Porque nunca me disseste, tive eu mesmo de descobrir: não há nada dentro de ti e o que te anima somos nós, a carne em que te aferras, memórias que roubas e o passado que nos jogas aos pés a cada instante, vencidas as promessas fúteis, de tua boca, tão mal cumpridas…
Não tentes me enganar. Eu sei que a minha melhor figura não guardaste nem conheceste. E se eu quero te contar, nunca queres saber, como se eu fosse um fruto estranho, só espinhos, em quem não ousarias tocar.
Mas o que eu sou não importa. Quem importa para ti? Com um sorriso intransigente, abres tua imensa boca e nos devoras por inteiro. Para ti, somos carne, os músculos de quem te abriu as veias. Mas também não te importa quem fôramos. E quem te abriu os olhos não viu nada, só um espelho às avessas nos confundindo em espírito e vida, em vida e espírito e, afinal, em morte.
Bastava entender tua voz e inércia. Bastava mais aceitar que compreender. Bastava que te amasse desse amor servil, mas aí encontramos um problema: não dou para isso. Em troca, redobras tuas punições. Não permites que eu descanse. Adias o outono e decretas um tempo de paz fantasiosa. Na verdade, o tempo pouco te deteriora, se comparado a nós.
Nos domingos pela manhã, encontro a mesma velha mulher passando a vassoura no piso. A noite não a interessa, só mesmo aquele momento da aurora em que as esperanças perduram. Ela passa a vassoura outra vez e só então se descortina o dia.
Ela olha em minha direção e não reconhece quem sou (eu também não…). Aqui mudei e fui mudado, mas não guardo nada. Dei tudo o que sou. Que me impeça o verão interminável, eu não aceito. De ti, nada, Porto Alegre… De qualquer modo, não vais te saciar comigo. Um dia, se me procures, desço à porta, toco teu ombro, e eu mesmo digo que não estou.
Os primeiros meses de 2023 parecem ter abreviado muito a distância entre as fronteiras da normalidade literária e do apocalipse autoral antevisto ainda na década de 60 nos textos clássicos de Michel Foucault (O que é um autor, 1968) e Roland Barthes (A morte do autor, 1967). Mas não provém de um estudioso ou intelectual público impactante o estreitamento em questão; de outro modo, veio “ao natural”, como consequência do incremento galopante do uso dos recursos de inteligência artificial no processo de criação literária.
Muito embora na literatura os estudos das interações homem-máquina venham sendo estudados há algum tempo (o estudo de John Searle sobre “o quarto chinês” é de 1980), são as notícias do mundo geek, por outro lado, que têm revelado a dimensão da colisão (ou confluência) em curso.
Apenas nos últimos meses, com a disseminação viral dos aplicativos portáteis do chatbot desenvolvido pela OpenAI, o popularíssimo ChatGPT, parece mesmo que se conseguiu finalmente sentir o tamanho do estrago. Sim, verdade que a força de expressão traz embutido certo juízo de valor, mas é disso mesmo que se trata, ou como se poderia reagir à disseminação de manchetes que alardeiam a ferramenta como o “ajudante dos escritores”, responsável pela “criação de mais de 200 títulos”, “aceleração criativa” e co-autora em pelo menos meia dúzia de artigos destinados à literatura científica? Mas em que consiste, afinal, o “estrago” e o que se pode saber a seu respeito? É o que desejamos saber e passaremos imediatamente a palavra ao próprio ChatGPT.
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[Pergunta] O ChatGPT pode ser considerado autor de um texto? [Pergunta]
[Resposta] Como modelo de linguagem, o ChatGPT é uma ferramenta criada para gerar textos baseados em padrões de linguagem identificados em grandes conjuntos de dados. Portanto, embora possa produzir textos que parecem ser escritos por um autor humano, o ChatGPT não é um autor no sentido tradicional da palavra.
O ChatGPT não tem uma identidade pessoal ou criativa, nem é capaz de ter suas próprias ideias, opiniões ou perspectivas. Em vez disso, ele é programado para gerar texto com base em padrões de linguagem encontrados em um grande conjunto de dados de treinamento, usando algoritmos matemáticos para gerar continuamente novas sequências de palavras que se encaixam nesses padrões.
Portanto, embora o ChatGPT possa ser uma ferramenta útil para gerar texto, é importante lembrar que o texto que ele produz é gerado a partir de um conjunto preexistente de dados e não reflete as ideias ou opiniões de um autor humano. [Resposta]
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Em que pese qualquer precaução ou preconceito, deve-se admitir a competência do “réu” em defender-se. É apenas uma suspeita, mas é muito difícil imaginar que os próprios Roland Barthes e Michel Foucault discordariam dessa formulação. É praticamente o mesmo, mas mais perfeito se ele dissesse como Barthes em A morte do autor: “a escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem se perder toda identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve”.
Explica-se isso de uma forma muito simples: é certo que no repertório prévio do chatbot incluem-se as obras de Barthes, Foucault, Bakhtin e mais uma infinidade de outras teorias e proposições argumentativas.
Se algo é certo sobre a inteligência artificial, é que sua capacidade de aprendizagem não tem o mesmo fastio e enfaro da concorrência humana. Desse modo, ela não apenas devora conhecimento como aprende a fazer correlações lógicas com eficiência e velocidade assombrosas. Talvez se possa apontar apenas que, ao contrário das pessoas, sua limitação maior seja mais moral do que cognitiva. Se o ChatGPT atua tomando em conta o idealismo ou o consequencialismo é difícil saber, mais provável que ele recombine as instruções visando preservar sua superveniência. Curiosamente, parece proceder de um autor de ficção científica e não de um filósofo grego o cerne de sua moralidade. Pois as “leis” de Asimov se aplicam perfeitamente: este réu não produz provas contra si mesmo.
Mas essas questões éticas que se esboroam numa complexidade técnica quase inabordável pelo público leigo, se estão sendo consumidas como “brinquedos virtuais”, por outro lado estão na raiz (raiz digital) de uma nova conformação tecnológica que vem há muito se desenvolvendo para sustentar novos meios de produção e subsistência da humanidade. Não são poucos os dilemas econômicos, culturais, sociais, bioéticos e geopolíticos aí envolvidos, e alguns pensadores contemporâneos vêm procurando colaborar no esclarecimento dessas questões, mas mesmo o historiador israelense Yuval Harari, que se dedicou com seu livro Homo Deus, de 2015,a alertar dos riscos da criação de “uma geração de pessoas inúteis”, parece agora encantado com as possibilidades estéticas dos aparatos. Recentemente, ele divulgou em suas redes sociais um filme produzido inteiramente por estes recursos para explicar nada menos que a “vida”. Faz parte dos encantos da inteligência artificial, como se vê, fascinar até mesmo seus maiores críticos. É um filme que vem se reprisando na história esse.
Pode ser mesmo por um desejo e curiosidade impossíveis de se atender; mas que seria interessante saber de quem afirmou que “não importa quem fala” ver suas ideias recombinadas num aplicativo de celular, isso seria. Apesar de que a proposição tenha ganho relevância por ter partido justamente de Foucault e não de um manifesto apócrifo, a dissolução autoral presente encontrou na tecnologia quem a execute, consuma e venere. Se logo, ao invés de se consultar os livros de Foucault, Barthes ou quem seja, passar-se a apenas a indagar-se ao oráculo tecnológico a explicação de tudo, bem, então os educadores precisam estar prontos para perder o emprego. Os educadores e uma série de outros profissionais cuja atividade será doravante realizada com muito mais eficácia por um remoto algoritmo funcionando num ainda mais remoto mainframe.
Em objeções estéticas, embora possíveis e cabíveis, consistem o maior imbróglio dessa combinação. Com a dificuldade de distinção do texto humano e do texto técnico (perfeitamente articulado e virgulado), é preciso desde já abrir mão da verificação de originalidade. Uma recombinação mínima é suficiente para embaralhar qualquer ferramenta da busca. E os textos literários produzidos são ricos em figuras de linguagem, às vezes mais do que um bom número de pretendentes à autoria. Não comparando, a inteligência artificial pode receber instruções muito precisas, como as de uma prescrição, e desdobrar parágrafos e mais parágrafos a ponto de obter um livro de 200 páginas em menos de 48 horas. Em vista dessa “concorrência”, muitos autores preferem assumir a condição de coautoria.
Sem ter em mente as malhas da atribuição nem os liames biográficos que amarram ainda hoje bem firmes autoria e obra, é um pouco impossível saber o que mais acontecerá no mundo das ideias e no mundo literário a partir de agora. Pensando-se na possibilidade do espólio inominado e direitos autorais conexos e contratos editoriais indevassáveis, é mesmo de tomar as cautelas tomesianas: ver para crer. Apostar que o leitor formado justamente por essa nova técnica saberá safar-se e manter intacta a autonomia de sua vontade intelectual é de um risco imponderável. O mesmo vale para juízos estéticos que estão sendo lapidados com a ajuda da gameficação educacional. No entanto, justamente não saber e manter a reserva dialética da dúvida parece um meio caminho possível entre ser absorvido ou se afastar completamente, o que também já não é mais possível a ninguém.
Uma casa nunca é reencontrada da mesma forma. Pela manhã, primeiro o sol ilumina cada reentrância do telhado, move sombras sobre as janelas entreabertas, deposita o quanto pode seu amarelado nas madeiras dos móveis e dos ladrilhos, rebrilhando. A casa se acorda e se lá dentro alguém vive foi acordado pelos sons dos bem-te-vis que vazam para dentro e deste vento que em algum momento despercebido passou também a soprar como se desejasse ventilá-la do interminável sono noturno. Mas se ela sobrevive sem quem a viva, ela mesma parece assumir uma forma paquidérmica, trapezoidal, como um imenso animal dorminhoco que ao abano do sol ensaia erguer as pestanas e então vai pouco a pouco voltando ao estado letárgico do sono profundo, mais adequado para onde não há ninguém. Para aparentemente onde não há ninguém.
Ao voltar para casa, não se pode encontrar o que os outros veem, só o que nós mesmos vemos. Ali estão os chapéus desde a última vez que foram pendurados ao cabide, após o último verão, antes da última chuva que tocou o solo e pintou as folhas do jasmineiro com pintas de suçuarana, e depois inundou tudo levando o que vivia ao subterrâneo.
A casa nunca sabe de quem se trata cada qual que se assoma aos degraus e à sua entrada. É o filho mais velho, os inúmeros filhos do meio, e o último deles. Qual foi que guardou alguma coisa na última visita? Quem roubou retratos com a esperança de manter vivas as mais apagadiças memórias? Também não sabemos. Em seu testemunho silencioso, o que ela diz nem todos entendem. Ela, que viu uma a uma as tentativas de partida e os passos de quem nunca voltou, é indiferentemente majestosa e parece guardar em segredo a ideia de que todos sejam como suas paredes e que dali de dentro ninguém nunca sai completamente.
Mas como se tivesse vida própria, com olhos às janelas ela expulsa o que não lhe pertence e se purifica do alheio. Disso é que se dá a sua vida. Ela prefere manter-se de saudade, só, e nada mais, do que de quem a depenaria em pedaços. E espera quieta, como sempre, e por que a encontrem num passeio sem pressa, numa visita ao acaso. Entre os ramos das árvores mais altas, a fisionomia hercúlea de quem suportaria tudo e voltaria a amanhecer ainda que as cidades sejam cada vez menos gentis, que não a encontrem menos severa do que o esperado e que guarda ainda em seus armários doces de um lado, venenos do outro.
Ao adentrá-la depois de tanto tempo, quem ela pode reconhecer? Quem a reconheceria? Não importa… Na noite escura, quando mesmo a lua desiste de dar as caras, ela vai se confundindo pouco a pouco ao fundo de uma moldura que escapa ao tempo. E desaparece.
II
Aqui nasceste sem que alguém te dissesse bem vinda ao mundo. E te apropriaste do tutano das paredes, faminta. A sede que havias saciado no azul do céu cegou-te de tudo o mais: deveres, pesares e de quem te habitava. Do nada me flagro pensando: o que dirias ao notar que não vicejo? Eu não sei… Apenas vejo as paredes ruindo e, tu, nossa história.
Bem no final de 2022, num dezembro tomado de assalto pelo noticiário político e pela turbulenta sucessão presidencial brasileira, foi quando finalmente chegou às livrarias nacionais a esperada biografia de Fernando Pessoa que o jornalista Richard Zenith levou mais de uma década para concluir desde que começou a trabalhar no espólio do poeta. O resultado não podia ser menor do que as mais de mil páginas que a Companhia das Letras publicou aqui numa edição vertida do inglês pelo tradutor Pedro Maia Soares. Em maio do mesmo ano, uma versão pela Quetzal foi publicada em Portugal e a versão original em inglês, Pessoa: a biography, saiu em julho de 2021 nos EUA e na Inglaterra, pela Liveright.
Apesar de que a obra pessoana tenha sido vastissimamente estudada desde a segunda metade do séc. XX, inclusive por estudiosos brasileiros, o trabalho de Zenith é efetivamente considerado a segunda grande biografia do poeta notabilizado pela obra monumental e pela forma de organizar o seu trabalho em heterônimos. Na edição portuguesa, o livro, aliás, é iniciado por uma dramatis personae pessoana na qual Zenith “biografa” parte dos heterônimos criados pelo poeta (na brasileira, foi transformada em anexo). Contudo sabe-se que o número de alteregos de Pessoa continua sendo impreciso, dado que para muitos deles mal chegou a esboçar um texto, apenas o registro de um nome, mas é certo que passam de uma centena e surgiram em seu universo mental precocemente, antes dos seis anos de idade. Antes da publicação de Zenith, a mais extensa biografia publicada de Pessoa continuava sendo a realizada pelo seu contemporâneo João Gaspar Simões, em 1950, Vida e obra de Fernando Pessoa: história duma geração.
Embora no Brasil a sua obra tenha obtido projeção e leitores a partir de 1960, quando a Nova Aguilar publicou sua Obra poética organizada e anotada pela pesquisadora Maria Aliete Galhoz, é certo que o nome de Pessoa transitava de contrabando entre os modernistas brasileiros de viagem à Europa, muito provavelmente por meio das edições de Orpheu e de Presença, revistas nas quais Pessoa fez desfilar seus principais heterônimos entre os demais modernistas portugueses. Contatos efetivos com os brasileiros não são muito conhecidos, além do fato dele mesmo ter emigrado o seu heterônimo Ricardo Reis para o Brasil, em 1919, e cuja data de falecimento imprecisa serviu de mote para a escrita de O ano da morte de Ricardo Reis, romance em que José Saramago resolve por situá-la em torno de 1936, na iminência do nazi-fascismo europeu. Mas, para que se situe melhor esse reconhecimento, é suficiente o relato do quase-encontro dele com a poeta brasileira Cecília Meireles, em 1934. Cecília era casada com um antigo conhecido de Pessoa, o português Fernando Correia Dias, e marcaram um encontro de gentilezas a que ele acabou falhando. Para compensar a falta injustificada, mais tarde deixou no hotel onde a brasileira se hospedava uma edição autografada de Mensagem, seu único livro publicado em vida. Outra referência aos brasileiros na biografia é uma menção a Ronald de Carvalho, poeta que se integrou bastante ao grupo reunido na Orpheu, especialmente Mário de Sá-Carneiro, e uma declaração de Carlos Drummond de Andrade no ano de centenário de nascimento de Pessoa, em 1985, na qual afirma que Pessoa é um poeta “frio, apenas toca nosso lado intelectual”, e diz preferir Camões a ele.
Embora sua obra fosse muito conhecida dos brasileiros e contasse com diversas publicações segmentadas, a partir de 1985 entrou em domínio público e ocorreu por aqui uma verdadeira explosão pessoana. No entanto, logo uma alteração na legislação da União Europeia sobre direitos autorais adiou o processo, que foi retomado em 1993, com o surgimento de inúmeras edições nuas (sem notas ou comentários) de sua poesia e prosa conhecidas. Por longos anos, a poesia de Pessoa e seus heterônimos foi das mais vendidas no Brasil, e seu(s) nome(s), tão ou mais populares que muitos poetas brasileiros. Na mesma medida, aqui e em muitos lugares do mundo foram sendo criados núcleos de estudo de sua obra em diversas universidades, disseminando para além do mundo lusófono os “estudos pessoanos”, confirmando-se já o interesse universal em sua literatura.
De imediato, o que se pode garantir em relação à biografia de Zenith é que ela não se faz interessante apenas por um maior conhecimento de sua vida, mas porque Zenith é um grande conhecedor de sua poética. Uma das grandes felicidades do seu trabalho consiste em nunca despersonalizar o poeta entre seus heterônimos. Zenith busca sobretudo garantir a integridade intelectual do poeta e jogar luzes em sua direção valendo-se inclusive de elementos autobiográficos que Pessoa teria lançado em sua produção literária. Pois então se pode saber que o poeta da Autopsicografia, o assumido “fingidor”, muitas e muitas vezes apresentou, mesmo que de forma distorcida, elementos de sua vida mais corriqueira na sua poesia. Se ele obteve uma dicção sublime em função de elementos às vezes frugais, passagens e situações que de fato viveu ou presenciou, certo que isso mais atesta a sua genialidade criativa.
O premiado trabalho de Zenith (foi finalista do Pulitzer em 2022), no entanto, não vem passando imune a críticas. Por investigar com certa exaustão indícios e questões envolvendo a sexualidade do poeta, tem recebido críticas inclusive da parente mais próxima de Pessoa que é ainda viva. Aos 96 anos de idade, a também escritora e poeta Manuela Nogueira leu e classificou como fantasiosas algumas das dúvidas suscitadas na biografia. Também confirma que a imagem de um Pessoa “macambúzio”, de acordo com ela, não procede e afirma que o tio, embora muito desorganizado, produzia num ritmo que não desejava interromper em razão de nenhuma relação interpessoal, mas que era bem humorado e brincalhão.
A imagem de um poeta sombrio é, aliás, também muito questionada por Zenith. Muito presentes na biografia de João Gaspar Simões, de 1950, que elevou enormemente o interesse em torno do poeta com o seu trabalho biográfico, as características psicológicas (e psicopatológicas) do poeta são centrais na busca de Simões, mas notoriamente permeadas por um excessivo psicologismo desde os estudos do também contemporâneo Adolfo Casais Monteiro. Em muitas situações, Zenith explora outras facetas e informações a respeito do poeta de que certamente Simões não dispunha em 1950. O que se vislumbra é um indivíduo interessado na vida política do seu país e do mundo e que, com maior ou menor sorte, procurou manter boas relações e um círculo de amigos composto pela intelectualidade da época, além de ter também boas relações familiares. Com isso esclarecido, o leitor tem garantido poder voltar sossegado à busca por compreender o sentido mais profundo daquilo que Pessoa guardou a sete chaves durante a vida na sua famosa arca: a obra literária. E, ao passo de sua leitura, a tarefa vai se configurando como uma grande jornada de reconhecimento na qual vida e obra têm, por uma característica sui generis e pessoana, praticamente o mesmo peso e relevância.
A jornada proposta por Zenith, cabe dizer, é muito facilitada pela sua escrita leve e jornalística. Há uma visada simpática sobre o poeta, que se alfabetizou sozinho aos quatro anos de idade, num claro indicativo de altas habilidades. Quando se sabe, por exemplo, da sua dificuldade em manter o foco na conclusão dos inumeráveis projetos iniciados que pipocam em sua mente, ele diz não saber “evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões”, seria simples associá-lo ao que hoje se conhece como o transtorno de déficit de atenção. Não é por falta de características psíquicas, como se vê, que se dificulta a tarefa de compreendê-lo, mas pela sua abundância. E quando o biógrafo destina um capítulo inteiro do seu livro para demonstrar o esforço espiritual e intelectual de Pessoa em atingir um alto grau de alta exigência estética e psíquica, o que acaba muitas vezes sacrificando a sua estima e deprimindo-o, acaba por conferir ao poeta o que às vezes perdemos ao conhecê-lo: a dimensão de gozo e sofrimento de seu espírito criativo.
Qualquer leitor de Pessoa, mesmo o mais preliminar, logo ao defrontar-se com sua poesia percebe estar diante de um precipício intelectual. É uma experiência muito dissonante de qualquer outra poesia que se possa conhecer. De acordo com Leyla Perrone, uma de suas principais estudiosas no Brasil, a obra de Pessoa impõe um antecedente que todos os poetas de língua portuguesa devem enfrentar na perspectiva de continuar a usar a mesma língua. Depois dele, o sentimentalismo e a facilidade retórica “aparecem como erros imperdoáveis”, e isso é algo que se intui e compreende mesmo à sua leitura direta. O que a biografia de Zenith tem a oferecer para compreensão de Pessoa, no caso, é a confirmação de que esse universo – o mundo “pessoano” – foi, incrivelmente, tarefa de um homem só. E que, a despeito de viver os seus últimos anos de vida num pequeno apartamento da Coelho da Rocha, em Lisboa, ao morrer, de acordo com Miguel Torga, “Portugal viu passar num caixão sem ao menos perguntar quem era”. Nada disso conseguiu impedi-lo de ter engendrado uma das obras poéticas mais impressionantes e complexas de todo o mundo no séc. XX.
Nina se foi ontem. Sob a porta da casa fechada, posso distinguir a tranca que esteve nestes dias mantendo sempre uma das folhas da porta dupla entreaberta. A casa mesmo como uma concha aberta pela força do mar de encontro às pedras pretas da praia.
Olhando pelas poucas frestas, posso ver a areia que eu trouxe ali para dentro e ali ficou, acomodando-se no piso machucado, nas madeiras que o tempo e a maresia sulcam e enrugam como a pele de dentro do lugar, porque a casa de Nina é um corpo também. Um corpo com a única diferença de ter um endereço e, só às vezes, uma alma ocupando-o com as músicas dos seus discos, o bater das suas panelas, o tilintar das suas louças e a sua voz rouca. A casa de Nina é o seu corpo que permanece depois que ela se vai. Um espectro de tijolos e tábuas de quem sempre se vai sem nunca avisar a ninguém.
Eu disse que ela cantarolava em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 o tempo inteiro? Cantarolava também e especialmente sempre que não queria me responder qualquer coisa. Eu sabia que perguntar o que quer que fosse de nada adiantava mesmo e a verdade é que quase tudo a incomodava. Mas ela cantava e sorria eu acho que para não me chatear. Quem não gosta de ser chateado também não gosta de chatear aos demais.
Ao alto, agora o voo das fragatas ensaia ir novamente de encontro à praia, mas seus pescados e mariscos também partiram – igual ao que ela fez: sem deixar recados com ninguém. Afora as lembranças, vestígio nem um.
Decidido a não pronunciar mais o seu nome até que ela voltasse, no próximo verão, um instante só pensei em buscar com o vendedor do armazém em frente por notícias suas. Mas e se ele também a procurasse? Melhor não. Obviamente desisti sem me aproximar, mas nos dias seguintes me procure sentado ali, bebendo gim duplo até a hora de escurecer.
Eu também não queria saber nem aonde ela teria ido, ao encontro de que vida, se uma vida com rotina ou o quê, mas isso não parecia possível, eu nunca soube o que ela fazia longe dali. E pensava que só o que se admitia tratando-se dela é que estivesse enchendo o ar com seus pequenos risos e cantos silenciosos.
Também se a sua vida não fosse exatamente assim noutro lugar, melhor seria não saber de nada. Melhor guardar só a sua imagem, nem a sua imagem, seu vulto assomando à noite alta e morna de verão o calor tépido que trazia sempre consigo, como uma túnica, e a voz em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 cantando-me “já chega agora/o tempo vai passar, se acalme/só não vamos deixar que ele passe em vão…”
Sibylle Baier (1945) é uma atriz e cantora folk alemã. Seu disco Colour Green, de 2006, reúne canções que ela gravou nos anos 70 e só veio a público por insistência do seu filho, tornando-se quase imediatamente objeto de culto.
Eu perdi algo nos montes
Nos últimos tempos Eu sempre choro Quando passo pelos montes
Oh, o que as imagens me trazem Oh, eu espero tanto Pelas raízes da floresta A origem das minhas brutalidades
Eu perdi algo nos montes Eu perdi algo..
Outros crescem nas cidades Eu cresci nesses montes Onde primeiro o amor e a alma surgem Lá vão os tempos da minha vida Quando me sentia doida, desvairada E somente a campina me trazia esperança
Quando minha perna passar da grama alta, eu morrerei Eu vou morrer sob o jasmineiro – Sob a árvore mais velha – Então eu não preciso estar preparada
Eu vou morrer sob o jasmineiro E sob uma velha árvore Eu não preciso me preparar para um novo dia Onde vou preencher a profundidade do que sinto?
Você vai dizer que eu não sou o pisco da floresta Mas como eu poderia não deixar sinais De que perdi algo nos montes?
Eu perdi alguma coisa nos montes Oh, eu perdi algo nas montes..
Agora eu me inclino no peitoril da janela E eu choro, embora seja bobagem E eu estou sonhando completamente..
Oh eu sei, mais a oeste existem estas montanhas Marcadas por macieiras, sulcadas pela corredeira Isso me leva aonde eu quiser
Bem, eu perdi algo nos montes Eu perdi algo nos montes. Oh, eu perdi algo..
I Lost Something in the Hills
Everytime I shed tears In the last past years When I pass through the hills
Oh, what images return Oh, I yearn For the roots of the woods That origin of all my strong and strange moods
I lost something in the hills I lost something in the hills
I grew up in declivities Others grow up in cities Where first love and soul takes rise
There were times in my life When I felt mad and deprived And only the slopes gave me hope
When I pass through the leg high grass, I shall die Under the jasmine, I shall die In the elder tree I need not try to prepare for a new coming day Where is it that fills the deepness I feel?
You will say I’m not Robin the Hood But how could I hide from top to foot
That I lost something in the hills I lost something in the hills Oh, I lost something in the hills
Now I lean on my windowsill And I cry, though it’s silly And I’m dreaming of off and away
Oh, I know farther west, these hills exist Marked by apple trees Marked by a straight brook That leads me wherever I want it to
Well I lost something in the hills I lost something in the hills
Oh, I lost something in the hills
Esqueça isso
Você me fez esquecer De ter, querer, exercer
Eu de repente me sinto orgulhosa Por ficar sem dizer nada
Você me fez esquecer Passado e dor
E o tempo você lavou Como uma chuva repentina de verão
Você me fez bem, Me fez tão bem Que me fez esquecer
Você me fez esquecer De ter, de querer, de exercer
E de repente eu descobri Como é lindo o jeito que você veste sua camisa
Você me fez tão bem… Você me fez esquecer
Forget about
You made me forget about Have, want, exert And all of a sudden, I feel proud Of being, without saying a word
You made me forget about Past and pain Time, you washed out Like a soft, sudden, summer rain
You do me good You do me So good, you made me forget about
You made me forget about Have, want and exert And all of a sudden, I found out Oh, it’s beautiful, the way you wear your shirt You do me good, you made me forget about
O fim
É o fim, amigo meu É o fim
Foi-se o tempo quando poderíamos simplesmente dizer eu te amo Agora você abriu a porta E me deixou chorando Tentando te abraçar de novo Buscando enfrentar essa maldita situação, cara Mas eu não posso É o fim, amigo meu É o fim
Querido amigo, eu não sei dizer porque começamos bem Bons tempos, mas me dê um pouco de vinho quando abrir a porta Você parece magoado, não tente falar nada O que neste mundo poderia mesmo dar errado entre nós? No entanto, é o fim, meu amigo É o fim, doce amigo meu Parece que acabou o tempo quando poderíamos simplesmente dizer eu te amo
Agora você abriu a porta E eu sinto frio Acordada, tenho você em meus braços Eu disse que a vida é curta, mas o amor antigo É o fim, amigo meu É o fim, doce amigo
The end
It’s the end, friend of mine It’s the end, friend of mine
time is over where we could simply say I love you Now you opened the door Leave me crying Trying to embrace you again Trying to face this damn situation man I can’t It’s the end, friend of mine It’s the end, sweet friend of mine
dear friend, I cannot tell the reasons why we started well Good time, give me some wine when you open the door You seem hurt, don’t try to speak a word to me What on earth could really go wrong with you and me? Yet its the end, friend of mine It’s the end, sweet friend of mine
time seems to be over where we could simply say I love you Now you opened the door I feel cold Wakened, I hold you in my arms Told you that life is short but love is old It’s the end, friend of mine It’s the end, sweet friend