Você nunca ouviu um poeta queixando-se que perdeu as palavras. Isso quando acontece ao poeta lhe põe em silêncio. O seu ânimo recolhe-se seguramente de um modo que não se diga que ele até ontem escrevia como se pudesse impulsionar desde si uma máquina geradora de sentidos. Ele está quieto e pensa que a máquina quebrou-se e talvez nunca mais volte a engrenar. E ao pensar nisso ele (ou ela, tanto faz) vê o desfile de palavras a comando dos outros perguntando-se onde nele foi parar esse fenômeno que lhe fazia adiar compromissos, atrasar deveres e que às vezes o arrastava como um animal é subjugado por uma força superior que, aparentemente sem razão nenhuma, agora esmaga seus olhos no nada, de modo que nada se vislumbre para ele ou a partir dele. O poeta tomando um café e nada lhe ocorre a não ser a noção de que talvez nunca mais volte a ser um poeta. Ele está cansado, sim, da semana, e pensa em tomar banho, lavar-se. Talvez assim remova-se nele o musgo da mudez e da fadiga mental que o castiga da mesma forma que antes o fazia sentir-se livre pela palavra, liberto por ela dos sentimentos inacreditavelmente expostos em versos, como sacrifícios. A palavra o libertava e ele tinha um pacto secreto com elas, que lhe cediam o direito de criar metáforas mais esclarecedoras (pelo menos para ele mesmo) que a ciência exata. O poeta cheio de competências, o ser absoluto de si, as suas habilidades como talheres estranhamente preparados para um banquete que já não será servido e essa consciência consumindo a sua fome, legando em seu lugar a inapetência do símbolo e do signo, a incomunicabilidade que lhe dá certeza que qualquer palavra sua será proferida no vácuo e de lá despencará para uma margem desconhecida do universo onde vivem palavras desconexas, versos inacabados, vírgulas, apóstrofos, reticências. Olhando para isso, o poeta não enxerga direito o que se dá no mundo e não entende o que aos outros ainda parece tão claro. Confunde-se com o que lhe parece ilusão, mas é real. Distingue mal entre os mundos, o seu e o dos outros. Isso me aconteceu mesmo? Ele pensa… Ou foi a outra pessoa? Ele pensa também como poderia, nesse caso, dizer o que fosse para estabelecer um nexo mínimo, uma coerência mínima, entre o mundo interno e o externo. O poeta que perdeu suas palavras pensa que poderia, nos seus melhores dias, ter suspenso no céu uma nova constelação, ter arranjado novas formas da natureza, ter levado sossego ao desassogado, conforto aos desesperados, ter feito alguma coisa consequente e não se desperdiçado em futilidades e compromissos para consigo mesmo. Com suas palavras deveria ter realizado uma obra factível e não uma coleção de desacontecimentos. O poeta pisca os olhos e olha para tão longe quanto consegue e de pronto a distância se resume. Tudo é próximo, rente, e se esfrega nele. Ele coça os olhos e a nova noite não lhe dá esperanças, mas a contabilidade do passado aumentando como uma cadeia de montanhas se acotovela noutra. E assim se formam o tempo e a memória. A consciência de que é dispensável já não o assombra, muito mais ser considerado. O poeta pensa em fumar e lembra que já não fuma. Ele escreveria com um cigarro, pensa. Pensa que o fumo lhe deu (em intensidade e gozo) mais poemas que as palavras, e de bom grado. Estranho que não é o fumo que lhe tenta, mas elas. Malditas… Onde o deixei?





