Just another life to live

Delicado é por agora um dos adjetivos preferidos pelas pessoas para descrever algo que as agrada. Normalmente se dedica o termo àquilo que nos parece brando, singelo, sutil.. O que é especial e notável pela beleza. Por outro lado, o termo também se aplica quando se quer dizer que o referente é difícil, frágil, requer cuidado. Quando a situação está delicada o que se quer dizer é que a situação é problemática. Um termo com muitos sentidos e que depende do que vem dele associado para se entender do que se trata.

Tenho lido por aqui a autobiografia de Vashti Bunyan e vou ficando cada vez mais impressionado pelo que leio e encantado com a simplicidade da pessoa e também da sua clareza de espírito.. Como pode o seu talento incrível ter sido tão menosprezado em sua época? Como pôde a crítica musical dos anos 60/70 ter sido tão implacável com uma menina de vinte e poucos anos a ponto de levá-la a concluir que a música não era para ela e que, portanto, o melhor seria desistir da carreira?

Foi o que aconteceu com Vashti. Lá pelas tantas, ela entendeu que seus sonhos e ambições eram despropósitos e exagerados e não iriam acontecer. E apesar da amargura terrível da desistência, foi o que ela fez e no inicio da década de 70 foi viver sua vida. Just another life to live, como diz o título da sua biografia.

Por diletantismo, tenho lido ao longo dos anos a respeito da vida de muitos cantores folk e roqueiros. Alguns têm livros em português, outros pego no Kindle. Comecei há tempos com a biografia de Bob Dylan, Johny Cash, Neil Young, Johni Mitchell, um livro da irmã de Janis em que ela destila um veneno impressionante. Os de Dylan e Neil Young me soaram tão artificiais que me desfiz deles. O de Johny Cash, por outro lado, guardo fora dos livros de música. Nunca curti muito o estilo vocal dele, mas o livro é realmente especial. Agora recomecei com Karen Dalton (outra vida duríssima), Nick Drake e Vashti. Nada disso tem em português.

A verdade é que o mundo artístico sempre teve esses fenômenos: artistas mirins que surgem como cometas e se desviam completamente, muitas desistências não reportadas ou feitas em silêncio e alguns poucos que têm esses resgates como teve a obra de Vashti graças a redescoberta por artistas muito mais jovens e ouvidos apurados, como o do pianista e compositor Max Richter, produtor de seus discos após o intervalo de 35 anos.

Essa redescoberta aconteceu com ela e também com outro fenômeno semelhante, Linda Perhacs, que, diante ao menosprezo geral, botou a viola no saco e foi viver sua vida de cirurgiã-dentista, voltando a gravar e a fazer shows quase septuagenária. Hoje é um clássico cultuado.

Se existe uma música que pode realmente ser chamada delicada por aí é a dela e se o seu nome não estiver na lista, desconfie. Se existem mesmo pessoas que nasceram fora de sua época, ela também é uma dessas pessoas. Nesse tempo em que a urgência de reconhecimento comanda a vida dos pretendentes ao estrelato, histórias como a de sua vida são interessantíssimas para redimensionar um pouco a gana, a pressa e o chamado à exposição da era das redes.

Onde vivem os livros?

“Onde vivem os livros?” seria um bom título hipotético para um livro que tratasse do que é feita a vida dos livros no Brasil. Do que é feita e também do que não é feita.

Que eu saiba, esse livro ainda não foi escrito e nem o tema dele muito explorado. Com exceção dos textos bipolares que aparecem na imprensa ora apontando mais uma crise insolúvel do setor, ora comemorando resultados inesperados, o mundo editorial é feito muitas vezes de números discordantes e inexplicáveis imprecisões.

Eu tenho por aí uma pequena coleção de textos que publiquei a respeito do assunto, mas a minha sensação é de que quanto mais eu leio e penso nisso, menos entendo. A culpa pode ser minha, eu sei, de uma fraqueza do meu raciocínio, mas cada vez mais eu me certifico de que essa é uma equação que não fecha, não adianta. As variáveis extrapolam do argumento e os valores então nem se fale, são quase números aleatórios dos quais o jornalismo sensacionalista se lambuza.

O que eu verifico com muita parcialidade é justamente que muitas vezes se criam situações estatísticas para provocar reações mercadológicas. Nas regras do jogo competitivo, isso está longe de ser uma prática criminosa, pois sempre se pode alegar um recorte determinado em detrimento de outros. Na prática, todo mundo faz isso, inclusive as instâncias do governo quando divulgam relatórios soberbos, inclusive as pessoas na economia familiar e pessoal, quando precisam ou desejam se justificar por qualquer razão, um gasto impensado, uma compulsão.

Mas a tentativa de responder a essa pergunta exige que se reporte aos dados disponíveis e eles são tão incongruentes que simplesmente dissolvem os raciocínios antes de que se possa pensar em conclusões.

Ou como se poderia harmonizar, por exemplo, os dados de uma pesquisa que informa que perdemos quase 5 milhões de leitores a cada quatro anos com outra que comemora o crescimento de 30% de vendas no mesmo período?

Como concatenar a informação acima com a notícia de que nos últimos 5 anos o país perdeu pelo menos 800 bibliotecas públicas e segue perdendo, em detrimento de negócios e pacotes fechados de “soluções” educacionais, institucionais, etc.

Como entender o país que tem o oitavo número de ISBNs registrado no mundo inteiro, mas não tem um depósito legal eficiente e notícias de livrarias fechadas tornaram-se habituais? De onde não se consegue um exemplar publicado há mais de vinte ou trinta anos sem que se tenha de vender um rim para conseguir comprá-lo? De um setor que, mesmo com a tecnologia estrepitosa, se comporta ainda como se na época da tipografia?

Como harmonizar a ideia de que 60% das escolas do país não contam com bibliotecas e mesmo assim o MEC descarta milhões de livros didáticos ano a ano?

E, principalmente, como aceitar que todas são informações válidas, se quando tomadas em consideração globalmente não pareçam fazer qualquer sentido?

Pois essa é apenas a pontinha do fio de Ariadne que amedronta qualquer pessoa sensata a enfrentar o labirinto de informações e ajuda muito mais a concluir que o melhor talvez seja viver sem entender. Mas viver sem entender é justamente ser um refém voluntário da ignorância, sem dúvida uma das mais inaceitáveis formas de mediocridade que existem.

Como conhecimento sem dor não existe, é preciso se colocar à disposição da realidade para enfrentá-la. E a realidade é que há o mundo real e o mundo da fantasia das estatísticas e das manchetes. Em primeiro lugar, seria preciso discernir quais livros estão sendo vendidos para qual destino e com que finalidade. Não é tão difícil. As próprias estatísticas das pesquisas encomendadas pelo setor livreiro e seus sindicatos informam isso, embora poucos se atentem ao que isso significa. A proficiência da leitura (e consequentemente, da escrita), por complexa, é outro assunto, mas não menos aterrador.

Nessa explosão editorial, 75% são reimpressões e não títulos novos. De todo o volume de vendas, mais de um terço do volume total da indústria livreira é destinado ao setor público, num faturamento que chega a dois bilhões/ano. Livros digitais (e-books) respondem por 4% dos títulos e vendas em números estagnados (o e-book é um péssimo negócio editorial). 53% de todos os títulos são obras didáticas e quase 20% são de conteúdo religioso. 10% são apostilas e a literatura adulta responde por imensos 6% do volume editado.

Por que esses números não são problematizados nos artigos estrepitosos que chegam à mídia via de regra culpando o leitor ou o combalido sistema educacional? Isso eu também gostaria de saber, mas continua integrando o combo da minha ignorância.

Enfrentar o senso comum e a sensação de que cada vez se lê menos sem entender esse descaminho imenso, leva a pensar que viveríamos uma apoteose livresca, com quase 400 milhões novos livros circulando anualmente. Mas onde estão esses livros todos? É isso precisamente que eu gostaria de entender, mas acho que vou morrer sem conseguir. Só o efeito disso eu vejo a cada vez que saio às ruas e a nossa pobreza social imensa me entristece profundamente. Mas se nem ela, que é evidente, consegue ser objetivamente combatida, imagine-se coisas e problemas que nem se consegue formular direito? No Brasil, pessoas se aborrecem com políticos e autoridades, eu me desanimo é com isso, com a ignorância generalizada que nos acomete sobre quase tudo.

* Onde vivem os livros é uma adaptação do título do filme “Onde vivem os monstros?”, baseado no clássico infantil de Maurice Sendak.

* Os dados estatísticos que citei são das pesquisas da Câmara Brasileira do Livro e Instituto Pró-Livro.

Tea time

Naufragam na tarde luminosa
dias inteiros adiantados.

O que vieram fazer aqui, ao meu lado,
coisas que nem aconteceram?

A ponte que sem dúvida já sabe
o que lhe passará por cima amanhã.

A sombra inerte da paineira
e o que já a espinha por dentro.

Não é que se chega antes, às vezes,
mas, então, tudo está esclarecido

como o pó do chá no fundo da xícara
e a água que nunca esfria.

Passei por tudo, mas o que passou?
Eu não entendo por que ainda

continuo olhando o que não há.
Coisa do coração que diminui dia a dia…

A revolução de 1923 no olhar de Cyro Martins

Artigo publicado na 9ª ed. da Revista Sepé.

Imagine-se um mundo sem redes sociais, sem internet, sem televisão, sem rádio ou jornais. Este é o mundo de Sombras na Correnteza, romance histórico que Cyro Martins publicou aos 71 anos de idade, em 1979, e que tem como pano de fundo a centenária Revolução de 1923.

Talvez o mais certo fosse dizer que se trata do olhar de Bilo Martins, o pai do próprio Cyro que é homenageado no romance e é também o personagem que testemunha o desenrolar daqueles dias remotos detrás do balcão de um comércio rural (um bolicho, na linguagem campeira). Mas o mais certo mesmo parece ser que o escritor tenha recombinado no livro memórias antigas com o olhar distanciado e a experiência acumulada em setenta anos de vida e muitas publicações nesse percurso. É o que ele próprio adverte no texto de orelha do livro, publicação da Movimento.

Na vida do campo, o bolicho não é apenas um local de comércio, é onde as pessoas se informam e propagam as novidades de boca em boca, de chasque em chasque. Na pasmaceira dos dias idênticos, o bolicho é o centro de comunicação que coloca em contato campo e cidade, o interior e o mundo.

Neste mundo quase um desvão do Brasil sem ainda uma imagem clara da modernização porvir e dominado pela figura autocrática do presidente Borges de Medeiros e a máquina político-militar do Partido Republicano Riograndense, uma eleição marcada pela suspeita (ou certeza) de fraude é o estopim para que o campo ainda muito militarizado em função da Revolução Federalista de 1893 volte a armar-se revivendo os momentos de violência que banharam de sangue o Rio Grande do Sul.

Em trinta anos, porém, o mundo havia mudado e muito. A marca maior da mudança tecnológica proveniente da I Guerra Mundial é o uso das metralhadoras em campo de batalha e agora, sob as ordens de Borges de Medeiros, a Brigada Militar as têm prontas para enfrentar as colunas enfileiradas nas coxilhas pelos apoiadores da candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil, do Partidor Libertador. Sob o comando do Gen. Flores da Cunha, as forças governistas vão bater-se contra a organização caudilhesca de figuras quase mitológicas, como o Gen. Zeca Netto e o Cel. Honório Lemes. Mais tarde, a revolta ainda será conhecida como a em que o facão enfrentou a matraca, numa alusão à disparidade das forças em combate.

Além de flagrar as escaramuças do conflito e retratar as longas viagens empreendidas pelas colunas militares, o olhar de Cyro é sensível também às pequenas mudanças. O próprio comércio do seu Bilo é afetado pela intensa evasão populacional da região da Campanha em direção às cidades. Embora até a década de 50 a população rural quase equivalesse à urbana, esse movimento revolucionário de 1923 foi definitivo na configuração geográfica e política do estado do Rio Grande do Sul. A partir da chegada de Getúlio Vargas ao poder, o foco da economia passa à industrialização incipiente e o campo a gerar e exportar a pobreza rural para a cidade. Em 1923, o gaúcho a pé que Cyro caracterizara em seus romances anteriores mais conhecidos (Sem rumoPorteira fechada e Estrada Nova) estava em vias de migrar para a cidade.

Sombras na correnteza é um romance político de um autor já maduro e mesmo sua linguagem é mais direta e clara aos olhos urbanos que seus livros anteriores. Cyro, que havia denominado sua literatura por “localista” no lugar do regionalismo mais otimista, não hesita em mostrar as feridas sociais e psíquicas que tanto afetam as pessoas do campo quanto as da cidade. Ao lidar com um exército precário contra o Estado organizado e militarizado, se ele coloca em pé de igualdade militares de campo e de gabinete, é porque foi dos últimos escritores a viver aqueles tempos tais como eles aconteceram. Não é livre de um tom melancólico que ele narra a guerra frátria do épico de 1923. A sensibilidade do autor para com o povo do Rio Grande do Sul e sua história nunca abandonou o homem cosmopolita que ele foi.

Lunar

Vivo numa cidade onde não posso morrer.
E esbarrando em coisas não construídas
na seguinte, paralela a esta, mal distingo
em suas sombras uma da outra.

Na mesma penumbra onde adormeço,
evito a todo custo sabê-la. Meus pés
não a tocam direito nem permito
a mim mesmo que a tome por minha.

Eu não morreria aqui, não mereço
o sol falso gelando meu sangue.
A ter a face na bandeira sozinha, melhor
a solidão lunar do dragão já lançado.

Para que as viva como se fossem a mesma,
a triste ou a que se alegra por nada,
criei para mim um lugar descampado
onde é para sempre domingo.

Yael Naim ao vivo em Paris

Yael Naim não é o que se poderia chamar de uma artista popularíssima. Nos países europeus, no entanto, tem sempre grande público e repercussão o seu trabalho autoral. No ano passado, ela realizou o seu primeiro trabalho ao vivo. Gravado em Paris, no interior da Eglise Saint-Eustache, o disco de 16 faixas registra boa parte do trabalho de seus quatro registros anteriores e conclui-se com New Soul, a canção pop-folk que encantou Steve Jobs e que ele escolheu para apresentar, em 2008, a versão slim do MacBook Air. Até hoje, é sua canção mais executada em todas as plataformas. A distância desta para as outras faixas está na casa das milhões de execuções. Na gravação ao vivo, ela desacelerou completamente o andamento da letra luminosa e positiva, transformando a canção em uma balada mais antenada ao seus novos e menos difundidos trabalhos.

Até onde sei, Yael andou pelo Brasil pela última vez em 2012, e minha intuição me diz que tão cedo não andará novamente. É uma pena. Eu facilmente venderia um dos meus dentes de ouro para assisti-la.

Yael é um cantora e compositora nada menos que magistral e que não tem receio de explorar seus sentimentos mais densos para criar e interpretar. Ela também tem muitas interpretações gravadas de “terceiros”. Lembro dela cantando James Blake, Radiohead, Mooses Summey e, talvez, a sua segunda gravação mais executada até agora: Toxic, de Britney Spears.

Seu terceiro disco solo, Older, tem duas versões. A original, de 2015, e uma versão revisitada com muitos remixes e participações especiais como as da cantora inglesa Flo Morrissey (na faixa título Older) e na operística Coward que aparece em duas versões, uma acompanhada pelo pianista Brad Mehldau e outra pela Metropole Orkest, um híbrido de orquestra sinfônica, big band e jazz contemporâneo.

O seu segundo disco, She was a boy, não lhe trouxe muitos sucessos, mas é um trabalho de muita unidade em que ela mescla as influências da música israelense e um pop folk delicado, no qual às vezes aparece tocando violão e noutras piano. “Proficiente” nos dois instrumentos, Yael costuma aliar simplicidade instrumental e harmônica a um largo alcance vocal. Em seu primeiro disco, ela está ainda mais “enraizada”, quer dizer, compõe e canta muitas canções em hebraico e em francês. É dele a gravação original de New Soul.

Em 2019, gravou a trilha sonora de Mon Bebé, filme francês que, ao que me consta, nunca chegou ao Brasil nem nos cinemas nem via streaming.

Seu mais recente disco, Nightsongs, é bastante sombrio se comparado aos primeiros. Há um flerte com o gótico em muitas faixas e nos clipes que foram produzidos para o disco. Na internet francesa, vi quem dissesse que era um disco de “cortar os pulsos”. Exagero provável de um público cuja fidelidade às vezes se torna obsessiva e que parece não ter recebido bem a variação de humor nas composições.

Obviamente, Yael amadureceu muito desde o sucesso de New Soul e sua lírica tornou-se mais complexa e, neste disco especialmente, mais triste. Algum problema nisso? Só se isso competisse num disco de má qualidade e, bem, basta que se o ponha para tocar para ver que o seu poder vocal está mantido, sua poética alargada até mesmo idiomaticamente e sua lírica ainda mais emocionada. Nigthsongs é um disco imenso e que não se pode ouvir aleatoriamente, daí que isso possa suscitar reações de fãs acostumados a singles de 3 minutos.

Apesar de uma carreira de 20 anos, Yael Naim conta ainda hoje com uma única resenha no Brasil, de 2009. Acho que com essa recepção não dá mesmo para contar com que um dia ela volte a aparecer por aqui.

Sem título

Minha vida não é tua,
mas as pálpebras da noite
quando se fecham em teu sono
e a graça que teus músculos sentem
em meu corpo, como desavisassem
de que chego novamente sem dizer
nem o quanto fico
nem o quanto me preservo em ti,
os números que faço, o que eu tento,
o espetáculo que é abrir teus olhos
para o que não vês
são para ti como se fosse eu.

Eu também percebo a geografia
batendo de encontro às janelas,
o inverno do passado, a infância,
o fogo tênue crepitando,
as roupas pesadas, a lã
pinicando o corpo.

Teus olhos, se então pudessem ver,
saberiam que para ti
eu um dia chegaria.

E as coisas que eu te digo
para que soem compreensíveis
são para ti como se fosse eu.

A porta aberta da casa,
o pátio interno,
a calçada defronte às ruas
já esquecidas dos teus passos,
eu tive meios de refazê-las em tempo
para que voltasses a passar
e dentro de casa quem te espera:
os tapetes, cadeiras,
os quadros na parede, cristaleiras…

As coisas que eu te mostro
para que sejam um pouco familiares
são para ti como se fosse eu.

Para ti, as palavras me precedem
e eu faço um comboio delas,
um comboio infinito, e uma ferrovia
descarrila teu sangue pelo corpo,
doura a face, enrubesce os lábios,
intumesce o púbis, te estremece
e as trilhas íngremes das pernas
pela manhã nos raptam o sono.

As coisas que eu faço
para que sejam tuas
são para ti como se fosse eu.

Há uma viagem que não fizemos,
mas onde ainda estamos.
Essa em que ninguém pode nos saber
pois só entre nós sabemos.

E se buscamos refazer
aquele encontro, o primeiro
em que nos encurralamos,
é porque há coisas
que de nós não têm saída.

Tu não tens para ti a minha vida,
é impossível,
mas as coisas que eu sei de ti
e que me deste
serão sempre para mim
como se fosse eu.

𝟬𝟯/𝟬𝟰/𝟮𝟬𝟭𝟮 – 𝟮𝟯/𝟬𝟰/𝟮𝟬𝟮𝟯

A casa de Nina

Não, nunca nem sonhei com Nina, é o que respondo ao dono do armazém e só então ele carrega as duas doses de gim de hábito no meu copo.

De pé ao meu lado, com o pano de pratos sobre um dos ombros, olhamos quem passa sem muito interesse. Poderiam ser clientes, mas o seu armazém esvaziou-se quase até a precariedade nos últimos tempos, sem como enfrentar a concorrência. A não ser quem procure afogar as mágoas, quase ninguém mais aparece, só às vezes um moleque em busca de cebolas para um jantar apressado, a pedido de alguém, e ainda mais agora que começa a esfriar e as casinhas da praia encolhem-se para dentro das persianas e portas fechadas.

Quase diante de nós, a casa de Nina é igual a um caramujo que não ousa dar sinal de vida. Sem ruídos internos, o vento de abril atravessa as frestas das janelas e produz um canto triste, noturno e fantasmático. Por um instante, aquilo me lembra do modo que ela tinha de cantarolar sempre com a boca fechada, exprimindo pelos olhos e sobrancelhas os acentos das canções obscuras que nunca entendi.

“Dizem que a casa é assombrada, não dizem?”, indago enquanto ele já começava a se afastar. Ele então retorna parando dessa vez rente à mureta baixa que separa o armazém da rua, perpendicular a mim. “Dizem muita besteira por aí…” assevera. E logo continua, reticente: “Mas quem é que vai saber?…”

O vento sopra um pouco mais forte e traz consigo um tanto da areia seca que foi se depositando sobre o chão da ruela. Um pouco disso entra em meus olhos, forçando-me a fechá-los e, quando volto a abri-los, ele já se foi para o interior do armazém ou para qualquer outro lugar. Quase ao meu lado, um gato mia como se eu tivesse algum pescado para lhe alcançar, mas logo se afasta e justamente na direção da casa de Nina. Patinha por patinha, passa por baixo do cercadinho de arame e some detrás das paredes.

Sem que eu saiba o porquê, intuição talvez, entendo que ele está me indicando que devo segui-lo, que ele sabe um modo de entrar na casa sem arrombá-la e que me mostrará o melhor modo de fazê-lo se eu não me demorar muito.

Deixo o copo quase sem tocar e saio em seu encalço.

Em dada altura, nem o bichano posso mais enxergar porque uma neblina vinda do litoral começa a escurecer tudo, à exceção de uma janela nos fundos da casa da qual parece emanar uma luminosidade sutil. Levo a mão de encontro à veneziana e uma de suas faces escorrega para dentro, como se abrindo espaço para que eu entre finalmente. Apesar da escuridão, não sinto medo, apenas curiosidade em entender o que há ali que antes, em sua companhia, eu não tenha visto.

“Nina?”, pergunto. Não ouço nada. Mesmo o vento choroso que parece viver ali também permanece quieto, como se aguardasse também a minha atitude. “É você, Nina? Por que não aparece?”, volto a indagar e o mesmo silêncio prossegue na sua emissão nula, concreta, imóvel.

Com os dois pés na sua sala, sinto o vento agora silencioso roçar os pelos das pernas. Olho para baixo e noto que a areia amontoou-se também dentro de casa e se transformou numa espécie de tapete, abafando os passos de quem quer que ande ali dentro.

Mas havia alguém?

Se havia, não se mostrava a não ser nos rastros muito delicados, há tempos sulcados na areia, e que me levaram a segui-los até dar num pequeno aparador muito rústico, de madeira, onde ela guardava as chaves de casa numa concha de cerâmica e um vaso com flores. Ali elas permanecem envoltas pela mesma neblina que há do lado de fora. As chaves também. E um retrato muito antigo de Nina, linda e imensa como a própria casa, sorria em minha direção para me receber.

Coisas outras

Num limiar, numa pequena fresta entre os gêneros literários mais “nobres”, é onde foi se alojar a crônica. O seu aspecto simples, comum, prosaico, às vezes simplório mesmo, ao longo do tempo tornou o gênero o mais praticado pelos leitores. Sim, pelos leitores, pois a crônica é o gênero no qual o leitor mais toma parte ativa e do qual se pede cumplicidade e concessão desde a primeira letra.

Quero dizer com isso que faz muito sentido um poeta escrever uma obra para a posteridade, por exemplo, mas nem um sentido isso faz para o cronista. A poesia é gênero que mira a eternidade enquanto a crônica vislumbra quando muito o horizonte do momento. A brevidade do momento e, às vezes, a anotação de um pensamento qualquer. Sua durabilidade depende de um sentido de universalidade distinto de outros gêneros. Um que se estabelece, por contraditório que pareça, na fixação do efêmero.

Mas aqui, para encerrar de uma vez essas considerações iniciais, interessa mesmo dizer que as definições de crônica sabidamente nunca chegaram a um consenso e cada cronista tem lá suas especificações e instruções particulares, como se tratasse de fórmula alquímica. Ou um modo de agir.

Enquanto alguns se dedicam mais ao cotidiano, outros vão à berlinda com a ficção, outros ainda se dedicam ao humour ou sentimentalismo, enfim, as margens são muitas, mas o que talvez mais importe seja que a crônica é a escrita desarmada por excelência, e que não deseja comprovar coisa alguma, muito mais oferecer o olhar do escritor conforme ele é menos articulado e consequentemente mais espontâneo. Eis aqui uma definição universal? Quem dera, mas penso que são apenas as instruções de que falava antes a respeito do que o leitor poderá encontrar neste apanhado.

Possivelmente, as crônicas e textos reunidos neste volume tenham em comum a diferenciação dos demais gêneros do que uma fórmula própria. A ausência de fórmula e premeditação, aliás, é o que sempre me levou a escrever com a displicência necessária a quem deseja escrever para nada comprovar, pelo ímpeto de traduzir em palavras pensamentos e situações que poderiam muito bem passar sem qualquer registro. Ninguém notaria sua falta. Todavia, depois de escritas, tornam-se indispensáveis. Parte mesma das coisas quaisquer que sejam elas: as “coisas”.

O que eu noto mesmo é que nesse conjunto que segue há uma pobreza impressionante de metáforas. Também não há símiles. Dito isso, sabe-se então que a poesia não pode estar erguida sem esse sustentáculo retórico que a ergue no ar, com sua solenidade tamanha. Não. Nestes textos, não há solenidade a não ser aquela encontrada ao acaso nas ruas, onde se tropeçou nela e se a encontrou e abraçou como um pensamento comum, ordinário, reconhecível à distância, do caráter mais humano –  e por isso falível – do vivido e pensado ao  escrito.

Por essas razões (e outras que não me ocorrem agora), o que vem a seguir não tem uma linha temática, um estilo, uma abordagem ou uma proposta definida. De tudo o que tenho escrito, são as coisas menos projetadas. Não eram exatamente para dar em livro, deram ares nas redes sociais, às vezes algum veículo as publicou e muitas vezes foram pensamentos que sem muito esforço nasceram e vivificaram. Não são poemas, mas podem eventualmente trazer o poético. São quase contos, sensações do momento, impressões de alguma coisa. São as coisas outras que nunca almejaram o literário e só mesmo a crônica em sua liberdade e despojamento poderia abraçá-las nessa intenção desfeita em pouco, agora registrada em livro.

Lambaris

De corretivo, nada de pesca, nada de pandorga, de bulitas, de coisa nenhuma. A não ser a cópia infinita num borrão, até a perfeição das lições mal aprendidas, nadica de nada.

Sem poder arredar o pé de casa, era até bom que o inverno chegasse de uma vez, assim ficavam sacramentados três ou quatro meses de chuva sem fim, sem pátio, sem nada o que fazer a não ser a maldita e sagrada obrigação que me levaria num milagre do esforço à correção da correção, à perfeição da perfeição.

Mas quem explicaria isso ao Miguel ou conseguiria convencer o diabo de que é preciso respeitar o que a mãe diz, caso contrário, Deus o livre, nem é bom pensar na fúria de que ela vai se tomar?

A mãe brava não queira ver… Tu já viu? Até o pai, naquela sua gabolice, enfia o nariz dentro da gola da camisa, se esquiva, desaparece. Até a chuva cessa um tanto a fim de ter certeza se é certo que continue a cair ou espere a fim de receber por novas ordens. Assim é que são as coisas.

Mas o Miguelito, no seu modo de pensar, ele não entende porque raios a punição para as minhas notas miseráveis no colégio deveriam se estender até a sua vida. É claro que ele tinha razão, porém ter razão não adianta de nada; quando a mãe decide, só sendo um desatinado pra desobedecer.

Apenas que esse guri maldito, o meu irmão mais novo, era mesmo um desatinado e resolveu fugir pela janela disposto a desafiar cada letra das proibições sumárias que ela editou logo ao ver o meu boletim, aquele documento que atestava que, apesar de estar há quase um ano vivendo por aqui, eu continuava um selvagem, alguém com tanta experiência de vida quanto um recém nascido e que do nada precisava se entender com o mundo, colegas, professoras, regras, regras e mais regras. Regras de todo mundo: entra aqui, sobe ali, senta quieto, come direito, te ajeita nessa cadeira.

Eu vi mesmo que ele andava há dias espreitando sobre a mesa da cozinha cada mosca que pousava ali, mas não atinei no que ele queria, pensei que andava só brincando. Igual a um felino, vigiava as bichinhas e, quando vê, zás, tapava-as com um copo ou com a mão emborcada. E fazia umas armadilhas com açúcar e um pouco de água, uma gosminha doce, e as moscas vinham, juntavam-se como num ritual em torno daquilo e ele implacavelmente pegava todas, até as mutucas, colocando tudo num pote de iscas.

Eu perguntava a ele, nem sei por quê, o que ele andava planejando. “Nada, me deixa”, ele respondia e seguia sua coleta sistemática. Nem sei como deixei que ele continuasse com aquilo, um troço nojento, mas era claro o que ele queria, era pescar lambaris, só que eu andava muito mais apavorado com as contas de fração que agora tinham resolvido de cobrar na prova de recuperação.

O certo é que eu não pensava em pescar nem em nada, só na prova e, não devo mentir, em alguém que do nada me tirou as vontades de brincar de uma vez só e como que me estaqueou na garganta uma dor estranha, dor sem dor, que eu ainda não entendia o que era, mas que também parecia que ia estragar meu ano porque tudo de repente dava errado na minha vida e os outros me levavam por diante como se eu fosse um jabuti do arroio que a molecada vai chutando pela frente na falta do que fazer.

O Miguel era só mais um que vivia indiferente aos meus problemas e nem sabia que eu tinha agora uma colega nova, vinda de Pinheiro Machado, e que tinha uns olhos cor de goiaba, uns cabelos encaracolados de uma cor de melado, que sei eu, que me impedia de entender qualquer coisa a não ser ela, a sua figura entrando na sala, a sua figura saindo, indo-se embora pela alameda sem que eu me animasse a me aproximar, imagine acompanhá-la.

Mas isso tudo era problema meu. O dele, era que havia decidido de qualquer modo que iria pescar porque, afinal, maio se aproximava e, caso não aproveitasse agora, depois só de novo na primavera. E aí já passou tempo demais pra alguém de nem cinco anos trancado dentro de casa tal uma jaguatirica engaiolada, um demoniozinho que logo também seguiria para o colégio, o coitadinho.

Já do lado de fora de casa, ele me olhava inconformado com a sua atitude; eu, a ele com a sua. Porém não me restou alternativa a pular a janela e seguir a trilha que os seus pés deixavam no caminho marcado dentro do pequeno pátio até o cercado que delimitava nossa casa do restante do mundo que entendíamos: o arrabalde onde viéramos para viver há menos de ano. A metros dali, cruzando o caminho de chão, a essas horas o arroio sesteava e nos esperava com suas bacias de pedra e criadouros de piabinhas, cascudos e carás.

Mas no meio do caminho, vinda detrás de nós, de casa provavelmente, a mãe nos gritou: “Migueeeeel! Antooooonio! Mas onde vocês pensam que vão?!!”

Nada mais nos competia fazer a não ser atirar no pastiçal o caniço de pesca e tudo o mais que pudesse nos incriminar, porque cada coisa flagrada conosco era um agravante potencial que ampliaria a pena e a punição em dobro, triplo, quíntuplo… As penas da mãe sempre descomunais, calculadas em cóleras que, às vezes, do nada passavam em seguida, como se aplacada por um senso repentino de justiça ou súbita clemência. Pensava que tomara fosse daquela vez também a nossa sorte!

Mas se eu era meio selvagem ainda, nem sei o que se poderia dizer do Miguelito… Tentando livrar-se inutilmente do pote no seu bolso de trás, ele conseguiu apenas arrancar a tampa da coisa com os seus dedos gordinhos. A cena não parecia de situação normal, mas parte das moscas e insetos que ele havia juntado começaram do nada a voar por sobre as nossas cabeças, do modo de um desencantamento.

Parada a meio caminho, a mãe parecia procurar entender o que se passava e nisso o Miguel viu que dentro do pote ainda sobravam algumas cujas patinhas haviam sido destruídas ou amassadas, e por um senso de proteção estúpido passei os dedos no fundo do pote, peguei tudo o que podia e num supremo desafio à autoridade da mãe enfiei aquilo tudo na boca tirando a mão de volta mais nua que a lua nova.

Sim…

Bem em nossa frente, ela me olhava como se perguntasse o que eu fazia ali que não estava estudando. E logo nos ameaçou com visível impaciência: “Vocês são uns diabos… Sempre teimando comigo…”, mas parecia já ter entendido o que se passava e se acalmado. Olhava para o céu como num lamento solene e divino que às mães é dado a aprender junto ao nascimento dos filhos.

“Pensei que estavam indo pescar…”, disse. E em seguida continuou: “E até que não é má ideia, mas parece que perderam as iscas…”, tomando do chão o caniço de taquara que eu havia tentando ocultar por ali. Segurou a mão do Miguel que me olhava boquiaberto e disse: “Vou com vocês dessa vez, pra não perderem muito tempo”, mas logo pensou melhor e redistribuiu as ordens: “Pensando bem, vou eu e tu, Miguel. Antonio, tu volta pra casa pra estudar pro teu exame!”

Pensava nos pobres lambaris que teriam de se entender com aquele tipo de gente que enxergava ao longe passando o arame e indo ao seu encontro. Então meu estômago revirou e me fez expurgar os vestígios do crime pelo qual já me encontrava, a essas alturas, até absolvido e fui de volta para casa e voltei às minhas contas incompletas. Sem poder me concentrar, olhava pela janela e pensava que finalmente um dia estaria longe dali, adulto, e até casado com essa minha nova colega, desde que ela nunca soubesse de todos os segredos que minha boca guardava.