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O destino de Sepé Tiarajú

Neste dia (ou amanhã), há 267 anos, caía morto Sepé Tiarajú. Ao que parece, no que hoje é o município de São Gabriel, no interior do Rio Grande do Sul.

Gravura de Edgar Koetz (1914-1969) para o livro “Tiaraju”, de Manoelito de Ornellas. Editora Globo, 1945.

Sepé é uma figura sem figura, ou seja, não temos ideia de como seria a sua fisionomia nem quais seriam suas características físicas. A iconografia que se dedica a ele, todavia, é sempre muito generosa. Há representações bastante heroicas e sua imagem foi produzida em esculturas, pinturas, desenhos, HQs, etc. O fenótipo quase nunca remete propriamente ao dos guaranis.

Sepé é um dos poucos santos populares do Rio Grande do Sul e desde 2018 se discute no Vaticano a sua canonização. Apesar disso, (pelo menos eu) não tenho conhecimento de ao menos uma oração ou prece consagrada nessa idolatria. Há os versos que João Simões Lopes Neto recompilou da voz popular, mas também é dito que os versos teriam sido criação sua. Não se pode saber. O passado de Sepé é feito em muita névoa e polêmica, como a que mobilizou e dividiu a intelectualidade rio-grandense, nos anos 50, em torno de homenagem proposta por um militar ao então governador Ildo Meneghetti.

De fonte apócrifa, certa vez ouvi que Sepé não seria exatamente um guarani, mas uma criança filha de mãe guarani e pai ocidental. O insólito da informação é que este pai teria nome e sobrenome muito conhecidos: Jerônimo de Ornellas. De acordo com a fonte, o fundador de Porto Alegre manteria relações comerciais com os povos missioneiros e, dessas idas e vindas, teria nascido a criança que ficou ao encargo da criação dos jesuítas.

Eu tenho desconfiança disso e não me custa muito deduzir que possa ser, também, uma busca por apropriação de um dos poucos heróis indígenas registrados na Guerra Guaranítica. Mas também, como não se pode exumar o corpo e examinar o dna de Sepé, não estou em condições de dizer que seja uma história impossível. Na minha opinião, é duvidosa, dado que os relatos militares dos encontros com Sepé não parecem indicar um fenótipo branco. Os relatos indicam, por outro lado, um indivíduo enérgico e orgulhoso de pertencer à sua nação guarani.

Mas de Sepé tudo parece ser mesmo assim. Até mesmo a data de sua morte e sua circunstância são problemáticas. Teria morrido por lanças ou por balaços, em São Gabriel ou teria sido transladado a Montevideo para mais torturas. De qualquer modo, a morte de Sepé tem o estatuto do épico e poetas e escritores (e também historiadores) a tem pintado com mais ou menos dramaticidade e verossimilhança.

Seja como for, dali a três dias de sua morte, aconteceria uma chacina de proporções absurdas, na qual milhares de guaranis foram massacrados pela conjugação dos exércitos espanhóis e portugueses, decididos a implementar a qualquer custo o Tratado de Madri, de 1750.

A repercussão do tratado haveria de levar ao morticínio de praticamente todas as etnias originárias presentes na região do pampa. E, quanto mais “infiéis”, mais barbaramente foram massacradas. Isso implica que não havia mais espaço para um modo de vida intermediário para os indígenas: ou agauchavam-se ou eram mortos para dar lugar à ocupação de seus territórios e colonização do sul.

Em 100 anos, ou seja, até 1850, no Rio Grande do Sul é muito incerto dizer se havia ou não ainda a presença dos “infiéis”: charruas, guenoas, minuanes, yaros, etc. Mais certo dizer que havia seus descendentes, mas já num novo modo de vida e organização política.

Antes da Guerra Guaranítica, parece certo dizer que muitas dessas etnias miscigenaram-se. Uniões entre fieis reduzidos e infiéis nômades parecem ter acontecido e muito tanto no Uruguai quanto no que hoje é território brasileiro.

Já o vizinho Uruguai, desde a matança de Salsipuedes, diz-se um país “sem índios” e até hoje é um dos raros países que se recusa a assinar a Convenção 169 da OIT sobre o direito dos povos indígenas, o outro é a Guiana Francesa.

Em que pese a reinvindicação de 5% da população em reconhecer antepassados indígenas, trava-se no país uma disputa política bastante dramática entre descendentes e governos. Inclusive o ex-presidente Pepe Mujica parece ter confrontado uma importante liderança indígena, a antrópologa Mónica Michelena Díaz, para que desistissem de insistir no “mito charrua”. Estranhamente, a posição é a mesma do ex-presidente Julio Maria Sanguinetti que, além de negar o massacre de Salsipuedes, prefere classificar o movimento reivindicatório por “charruísmo “.

Assim como Sanguinetti e Mujica, muitos intelectuais e políticos mostram-se reticentes em relação às reivindicações presentes. Não houvesse comprovações documentadas de próprio punho de Rivera, até seria possível tomar em consideração tais alegações, mas o que isso mostra, afinal, é que a insistência no país sem índios permanece e se encontra muito viva entre os vizinhos uruguaios. Por outro lado, a busca por outras narrativas vem acontecendo no sentido de repolitizar o assunto dado por ali como encerrado desde 1831.

Na minha opinião, é absurdo negar a quem quer que seja a reivindicação de suas origens e, se na cultura ameríndia a intersubjetividade costuma alcançar inclusive outras espécies da natureza, que se dirá de um interdito historicista como este? Violência simbólica livremente transposta para o campo político.

Quanto à memória e imagem de Sepé eu temo que nunca saberemos ao certo quem foi, mas me parece um caso de santo muito atípico, com uma iconografia tardia e imprecisa. A mim, por exemplo, não consta que Sepé seja invocado como credo por fiéis. Sem oração nem figura certa, resta um nome que, no contraste pela simplicidade, significa tanto ainda para a população do RS. Significa sobretudo um signo vivo para as populações guaranis que precisam daquela mesma coragem para enfrentar as dificuldades de estar aqui (e com todo o direito a estar), entre nós, quando ainda custamos a aceitar e respeitar sua presença.

A Pedra do Segredo

Numa das estreitas furnas que se podem ver nessa rocha gigantesca, diz uma lenda corrente na região de Caçapava do Sul ser o lugar onde foram depositados os ossos do cacique guarani José Tiaraju, o Sepé. Junto aos ossos, haveria também incertos tesouros em prata e ouro dos jesuítas que muitas pessoas se animam ainda a procurar. Até hoje, nem uma pataca parece ter sido efetivamente encontrada.

O lugar fica nas bordas do escudo rio-grandense, na Serra de Santa Bárbara, não muito distante do centro da cidade de Caçapava. Apesar da aparência monolítica, na verdade trata-se de um imenso amontoado de pedras gigantescas desabadas umas sobre as outras desde que não havia vida no planeta. É o que explica as grutas e cavernas que atravessam de lado a lado o monte de pedras gigantescas. Nas frestas entre as pedras sobraram espaços de circulação e escoamento e assim se formaram as furnas.

Chama-se Caverna da Escuridão o lugar no qual o enterro de Sepé supostamente possa ter acontecido. Lugar assombrado, dizem, onde as fogueiras se extinguem e fantasmas dos indígenas afastam os visitantes mais atrevidos.

Eu nunca estive lá. Conheço a história de ouvir falar e ler a respeito. Como é uma lenda, também tenho minhas suposições.

O que eu mais fico pensando é como se poderia ter certeza mesmo que o Sepé supostamente enterrado ali se trate do alferes guarani.

“Sepé” é um nome que muitos caciques adotaram entre os guaranis reduzidos e também entre as nações infiéis. É um termo, aliás, originado na nação charrua e não na tupi, das pouco mais de 70 palavras que resistiram do idioma original dos indígenas que povoavam os campos do Uruguai e o sudoeste do Rio Grande do Sul.

Na língua dos charruas, significa o correspondente a “sábio”. É o que diz o Códice Vilardebó, que sistematiza a sua língua e foi compilado em torno de 1840 por um dos fundadores da Biblioteca Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico do Uruguai.

Não que seja improvável que o alferes de São Miguel tenha andado por aquelas bandas que integraram antes da Cisplatina a maior de suas vacarias, chegando ao limite do Forte de Santa Tecla, em Bagé. A cavalo e com pouca carga, uma viagem de duas luas bastava para ir até os limites dos territórios em domínio dos jesuítas e guardados pelo exército de guaranis. Nos campos de Bagé, há registro de sua passagem, inclusive do diálogo com os demarcadores dos dois países ibéricos, logo do tratado de Madri que deu origem à guerra guaranítica.

Não muitos anos depois que Tiaraju morreu em combate, em 1756, a nação charrua do sul foi espremida em direção ao massacre de Salsipuedes, em 1831. Salvaram-se cerca de 70 indígenas, fora os que foram foram levados a Paris para estudo e exibição. Em plena campanha de independência, os charruas foram declarados inimigos públicos dos novos governantes e encontraram guarida nos acampamentos dos republicanos farroupilhas. O último cacique charrua chamava-se Polidoro e adotou (mais certo que adotaram para ele) o nome de Sepé, decerto uma homenagem a sua liderança. Nas escaramuças dos farrapos, viajaram o Rio Grande inteiro, inclusive Caçapava do Sul.

Este segundo Sepé teria vivido até o ano de 1864 e morrido em Tacuarembó, no Uruguai. Antes disso, viveu no Brasil e assistiu os remanescentes de seu povo morrerem um a um de varíola, até restarem os três últimos do seu toldo, ele e seus filhos, que não deixaram descendentes. Diziam ser o mais destemido dos charruas e antes que o passassem a cuchillo safou-se sempre com um sexto sentido inato para a guerra. Um guerreiro como poucos. Como não há um livro ou filme sobre uma pessoa assim até hoje?

Antes da colonização, como a maioria das cidades da fronteira, Caçapava do Sul foi um acampamento dos indígenas. Eles escolhiam para viver lugares estratégicos, de passagem, com boas aguadas e fartura de caça e pesca. Mas à chegada dos colonos, eram espantados para o interior dos campos, tornando-se ainda mais nômades e dependentes do roubo dos animais que agora povoavam a região. Um povo que vivera pelo menos 5.000 anos numa grande nação estável, em menos de 200 desapareceu completamente e de uma forma especialmente cruel: pelas mãos de um antigo amigo militar uruguaio a quem haviam servido, mais tarde vingado, dizem, por este Sepé menos conhecido. O militar era sobrinho do presidente Fructuoso Rivera.

Daí que ser um povo sem paradeiro nunca foi uma escolha dos indígenas, mas uma contingência. Que andaram entre as margens da Lagoa Mirim e do Rio da Prata é sabido. Seus vestígios são escassos como precária era sua tecnologia. Para guerrear, nunca usaram as armas dos homens brancos. Seus túmulos eram de pedra e tinham nos minerais sua fonte de setas e ferramentas. Quando morriam, matavam seus cavalos, que cobriam seus túmulos. As mulheres amputavam um dedo da mão a cada membro que perdiam da família. Há relatos militares de mulheres e anciãs encontradas sem nem um dedo nas mãos… No luto, ao invés de pranteá-los, gritavam seus mortos por uma lua. Depois, seguiam viagem.

Se há um Sepé que deveria ser enterrado ali dentro desse magnífico geomonumento é este segundo, mas é provável que não haja vestígio de nem um deles. O nome do primeiro ter batizado o segundo deve ser o bastante para servir de amostra do que foi o vulto de Tiaraju, e seu poder.

É triste que se saiba tão pouco a respeito dos povos originários, os chamados índios-vagos: aqueles sempre arredios e esquivos do convívio com o homem branco. Certamente intuição não lhes faltava, muito menos disposição para enfrentar a luta pela sobrevivência e a morte. Os azares da guerra.

O mais é como o nome da imensa rocha. É segredo.