no isolamento imposto pelo convívio social muitas vezes dificultado; na invisibilidade das pessoas que pouco se veem se representadas e reconhecidas nos produtos culturais e nos meios de comunicação; e no acesso ao trabalho, por exemplo, quando são comumente vistas como pessoas de menor capacidade e sua presença é tolerada muitas vezes apenas por obrigação legal e formal. Porém aí está justamente um dos pontos críticos deste debate, mas bem pouco visualizado.

Eu diria que a Lei Brasileira de Inclusão, de certo modo, representa muito bem um jogo de forças entre quem deseja incluir-se e entre quem deseja excluir e manter os mecanismos de exclusão da pessoa com deficiência. Basta ver o trâmite e os vetos que a própria presidente da república, Dilma Rousseff, realizou no ano passado na redação final da lei, atendendo os interesses corporativistas do mercado em detrimento dos direitos das pessoa com deficiência.

Talvez seja por perceber o precário interesse estatal em defender o instrumento legal que instituições decidam por deflagrar um ataque tão frontal aos seus principais dispositivos de garantia de direitos. Talvez seja por receber a redundância do recado negativo que pessoas com deficiência e suas famílias olhem com desconfiança para a medida de liberação contingencial do aborto, que poderia significar não a resolução de problemas políticos e sociais, mas a poda do mal pela raiz, uma vez que, se o número de pessoas com deficiência decrescesse, tanto o Estado quanto a sociedade de mercado desincumbir-se-iam desta problemática. É a teoria do estorvo, que muitas outras minorias conhecem bem, principalmente aquelas em vias de extinção, como os indígenas. Todavia, também talvez por perceber isso, as pessoas em condições de evitar entrar de sola nesse mundo de exclusão pense, deseje e efetivamente evitem-no; quem poderia condená-las por isso?

Deficiência e detecção precoce no Brasil

Equilibrar os direitos reprodutivos e a proteção dos direitos das pessoas com deficiência requer, no mundo contemporâneo, a habilidade de transitar sobre o fio da navalha, ainda mais que em solo brasileiro confunde-se muitas vezes “proteção” com “sequestro” e “prevenção” com “eugenia”.

Ora, uma mãe de uma família de classe média alta que, ao detectar precocemente qualquer deficiência (síndromes genéticas, doenças congênitas, etc.) no feto, opta por ingerir, com toda a segurança do mundo, um medicamento disponível no mercado paralelo e que finaliza imediatamente a gestação “problemática” ou ainda aquelas que se valem das técnicas introduzidas pelo Diagnóstico Genético Pré-Implantação (DGPI), que permite a detecção de condições congênitas e diversos diagnósticos cromossômicos e optam por tentar “outra vez”, como sugeriu o biólogo inglês Richard Dawkins recentemente ou o suprassumo da segurança reprodutiva: lança mão dos recursos de reprodução assistida para garantir uma prole a salvo da condição de deficiência (e de lambuja selecionando o sexo e outras características genéticas no futuro bebê) previamente, seriam menos “eugenistas” que as que buscariam o direito à interrupção no caso da microcefalia? Ou o termo aqui não se aplica? Neste caso, por que não? Por que há empresas explorando comercialmente o negócio e sugerindo as maravilhas de uma gestação a salvo de qualquer intercorrência natural? Por que há médicos e especialistas chancelando a prática, promovendo-a em congressos destinados, ora vejam só, a promover o bem estar e o desenvolvimento das pessoas com deficiência?

Quer dizer que são aquelas mães, pobres em sua maioria, que engrossam as estatísticas do risco gestacional e da exposição à insegurança jurídica as “eugenistas”?

Alguém há de pensar que não faz diferença, mas isso não corresponde à realidade. Isso porque o acesso à “eugenia”, caso se prefira chamá-la assim, já é garantido nesses casos. Como disse, é até mesmo estimulado entre as próprias famílias de pessoas com deficiência, num discurso tão contraditório quanto inconcebível. Trata-se de um comportamento, em determinados meios sociais, tido como absolutamente normal. Ninguém é criminalizado por isso e, de certo modo, ninguém se culpa por emitir este NÃO, que é privado e ninguém vê, mas que aos poucos ganha a cena, os congressos sobre deficiência e o mercado, já que o principal para isto existe mesmo: clientes. Já no caso dos pobres, este seria um NÃO público e condenável, penalizado e estigmatizado, porque essa mãe seria igualada à perfídia em pessoa, enquanto as demais apenas estariam tomando uma decisão pessoal, liberal e espontânea.

Daí que aventar-se que o direito ao aborto não exista no Brasil é uma hipocrisia já um tanto sem graça, porque conforme o amplamente noticiado, sabe-se que o SUS realiza 200.000 procedimentos pós-aborto anualmente e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia calcula que são realizados por ano 700 mil abortos no país. O Brasil é tão bom em desigualdades que até mesmo em relação à temível eugenia, há algumas interrupções que são toleradas, porque encobertas pelo mesmo amparo que desprotege quem não pode arcar com estes custos, enquanto outras simplesmente NÃO são.

O vínculo que muitas vezes se quer fazer em relação à microcefalia e o direito ao aborto poderia parecer de imediato uma amplificação dessa expectativa negativa em relação à deficiência, como se ficasse consolidada daqui em diante a perspectiva de eliminação da vida indesejada. Este é um dos tantos raciocínios de oposição, binaristas, que não aceitam a diversidade de opinião e de escolha e que submetem à liberdade ao crivo da moralidade, deixando de perceber que a moralidade é sempre como um guarda-chuvas e se alguém se sente confortável ali, isso não quer dizer que todos os demais venham a sentir-se também ou muito menos tenham esse dever.

Por isso, em minha opinião, não é “eugenista” a mãe ou o pai (principalmente a mãe, lógico) que se vê na situação de arcar com um filho/filha com deficiência cuja causa poderia ter sido evitada se as autoridades cumprissem suas obrigações e opta pela interrupção. Isto não é um acidente genético e equipará-lo a tais condições não é senão o senso comum penalizador atuando e trazendo de reboque consigo a moral pequeno-burguesa.

Da mesma forma, não penso que seja “eugenista” a mãe que decide por todos os meios livrar-se da mera possibilidade da intercorrência de uma deficiência. Para mim, trata-se de alguém que simplesmente lança mão de recursos que estão ao seu dispor, cuja decisão é de todo pessoal, embora seja condicionada por uma ideologia cada vez mais atuante no Brasil, de onde até então não era tão visível assim, mas já existia.

Ainda assim, o preconceito em relação à deficiência existe e é vividamente real e pode, se transmitido negativamente, promover mais pânico e emissão de ainda mais mensagens negativas em relação à deficiência, resultando na cristalização do conceito de “vida indesejada”. Seja como for, muitas vezes parece que há pouco a fazer nesse sentido a não ser persistir na criminalização da pobreza. Enquanto a classe média e alta toma suas providências, as mulheres pobres são as “abortistas”. Essa perversidade social, se não é nova por aqui, é sempre surpreendente, porque volta a revelar-se na renovação de uma moralidade que faz vistas grossas à “interrupção preventiva”, mas condena publicamente a “escalada” do aborto.

Concluindo

Como o Brasil é hábil em encontrar soluções intermediárias em qualquer situação, tudo que não se deseja é a manutenção dos direitos de uns em detrimento dos demais, embora fugir do maniqueísmo no Brasil recente seja tarefa das mais hercúleas e agora, como ninguém pode ou precisa em absoluto acolher a decisão e opinião alheias, uma nova guerra de foices se avizinha, a não ser que abaixemos as armas e usemos mais da racionalidade que das paixões morais.

O NÃO que porventura se escute proveniente de pessoas com deficiência e de suas famílias é claro que deve, sim, ser percebido socialmente, porque este é o NÃO que, desamparados muitas vezes, eles têm escutado em sua interação com a sociedade. Todavia, preservar seus direitos nem por hipótese compete em sua eliminação sistemática. Porém daí a condenar à miserabilização uma geração inteira de pessoas com deficiências evitáveis, em função de um tabu de araque, é de uma vileza que mesmo nestes trópicos me soam exageradas.

Um cidadão qualquer que observe com atenção este movimento, percebe sem dificuldades que a proteção legal à pessoa com deficiência é sempre relativa e muitas vezes falha e que o recado subjacente vêm se mantendo ao longo da história. Em relação às pessoas com deficiência, ainda prepondera o NÃO social frente ao sim que a sociedade felizmente muitas vezes consegue exprimir. O sentimento de rejeição e o preconceito experimentado pelas pessoas com deficiência é, portanto, um pouco diferente dos demais preconceitos que se perpetram contra minorias, porque ele se materializa precocemente e é aceito e, sob certo aspecto, até incentivado explicitamente.

Talvez daí, e essa é uma explicação para lá de apressada, que muitas pessoas com deficiência e seus familiares pressintam no movimento em torno da autorização legal do aborto em casos de microcefalia causada pelo vírus Zika, já que a microcefalia é causa de múltiplas e graves deficiência, uma confirmação dessa negativa que eles sentem vividamente na série de NÃOS que a sociedade e suas instituições vêm emitindo em sua direção. É como se, à possibilidade de prevenir-se uma situação dessas, fosse preferível que ninguém passasse por isso, sejam quais forem as causas disso vir a acontecer. É outro NÃO o que repercute nos sentimentos das pessoas. E é um NÃO que justamente desobriga o mundo externo, o ambiente social, a estar apto ao seu trânsito físico e mental, com tudo o que ele representa.

Ninguém, em um estado são de consciência, sugeriria eliminar pessoas já nascidas, como fatos bem conhecidos na história do séc. XX. Entretanto, a mensagem da vida indesejada às vezes é como um grito entre os vivos, como se eles fossem pessoas cuja eliminação prévia não teria funcionado a contento. Não entender a violência subjacente a essa proposição tem feito com que muitas pessoas interpretem como “eugenia” a mera possibilidade de permitir o aborto nos casos de exposição ao Zika vírus.

Onde o direito à opção não existe, como é o caso brasileiro, é um risco considerável o de que a discussão pública em torno do tema viesse a esbarrar na muralha da penalização. Ainda assim, sugerir-se que as mulheres grávidas de fetos com má formações severas como as causadas pelo vírus Zika levem a gestação a termo, uma vez que a propagação do vírus pode ter ocorrido por omissão do Estado, é apenas uma penalização duplicada. Tendo-se em vista que, na prática, a interrupção é praticada em situações alheias à lei, mas coincidentes ao poder aquisitivo das mulheres, deixar de verificar o mesmo direito às demais significa livrar um parcela ínfima da população do “incidente” e condenar justamente quem menos meios teve para proteger-se da infecção.

Forçado por uma situação ainda um tanto incontornável, porque a relação entre o Zika vírus e a microcefalia ainda não foi plenamente compreendida, o temor à deficiência aportou com força no Brasil da pós-modernidade, de um modo como nunca antes havia chegado, embora se insinuasse aqui previamente por muitas maneiras e através de outros fenômenos socioculturais, como o racismo, etc. Mesmo que recusadas por parte da sociedade, são ideias-força relevantes e que se replicam exponencialmente, tanto quanto o Zika vírus, e que trazem consigo muitas incoerências que, se nem de longe estão de repetir a tragédia do holocausto nazista, ressignificam a ideia do temor à deficiência, numa releitura de conceitos apenas supostamente suplantados pela história, como o sanitarismo eugenista nascido em fins do séc. XIX, desembaraçado agora pela ideologia liberal. Contrapô-los aos direitos reprodutivos das mulheres é que está inadequado, porque seletivamente a “prevenção” ou “seleção eugenista” acontecerá (já vem acontecendo, como demonstra a jornalista Claudia Collucci, da FSP). Não se pode é, sequestrando-se a dignidade das pessoas com deficiência, usá-las para a manutenção da desigualdade que afeta as mulheres pobres a quem mais tarde se recusará reparar os danos.

Isso tudo, claro, ocorrerá se não nos atrevermos a refletir sobre os direitos dos outros e a considerar a crise da microcefalia uma oportunidade incomum de revisar conceitos, preconceitos e os contornos jurídicos de uma sociedade que vê as benesses da biotecnologia chegar a apenas alguns que exercem como querem sua liberdade. Aos demais, a danação dos tabus, dos serviços públicos arruinados e das declarações oficiais infelizes e desencontradas.

A deficiência. Quando ela é notícia?

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Ao contrário do que se supõe, a deficiência não é noticiada apenas em datas comemorativas ou em situações de discriminação. Isso acontece todo o dia, o ano inteiro. Conheça a seguir os resultados de pesquisa realizada pela Inclusive sobre a relação entre mídia e deficiência.

No último 15 de agosto, durante mesa redonda promovida pelo “Memorial da Inclusão: os caminhos da pessoa com deficiência” em evento paralelo ao VI Encontro Internacional de Tecnologia e Inovação para Pessoas com Deficiência, apresentamos os dados preliminares de uma pesquisada realizada pela Inclusive – Inclusão e Cidadania a respeito da relação entre os temas “deficiência” e “comunicação social”. Até a data de apresentação, havíamos publicado apenas os dados preliminares da pesquisa, além de uma exposição rápida da metodologia empregada em texto divulgado na própria Inclusive (ver aqui) e por alguns outros meios de comunicação. No texto a seguir, procuraremos apresentar a íntegra dos dados obtidos, bem como retornar brevemente aos aspectos metodológicos e de contextualização da pesquisa.

Ao longo dos últimos anos, não foram muitas as oportunidades presenciais de debater a relação entre os assuntos “deficiência” e “comunicação social”, assim como poucos foram os estudos realizados nesse sentido. Embora os meios de comunicação expressem e consolidem representações sociais, o tema deficiência ainda parece muito mais relacionado às ciências da saúde e ciências sociais do que aos temas pertinentes à comunicação social de um modo geral. A proposta central desta pesquisa é, portanto, procurar resgatar o interesse pelo cruzamento dos temas e, quem sabe, fomentar novos estudos, debates e questionamentos, isso tanto no tocante à esfera governamental, meio acadêmico, quanto aos movimentos sociais propriamente ditos. Queremos crer que estas informações possam fomentar tanto o desenvolvimento de intervenções programadas em políticas públicas quanto mobilizem novos diagnósticos e investigações.

Desde 2003, quando a ANDI – Agência de Notícias da Infância realizou, em parceria com a Fundação Banco do Brasil, um abrangente trabalho de pesquisa – intitulado Mídia e Deficiência, não há muitos registros sistematizados sobre a relação entres os assuntos, embora sem dúvida tenha sido produzido conhecimento a respeito, especialmente em projetos de pesquisa de cunho acadêmico e também em trabalhos de educação em direitos humanos dirigidos aos profissionais dos meios de comunicação, estes realizados em sua maioria por ONGs e consultorias especializadas.

No meio acadêmico, encontram-se principalmente trabalhos dirigidos à análise de discurso, mas não análises de ocorrência, como é o foco aqui. Dentre estes, destaca-se o trabalho de mestrado de Ana Carolina Soares Costa Vimieiro, defendido em 2010 na UFMG. A dissertação, intitulada “Cultura pública e aprendizado social: a trajetória dos enquadramentos sobre a temática“, recupera as práticas discursivas sobre as diferentes expressões da deficiência em três grandes veículos de mídia: a revista Veja e os jornais Folha de São Paulo e O Globo, no período entre 1969 e 2008. Pela extensão da abrangência, é possível perceber a migração de sentido, ocorrida através dos anos, do conceito político de integração e das representações sociais de caráter predominantemente assistencial, expressos pela caracterização piedosa e centrada nos aspectos médicos da deficiência, para o conceito mais contemporâneo de inclusão social. Segundo a pesquisadora, é em meados dos anos 80 que a proposta inclusiva ganha força no Brasil e, a partir de então, toma o centro das abordagens jornalísticas, ainda que com a subsistência do antigo discurso e das práticas mais disseminadas anteriormente.

Além desta pesquisa, mas ainda na perspectiva da análise do discurso, encontramos o trabalho de Ruvana de Carli que, em “Deficiente versus pessoa portadora de deficiência” , analisa as representações socioculturais nos jornais Correio do Povo e Zero Hora, ambos de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Trata-se de um trabalho que enfocou especialmente a questão terminológica, sendo que toma ainda por preferencial o termo “pessoa portadora de deficiência” ao invés do “pessoa com deficiência” consolidado principalmente após a promulgação da Convenção sobre Os Direitos da Pessoa com Deficiência – CPCD, de 2008. O trabalho em questão foi defendido e apresentado bem antes disso, no ano de 2003.

Dados quantitativos

Os dados que apresentaremos a seguir são de caráter estritamente quantitativo e foram obtidos através de uma metodologia baseada na utilização dos dados processados pela search engine Google News ©, em conteúdos do tipo “notícia” e “reportagem”, no período compreendido entre junho de 2013 e junho de 2014. Trata-se de uma abordagem que tem limitações particulares, mas que procurou valer-se dos recursos de pesquisa disponíveis empregando técnicas de pesquisa por cruzamento direto e filtragens seletivas.

As principais limitações referem-se à abrangência de indexação da própria ferramenta que, por razões de interesse particulares e preservação de direitos autorais de determinadas fontes de conteúdo, não obtém apresentar resultados totalizantes. Dessa forma, todas as ocorrências numéricas obtidas na pesquisa são dados absolutos e não resultado de amostragem, dada a conformação desigual dos resultados e a ausência de uma fixação ideal do universo de pesquisa. Isso significa dizer que nenhum dos resultados numéricos referem-se a um percentual totalizante, mas um valor único e singular de ocorrências.

No gráfico a seguir, apresentam-se as principais ocorrências temáticas em relação aos temais transversais à questão da deficiência obtidos dentro do período já mencionado.

[Gráfico de colunas verticais – temas transversais: acessibilidade (1130), cultura (1690), educação (9610), esporte (9370), legislação (1080), saúde (12450), trabalho (7452), violência (4735)]

Gráfico 1 – Temas transversais

O que se pode examinar de forma rápida é a predominância de conteúdos relacionados à saúde das pessoas com deficiência em detrimento de outros temas, como as questões de acessibilidade e legislação, por exemplo. Nesse caso, é importante considerar que o universo de publicações especializadas na área do Direito não foi selecionado para o efeito da pesquisa, o que pode explicar o pequeno enfoque jornalístico dado ao tema. Em relação aos demais, parece haver um certo equilíbrio, com exceção dos conteúdos sobre “cultura”, também de menor prevalência.

O próximo gráfico demonstra as ocorrências obtidas em cruzamento com os temas “inclusão” e “exclusão”, no qual se verifica a predominância do primeiro, o que pode traduzir um maior enfoque informacional às ações sociais de caráter efetivamente inclusivo. Essa interpretação coincide com avanços sociais obtidos principalmente na última década, quando o desejo e as políticas públicas voltadas à inclusão da pessoa com deficiência na sociedade tiveram grande desenvolvimento, mesmo que sem anular completamente situações de exclusão, verificadas em outra espécie de manifestação social, como o preconceito, a discriminação, violência, etc.

[Gráfico de colunas verticais – exclusão (618), inclusão (1480)]

Gráfico 2 – Exclusão x Inclusão

Discriminação e preconceito são os dados apresentados no gráfico a seguir.

[Gráfico de colunas verticais – discriminação (306), preconceito (210)]

Gráfico 3 – Discriminação x Preconceito

Como a discriminação é propriamente um gesto real enquanto que o preconceito um sentimento individual ou social, está claro que o registro da presença da discriminação deveria ser maior do que o observado sobre o preconceito propriamente dito. Mesmo que diversas iniciativas, campanhas e produtos de informação tenham sido produzidos no sentido de minimizar o preconceito social contra as pessoas com deficiência, seu caráter mais abstrato parece impor uma presença menor nos meios de comunicação. Isto não equivale a dizer que ele (o preconceito) não exista ou seja menos relevante, mas apenas que é menos registrado.

Os próximos dados referem-se à oferta de educação e modelos de escola.

[Gráfico de colunas verticais – escola inclusiva (4350), escola especial (2970)]

Gráfico 4 – Educação

Apesar da ainda grande presença de conteúdo relacionado às escolas especiais, as experiências educacionais inclusivas contaram com uma presença maior nas informações. É importante distinguir, neste ponto, a diferença que há entre “escola” e “educação” especial. A educação especial é uma modalidade de ensino que permanece dentro do conceito de educação inclusiva, sendo a esta transversal e tem uma conotação diferente de “escola especial”, que se refere a estabelecimentos de ensino dirigidos exclusivamente ao público de pessoas com deficiência, na qual as pessoas com deficiência não compartilham do mesmo espaço social dos demais estudantes.

O gráfico a seguir apresenta os dados referentes ao cruzamento com os termos “assistência social” e “políticas públicas”.

[Gráfico de colunas verticais – assistência social (791), políticas públicas (1970)] Gráfico 5 – Assistência social x Políticas públicas

Aqui, talvez seja interessante observar a migração de sentido relacionado aos temas. Enquanto que naquela pesquisa realizada pela ANDI em 2003 predominavam dados sobre assistência social, atualmente as informações sobre políticas públicas são as mais difundidas. Decorrência do aperfeiçoamento democrático e de políticas de Estado cada vez mais orientadas ao desejo por mais inclusão social, este resultado talvez indique uma apropriação política do tema pelas próprias pessoas com deficiência, já não tão dependentes da condução do Estado como em décadas anteriores. Evidentemente, trata-se de uma interpretação possível e não de uma conclusão taxativa.

O próximo gráfico verifica as ocorrências a respeito da CPCD e do projeto de lei do antigo Estatuto da Pessoa com Deficiência, denominado desde meados de 2014 por “Lei Brasileira da Inclusão”.

[Gráfico de colunas verticais – Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (220), Estatuto da Pessoa com Deficiência (291)]

Gráfico 6 – Legislação

Mesmo que, do ponto de vista da hierarquia legal, a CPCD ocupe posição superior ao Estatuto, aparece menos que ele, demonstrando talvez um pequeno esforço de divulgação nesse sentido, se tomados os dados em comparação. Coforme o já mencionado, nestes dados não estão consideradas as publicações especializadas em Direito, mas apenas os meios de comunicação escrita. Outra explicação reside na longa tramitação do antigo Estatuto, que já dura uma década de muita controvérsia.

Os dados apresentados no gráfico a seguir relacionam-se à terminologia utilizada na redação jornalística e informativa em relação ao assunto.

[Gráfico de colunas verticais – deficiente (11600), portador de deficiência (2143), portador de necessidades especiais (1640), pessoa com deficiência (3100)]

Gráfico 7 – Terminologia

A predominância do uso do termo “deficiente” ao preconizado pelo próprio movimento social e também pelas normais legais “pessoa com deficiência” pode demonstrar, talvez, que a correspondência realizada de forma mais apressada ainda identifique as condições de deficiência como um atributo pessoal e não como a expressão da interação da pessoa com o meio social, como o expresso na compreensão vigente incorporada pela própria CPCD, do “modelo social da deficiência”. Ainda assim, é possível observar que os números referem-se a uma crescente utilização do termo “pessoa com deficiência” em relação ao “portador de deficiência” ou ao “portador de necessidades especiais”.

Os dados a seguir, os últimos que coletamos, indicam que, ainda assim, a compreensão do modelo social da deficiência é crescente, em detrimento à interpretação do modelo médico. Para mais referências sobre os modelos de compreensão da deficiência, indicamos a leitura de “Deficiência, direitos humanos e justiça” , de autoria dos pesquisadores Débora Diniz, Lívia Barbosa e Wederson Rufino dos Santos, publicada na Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos.

[Gráfico de colunas verticais – modelo médico (1770 - 60), modelo social (2640-152)]

Gráfico 8 – Modelo social x Modelo médico

Os números entre parênteses que acompanham os principais referem-se às ocorrências coletadas em pesquisa adicional sobre a produção acadêmica recente sobre os temas. Nesse caso em  específico os números foram recuperados em um outro sistema de informações, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, mantida por bibliotecas e instituições de ensino superior de todo o país sob a coordenação do IBICT – Instituto Brasileiro  de Informação em Ciência e Tecnologia.

Conclusões

Ainda que os dados aqui apresentados sejam meramente de natureza quantitativa, queremos crer que podem significar e apresentar um determinado recorte social pertinente ao modo pelo qual a temática da deficiência vem sendo veiculada mais recentemente nos meios de comunicação. Sem nos determos exatamente no “como”, procuramos nos centrar mais no “quando”, ou seja, procuramos verificar as formas e o conteúdo pelo qual a temática vem sendo expressa pela mídia escrita. Dessa forma, procuramos destacar que a realidade social é mais determinante das informações do que por elas determinada, tendo-se em vista que a proliferação dos meios de comunicação e ascensão das redes sociais de trocas de informação operou nos últimos anos uma guinada importante a respeito da forma como as pessoas consomem, produzem e relacionem-se com a informação escrita. Um estudo específico sobre as ocorrências na perspectiva da convergência das redes sociais seria muito interessante no sentido de estabelecer-se um comparativo aos meios de comunicação convencionais.

De qualquer maneira, ainda nos parece que a repercussão da realidade social acontece de forma relevante nos meios de comunicação impresso, através dos quais as informações continuam a ser conhecidas e compartilhadas. A proliferação de fontes secundárias e o protagonismo crescente das próprias pessoas com deficiência, que tomaram para si a tarefa de construir sua própria narrativa social e relatar sua experiência, de alguma maneira relativiza em muito a repercussão daquelas fontes principais de informação, antes detidas pelas instituições, governos e etc. A forma pela qual as pessoas interagem com a informação, discutem-na e atribuem a ela maior ou menos significado seria também um capítulo ainda a ser mais bem compreendido, mas em análises qualitativas bem mais detalhadas que o levantamento de dados aqui empreendido.

Se na atualidade a credibilidade das informações perdeu um pouco o “endereço” certo e é acreditada ou desacreditada em meio à torrente de informações que circula na internet e nas redes sociais, é igualmente relevante entender o quando e o porquê de determinadas temáticas obterem as linhas e os holofotes da mídia. Entender a presença de um ou outro elemento, nesse sentido, pode ser tanto chave de interpretação como de provocação social.

Já que a sociedade parece nunca ter sido tão permeável à opinião pública quanto parecer ser atualmente, os meios de comunicação certamente refletirão as mudanças do desejo social, configurando um espaço mais aberto e democrático de produção e consumo de informações. Dessa forma, compreender a representação social e cultural das pessoas com deficiência nos meios de comunicação é elemento central tanto para a compreensão do comportamento da sociedade civil quanto da repercussão das ações institucionais, seja das esferas de governo ou dos movimentos sociais. Nessa perspectiva, nossa pesquisa procurou tão somente fazer um pequeno recorte diagnóstico. Ainda que contenha imprecisões ou limitações metodológicas, se puder fomentar um pensamento mais racional e programado sobre a realidade presente da relação entre a temática da deficiência em relação à comunicação social, assim como novas investigações sobre o tema, terá cumprido a maior parte de seus objetivos iniciais.