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Ninguém mais sabe de minhas coisas

cadeado

Blanca Varela (1926 – 2009)
trad. do espanhol

1
você que é capaz de desaparecer
de ser atormentado pelo fogo luminoso
pelo fogo opaco, pelo fogo covarde, pelo divino

a você
santo e fantasma a cada hora
mil vezes um sempre recém-nascido morto

a você que pode girar a chave
e inventar o sol num lugar vazio

a você afogado num mar de semelhanças
um náufrago a cada manhã
escravo e dono de sapatos ocasionais
de alguns livros
talvez o pai ou o filho
guardião de jardins ressecados, pouso para aves migratórias

a você
observador da tarde
leitor incansável dos relógios do sonho
da fadiga, do tédio dos cônjuges
a ninguém senão a você

2
(a qualquer hora do dia)

em uma fogueira em cinzas
essa mulher sacrificada
fechava os olhos e sonegava a felicidade de sua agonia

3

e um cão, uma gota de chuva, um passeio em família
como quando numa pintura entrava para sempre na memória
um pé torcido e outro e outro e um passo que faz ressoar
sempre a mesma altura da escuridão
a sorte pode ser esta neblina escura, o neon das cinco da tarde
a mais esplendorosa verdade
assim quase sem ver encontrando, generosa como ninguém, a miséria
cruzando em muros invisíveis
mãos tão pálidas jamais existiram, nunca em outras mãos
nem tanto calor em tanto frio
nem olhos tão cheios de outros olhos contemplaram a tarde
e frente ao mar escuro as ruínas e imensos círculos de bruma
cercando-nos
e a língua rubra, o cão, a mosca e a tarde rainha dos desnudos
braços doloridos em seu balcão de cinzas

4
(noite e desalento)

uma pitada da cruel canção de quem não vê
a noite que começa a respirar
tudo se afastando
tudo se perdendo
a prisão, o cinema, a amarela lua de farmácia
às oito, às nove, às dez
convertido em um fantasma cruel, agora você beija a mil mulheres
acaricia seus seios para estranhos
me causa asco
e esta náusea (passa a ser) o melhor de minha existência

5
(conversas insidiosas)

alguém disse o seu nome
– é um livro interessante e fala de um herói
decerto anônimo –
há uma estrela azul no fundo do meu copo
como uma estrela inesgotável
deve brilhar em seus olhos a cada vez que os vejo
como você deve sorrir para os outros
você cordeiro disfarçado de cordeiro
você um lobo que anda sozinho
você barbaramente um menino
– os pensamentos solenes são senhores
que não ocultam o perfume da carne –
nós haveremos de transpirar nos museus, como animais
submissos em suas savanas e ravinas de veludo
– Picasso por exemplo…

6
(tell me the truth)

diga-me você
este assombro durará?
esta letra em carne viva
círculo irrefletido de dor que se leva na boca
este desastre diário
este beco dourado e malcheiroso sem começo ou fim
este mercado onde a morte corrompe as esquinas
com prata roubada e estrelas estéreis?

7
o sorriso solar, o envenenado sorriso solar
fia sua impossível claridade mais uma vez
você sente a divina cusparada sobre a fera
o fedor acre da rosa, o meu coração sobre o seu?
mais tarde será tarde quando a solidão criar o melhor
e seus lábios novamente, seus olhos, as ruínas das suas carícias
esse mar em meu peito
a solidão – estrela das minhas noites –
ninguém mais sabe de minhas coisas

8
(pobres matemáticas)

quando nada mais reste de você e de mim
haverá água e sol
e um dia em que você abra as portas mais secretas
as mais escuras e mais tristes
e janelas com vida e olhos imensos
despertos sobre a felicidade
não terá sido à toa que nós
apenas temos pensado no que os outros fariam
porque alguém tem que pensar na vida

A poison tree

pois

William Blake
trad. do inglês

Uma árvore de veneno

Tenho raiva de meu amigo:
Já tive maiores comigo
E só por dizer-lhe, isso passou.
Mas, dessa vez, aumentou.

Para regá-la, usei dos temores
Diuturnos. De lágrimas e de horrores.
E a acordei com largos sorrisos,
todos nutridos em falsos juízos.

Ela cresceu volumosa,
Noite e dia, uma maçã brilhosa.
E ele, estando eu a colher,
Soube de quem ela deveria ser.

E meu inimigo, sem saber que o via,
Com sua cobiça a colhia.
De manhã, contente eu o vi
Jazendo a seu pé, como previ.

A fronteira desfeita por Sérgio Faraco

Publicado na edição 1.361 (jul./ago 2015) do Suplemento Literário MG, este artigo aborda o trabalho de Sérgio Faraco como tradutor dos principais ficcionistas uruguaios do séc. XX. Para quem queira conhecer um pouco mais sobre o que o Faraco fez ao trazer do lado de lá da fronteira com los orientales ficcionistas como Mario Arregui, Juan José Morosoli, Juan Carlos Onetti, Eduardo Galeano e tantos outros. E o que possivelmente esse contato fez com ele próprio.