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PNE e educação especial: vazou água para dentro da canoa furada?

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O título acima parece pessimista? Irônico? Sarcástico? Derrotista? Diga você (pense um pouquinho antes) o que ele a si mesmo parece. A mim parece definitivamente claro que o Plano Nacional de Educação (PNE) é uma canoa furada. Eu poderia ser mais cruel e chamar de engodo, mas como acredito que algumas pessoas realmente envolvidas e comprometidas participaram desse arrastar de correntes em que se tornou sua tramitação, não irei usar esse termo. Se você acha que estou demasiado amargo, sinta-se livre. Procure outras fontes, não há profusão de fontes interessantes e sérias por aí? Vai lá.

Se você quiser continuar, já vou antecipando uma salvaguarda pessoal. Quando estou falando em pessoas comprometidas e envolvidas não estou inserindo nesse grupo nem um e nem meio sujeito desses que se chamam políticos. Nem senadores nem deputados. Nem deputados nem vereadores. Nem a presidente nem os governadores. Nem os prefeitos nem os vereadores. Nem os com mandato nem os que o buscarão no próximo ano.

Dito isto, posso mostrar alguns argumentos que o caro leitor poderá ou não refutar. Somos adultos, livres e desimpedidos. Correto? Então não há o que temer.

Primeiramente devo dizer que não gostaria de analisar a situação atual partindo do próprio PNE. Pelo menos em relação à educação especial, o arrastar de correntes ainda é mais antigo, remonta a outros momentos, outras situações. É claro que, se tivéssemos a capacidade de aprender com os erros, não chegaríamos aqui dessa maneira. Todavia insistir nos erros parece um destino fatal que ronda a sociedade brasileira. Toda ela. A sociedade, essa quase abstração. Penso que isso ocorre ainda mais quando suas condições sociais estão indelevelmente marcadas pelo imobilismo social (a despeito ou a exemplo das políticas afirmativas) e a educação pública – foco central do PNE – mantém seu locus social inalterado.

Desta forma, embora hoje se discutam filigranas para um plano que deveria apontar para indicadores concretos e realidades “sensoriáveis”, o embate repetitivo volta a ser, no caso das pessoas com deficiência, o mesmo de sempre. Procura-se definir num plano de metas concretas (onde não deveriam constar verbos no infinitivo, mas quantidades) o que é cabível e até legal (isso incompreensivelmente) em relação à oferta de educação especial e possibilidades de escolarização. Parece até que há legisladores convencidos de mudar os ditames constitucionais com o plano, o que é um devaneio jurídico. O que o plano é, de fato, é um retrato de um projeto ou, como quero metaforizar, de uma canoa. Acontece que parece que a tal abstração chamada sociedade, governos e movimentos sociais parecem não querer entender o que são, onde estão e porque existem os furos no casco dessa canoa, que a impede de ir adiante e torna o debate claudicante, arrastado e às vezes até modorrento.

A despeito das pressões legítimas de todos os setores sociais envolvidos (falo nas pressões a favor da educação inclusiva e nas pressões a favor da escola especial), do crescente interesse da mídia pelo assunto e da premência governamental, a impressão que eu tenho é de que a canoa não vai partir nesse ano e talvez nem no próximo (imagina na Copa) ou, pior, de que possa partir para chegar a lugar nenhum, porque seu alicerce prometido – os investimentos do pré-sal – também já se mostrou bastante comprometido, conforme visto no caso do leilão do campo de Libra.

Então, o que há de acontecer? Bem, como os senadores tomaram para si a tarefa de reescrever e deturpar o discutido pela sociedade, deve acontecer o que sempre acontece quando tais pessoas decidem a coisa pública no Brasil. Alguns interesses serão acomodados, algumas aberrações inconstitucionais serão propostas e vamos assim, tocando a canoa.

Como se trata de um debate que veio a público através de inúmeros veículos, como o site do Luis Nassif , o blog do Sakamoto e em outros lugares, poucas vezes se pode ver tão claramente o que o público (não vamos chamar isso de sociedade) pensa a respeito, já que seus comentários lotaram os sites e suas matérias. Embora se saiba hoje que “comentador de internet” é até profissão, penso que há muito que depreender das apreensões populares registradas nestes comentários, mantido algum fitro, talvez o da mesma espécie que devemos ter em relação à mídia governamental e para-governamental, por exemplo, assim como toda a mídia caso você pense em contrário (vai sobrar alguém?).

Mas o que se pode ler sobre inclusão e sobre escola especial nesses comentários são ambos relatos concomitantemente assustadores e alentadores. Aqui penso que cada um deve tornar-se sensível ao que lhe parece admissível ou não. Não serei eu a declarar um édito dessa importância. Minha intenção é apenas tentar reendereçar aos cidadãos, às pessoas comuns, a atenção de formadores de opinião e até mesmo dos políticos (embora eu acredite que eles estão lixando-se e preocupados com outro tipo de coisa, haja vista sua total ausência pública).

Eu não sei quanto às demais pessoas, mas eu sinto-me verdadeiramente agredido tanto pela violência quanto pela indiferença institucional em relação às pessoas com deficiência, principalmente as que dependem dos serviços públicos ou dos serviços assistenciais. Preocupa-me também a persistência do modelo assistencial, é claro que sim, mas me preocupa mais ainda a permanência de condições políticas e sociais que favoreçam isso. É preciso ter consciência de que o modelo assistencial é duradouro também porque parcelas significativas da população vivem em situações de extrema carência e o sistema educacional público não consegue (quero muito que um dia consiga) aplacar suas necessidades, que são muitas vezes mais assistenciais que propriamente educacionais.

Tanto quanto procuro fazer a leitura dos fatos políticos, até porque recebemos muitos comentários aqui na Inclusive, leio com muita atenção tanto as críticas das pessoas comuns, das famílias, às escolas especiais quanto às escolas regulares. Leio com mais atenção ainda seus relatos pessoais, que dizem respeito às situações reais da vida das pessoas. Como não existe um filtro que indique onde há ficção ou realidade, afligem-me seus temores, indigno-me com situações violentas e, sobretudo, com a indiferença institucional, parta de onde partir. Como pai de uma criança com deficiência, sinto-me muitas vezes emocionalmente espancado.

Sei que é ingênuo querer que políticos sintam-se como eu ou que gestores acostumados a cadeiras almofadadas embrenhem-se com suas ideias na vida real, lá onde as pessoas já não esperam muito da educação, ou seja, em boa parte das escolas públicas deste país. Quando eu penso na necessidade de um amplo diagnóstico social e mirar estrategicamente outros alvos no sentido de promover o acesso a uma educação inclusiva com dignidade, quero também crer que é para essas pessoas que relutam diante aos portões de escolas sucateadas (que muitas vezes elas mesmas frequentaram e conhecem melhor que ninguém) que devemos mirar.

Quero crer ainda que devemos exigir mais que um PNE, ou uma meta sua, para lhes garantir um atendimento educacional digno, mas que esse movimento social seja permeado pelas camadas populares que ele visa atingir, com todas as suas características sociais e culturais, tão diversas. Que ele angarie tanto autocrítica quanto a bem conhecida autoreferência. Que se manifestem às claras e coloquem-se disponíveis ao exame social. Quanto a mirar o poder e políticos comprometidos com sua vida eleitoral, a esperança de que um gesto vindouro de bondade extrema no qual eles percebam as necessidades das pessoas com deficiência pobres e comovam-se (ou mais difícil ainda, dêem sua vida política por isso), esse tipo de esperança social tem uma história nefasta no Brasil, como atestam outras movimentos sociais (e até raciais) e segmentos minoritários.

Se é preciso estratégia tanto para melhorar este plano e, como disse antes, felizmente temos muitas pessoas verdadeiramente interessadas trabalhando nesse sentido, quanto para o próximo, talvez seja fundamental parar de olhar tanto a canoa e conhecer melhor seus buracos. Pode-se chamar isso, inclusive, de diagnóstico. Reflexão só parece já não bastar. Ainda que às vezes uma palavra nos demova, como estamos falando de pessoas, talvez devamos procurar exercitar a empatia que temos (se é que temos) e considerar que mesmo as ideias que para o nosso tempo social estejam ultrapassadas – até porque as condições econômicas permitem acesso seletivo a bens sociais e capital cultural – para outros podem simplesmente não estar. Voltando à metáfora da canoa, eu quero pensar que talvez seja a hora de considerarmos seriamente as preocupações de seus ocupantes, isso mesmo se vamos de barco oficial ou barco particular.

Educação especial, uma miragem no Plano Nacional de Educação?

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A semana que começa deve recolocar no cenário político, através da expectativa pela votação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado Federal do PNE (Plano Nacional de Educação), uma situação recorrente no que diz respeito ao financiamento da oferta de educação especial no Brasil. Trata-se da polêmica Meta 4, que organiza o plano sobre a distribuição de verbas do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

A polêmica, que envolveu entidades filantrópicas associadas ao modelo de escolarização especial e movimentos em defesa da educação inclusiva irrestrita, resume-se para este caso na disputa em torno a presença ou não da expressão “preferencialmente na rede regular de ensino”, o que garantiria – ou não – a continuidade do financiamento público da escolarização no ensino especial, contrariando orientação do direito constitucional vigente, principalmente após a adoção da CPCD (Convenção sobre Os Direitos da Pessoa com Deficiência) que orienta os países a adotar sistemas inclusivos em todos os níveis, com a educação especial servindo de modalidade complementar e transversal.

Mas afinal, o que significa dizer “preferencialmente”? Preferencialmente quando? Preferencialmente por quê? Talvez aí esteja o erro fundamental, a miopia verdadeira. Não se trata de simplesmente suprimir o “preferencialmente”, mas de explicar em detalhe as condições para que um aluno não possa frequentar a escola regular. O cruel de manter o “preferencialmente” assim, como um termo vago, é que a culpa, no caso, recai sempre sobre o elo fraco da corrente, ou seja, o cidadão: o aluno e sua família, e se obtêm vilões e heróis automaticamente.

O que o executivo deveria assumir, mas prefere deixar em suspenso, é que muitas vezes não tem como ofertar uma educação com dignidade. Não digo que se precise ver com os próprios olhos a situação de muitas escolas, fotografias já são suficientes. Relatos são de fazer c(h)orar. E não é porque lhe falte recursos, mas na perspectiva do pacto social vigente, ele (o governo) prefere simplesmente lavar as mãos e manter a roubalheira que se faz com os recursos públicos. Inclusive os do FUNDEB, que sabidamente são foco de intensa corrupção.

Suprimir o “preferencialmente” para agradar a quem não está na escola pública sem enfrentar o problema em si mesmo, que é a oferta de uma educação pública de qualidade para todos, não é nem miopia, é uma política minuciosamente equivocada que envolve sistemáticos desrespeitos, a começar pelo salário dos professores, passando por escolas esfrangalhadas, salas de aula lotadas, serviços especializados sobrecarregados (porque os problemas educacionais atingem a muito mais pessoas que as pessoas com deficiência), carência de equipamentos e, principalmente, o direito – este sim inalienável – dos alunos em ter na escola pública uma educação que não seja meramente aquela que nos envergonha quando a UNESCO e outros organismos multilaterais vêm olhar de perto, já que a tal “sociedade” prefere olhar bem de longe os próprios problemas, ou tratá-los como se fossem alheios.

Então eu penso que o preferencialmente deveria ser mais bem detalhado e que se o usasse simplesmente quando o Estado não tivesse nada melhor para substituir as escolas especiais e que, nesse ínterim, o Ministério Público se ocupasse em punir e exigir do executivo até que ele se mostrasse em condições de oferecer o que suas leis constitucionais ordenam, e o Judiciário prendesse os políticos e gestores comprometidos exclusivamente com sua vida eleitoral e sua corrupção ordinária, e a cadeia os mantivesse presos lá, a fim de evitar danos sociais repetitivos.

O que eu quero dizer é que há bem mais que um termo impreciso atrapalhando a inclusão de alunos com deficiência na escola regular pública. Preferencialmente, a sociedade deveria entrar em consenso sobre essas coisas mais do que por uma terminologia formal. Eu fico me perguntando é se é digno tratar dos interesses públicos tão restritamente ou se não estamos fazendo disso um tipo de miragem com a qual nos compadecemos do centro do oásis da nossa vida privada.

Já disse em outra oportunidade e volto a dizer: se enfrentar o “preferencial” no campo político é duro, talvez seja mais oportuno criar debates de outra ordem. Penso que a construção dos indicadores de qualidade previstos no item 13 da Meta (definir, no segundo ano de vigência deste PNE, indicadores de qualidade, política de avaliação e supervisão para o funcionamento de instituições públicas e privadas que prestam atendimento a alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação) já está mais do que atrasada no âmbito da sociedade civil, até para que se possam contrabalançar os apelos assistenciais com dados mais concretos que a simples contabilização de matrículas.

Do ponto de vista estratégico, mesmo com o aporte legal da CPCD, o debate está sustentado pelos argumentos – e pela realidade – de sempre, onde se sabe bem como as coisas terminam, principalmente quando os atores que a decidem são preferencialmente os atores políticos, através de suas emendas à legislação e bastidores costumeiros. Se a sociedade e seus representantes se ocupassem da qualidade da educação pública e dos direitos dos outros com a mesma intensidade que defendem os próprios direitos, esse “preferencialmente” não significaria absolutamente nada. Além disso, as pessoas, que deveriam ter o direito a sempre deixar seus filhos na escola com toda a tranquilidade do mundo, também não precisariam se preocupar com isso. Nada mais justo, nada mais complicado que isso…