Arquivo da categoria: Crônicas

A máquina de desaparecer

Foi na casa de uma tia onde me hospedava, criança ainda, que encontrei o primeiro espelho de desaparecer.

A máquina era estática e dependia de que eu a movesse com as mãos: funcionava caso eu acionasse as portinholas laterais. A maior serventia do espelho era fatiar o rosto em reflexos e desvios infinitos, de modo que não fosse possível encontrar o foco a não ser se ele estivesse planificado como uma lagoa, mas aí perdia sua magia e razão de ser.

Era um espelho que permitia o fitar, e cujo maior atrativo mesmo era o de fazer desaparecer. Pelo menos essa parecia ser a sua vontade, embora, por necessidade, servisse também ao propósito do reflexo perfeito.

Foi ali que pela primeira vez levei uma lâmina de barbear à face de menino. A lâmina descartável de um primo quase desconhecido que o instrumento guardava numa das portinholas. Por um momento rápido, a lâmina aproximou vertiginosamente nosso parentesco e o sangue de um e de outro, mesmo que em tempos distintos.

O primo era alguns mais velho do que eu, mas o suficiente para que me tratasse como criança. E quando nos encontrávamos no longo corredor da casa, sempre parecia que era a primeira vez que me via na vida, tornando minha presença estranha ao lugar, a sua família e suas coisas.

Naqueles dias frios de julho, a mãe faria em Porto Alegre uma cirurgia de vida ou morte e eu me enfiava sob as cobertas sem saber se acordaria órfão ou não. Com as mãos tremendo entre os joelhos e olhos esbugalhados no nada, sentia a presença de uma pequena luz amarela que se movia no escuro do quarto de dormir e só aquilo me acalmava e induzia ao sono. Nada mais me concentrava a atenção.

Todas as manhãs daquela hospedagem involuntária, eu encontrava o espelho já em funcionamento. As portinholas abertas me desviariam para sempre se não as endireitasse.

Eu gostaria de que não me enxergassem nem ali e nem no colégio notassem muito a minha presença e os fiapos de barba que cresciam em meia lua sob os maxilares. Para isso, agora eu tinha de ferir minha própria face, a pele quase imberbe e ainda delicada como a de um anjo tornando-se áspera e os olhos da adultez fulminando a criança que ainda teimava em usar um mero espelho como uma máquina de desaparecimento.

A vida mesmo é outra coisa

Há um tempo já recebi um convite inusitado. Para mim pelo menos, completamente inusitado. Tratava-se de escrever uma biografia de uma pessoa viva. Instantaneamente eu o recusei.

Não que eu considere que os vivos não possam ser biografados, afinal não há nada que impeça isso e biografias de pessoas vivas, especialmente celebridades, são abundantes. Não que eu tivesse pudor de qualquer espécie em saber detalhes íntimos de alguém para realizar uma encomenda assim. Não é nisso que estamos sempre interessados ao querer entender uma pessoa? Entender o que move suas decisões? Seus sentimentos e motivações mais entranhados? Estou querendo dizer que somos todos um pouco fuxiqueiros? Claro que somos!…

Porém não é disso que se trata e a pessoa em questão tem uma história de vida, que conheço en passant, duríssima. Dificílima mesmo. E o primeiro que me veio em mente foi que seria duríssimo para mim também contá-la de qualquer maneira, porque não saberia me desvincular da pessoa biografada. Não tenho essa capacidade de distanciamento de ouvir um relato e não me envolver emocionalmente com ele.

Por isso que prefiro escrever ficção a tratar rigorosamente da realidade. Na ficção, por pior que seja uma situação humana, há uma projeção e uma certeza antecipada de que, terminada a narrativa, nada terá acontecido de real a ninguém. Mesmo na pior tragédia, não restarão mortos e feridos e isso representa um alívio considerável a quem escreve, embora sua intenção possa ser muitas vezes erigir uma vida como se real ela fosse. Felizmente, pelo menos no meu caso, não é. A realidade é intocada pela ficção e a maneira mais efetiva que um escritor pode contatá-la eu acredito que seja, por contraditório que pareça, por meio da poesia. Isso porque a poesia fala diretamente com o real, ainda que de modo simbólico e metafórico, mas num real sentido mais do que aquele vivenciado e partilhado nas narrativas.

Outra coisa a considerar é que um relato é sempre ficcional. Qualquer um que relate um fato ou tente apreender e representar a realidade de outra pessoa irá fatalmente depositar suas impressões ou pelo menos estabelecer um ângulo específico de apreciação. Nem sobre a própria vida é dado ao ser humano, afinal, ser rigorosamente imparcial e sincero. Muito pelo contrário! Quantos, ao falarem de si mesmos, não acabam aplicando-se um lustro exagerado ou sonegando sombras comprometedoras? Talvez, num inquérito policial, ou em juízo, alguém poderia ser totalmente imparcial consigo mesmo e relatar os fatos com concretude total. Ainda assim, ao tratar da motivação humana, toda essa arquitetura realista simplesmente evapora. Sobram impressões, antevisões, tentativas, aproximações, receios, pudores – coisas assim.

Por isso, pelo menos no que diz respeito a mim, a subjetividade dificilmente comporta uma narrativa e fazê-la com competência requer um tipo de empreendimento literário altamente complexo que nem se produz muito hoje, como no Brasil Clarice Lispector ou Lucio Cardoso fizeram tão bem nos anos 50 do séc. XX.

Porque variável por natureza, a subjetividade é o reino da poesia. E, por mais apreço que eu possa ter ou vir a ter para com alguém, jamais me sentiria capaz de subjugar à linearidade narrativa que uma biografia exige a subjetividade de quem quer que seja. Daí a necessidade de expurgar de mim a psicologia dos outros na ficção, porque simplesmente chega um momento em que um personagem não cabe mais dentro da gente (o tal “outro” também não cabe inteiramente a não ser num delírio benevolente ou na santidade), precisa ganhar vida própria, mesmo que uma vida imaginária, e encerrar sua trajetória e calar sua voz dissonante para sempre.

Porque a vida real é muitas vezes insuportável de ser conhecida em detalhe, criou-se talvez a ficção. Para que pudéssemos tomar conhecimento das piores tragédias, mas com a possibilidade de fechar o livro e nunca mais se incomodar com isso. Porque a vida mesma, bem, ela é inteiramente outra coisa.

Autenticidade poética

Se alguém procurasse recuperar o que de relevante se passou na poesia rio-grandense no ano de 2022, dificilmente poderia deixar de registrar a descoberta de um poema inédito de Mario Quintana no interior de um dos 5.000 exemplares obtidos de uma coleção particular por um livreiro de Porto Alegre.

Jornais e leitores de todo o país correram para anunciar a descoberta, assim comprovando a vitalidade e o interesse que o poeta ainda desperta Brasil afora, quase 30 anos após a sua morte.

Apesar de trazer sua assinatura ao final do poema, logo se procurou verificar sua autenticidade. Fizeram-no o professor e diretor do Theatro São Pedro, Antônio Hohlfeldt, e Gilberto Schwartzmann, escritor e presidente da Associação de Amigos da Biblioteca Pública Estadual do RS. Uma vez “certificado” o original, o poema foi adquirido pela associação para daí ser doado ao acervo da Biblioteca e exposto na Casa de Cultura Mario Quintana entre outros manuscritos e objetos do poeta.

Fico eu pensando: mas não bastaria bater os olhos nos versos do poeta para saber-se que não é uma falsificação?

E penso mais: como é que se poderá daqui a 30, 50 ou 70 anos investigar a autenticidade de um inédito de quem quer que seja? Como é que se poderá saber que um poema corresponde a uma autoria quando somos inundados por deep-fakes inacreditáveis de tão perfeitas? E o que dizer da imensidão de adulterações, repetições e falsificações que trafegam internet afora sem qualquer certificação?

Por uma “dicção” particular não será. Sabemos pelo exemplo de Quintana, que é um poeta dos que se costuma denominar por “inconfundível”.

Neste ponto, vivemos num tremendo impasse. Por um lado, não se imagina que se possa refrear a pulsão informativa das redes, muito menos filtrá-la. Uma iniciativa desse porte exigiria o emprego de inteligência artificial e, até onde eu sei, não há como se programar o gosto estético do que é puramente técnica, ou garantir sua incorruptibilidade. Por outro, a noção de materialidade da obra escrita esboroou-se, tornando impossível sua organização; isto significa que as bibliotecas não têm mais condições de comportar tudo o que é escrito e os meios dissolvem-se na tentativa vã de abarcar o aluvião digital.

Mesmo com isso, o impasse da autenticidade permanece.

Tudo o que poetas de todos os tempos sempre aspiraram foi a ambição de não serem confundidos com ninguém, mas aí, de repente, se faz necessária uma investigação.

A bem da verdade, ninguém aceita muito bem a despersonalização de um estilo, nem sua generalização. Todavia a vida digital assim exige. É uma imposição do meio que todo o publicado seja automaticamente liquidificado. E a todos se exige uma espécie de self adaptável, como o os oferecidos pelos apps de “desenho” inteligente.

Como vai ser isso no futuro, é no que eu fico pensando. Alguém comprará um poema inédito de alguém para expor aonde? Numa biblioteca? Biblioteca de que espécie? De postagens do Instagram?

¿Que sé yo?

Os velhinhos do Centro de Porto Alegre

Entre a José Montaury e a Rua da Praia, num remoto ponto quase ao centro da Galeria Chaves, há um café no qual uma eterna reunião dos velhinhos do centro está sempre acontecendo.

Ninguém sabe quando o primeiro chegou até ali, mas fato é que o centro de Porto Alegre é gris como a cabeleira dos velhinhos que ainda não a perderam. Às vezes, de passar sem pressa naquele túnel, sento-me perto deles para ouvir-lhes algo. Algo de que os roube para uma crônica e não lhes falte, que não se rouba nada aos velhos. Isso não se faz.

O interessante deles, em sua conversa, é que os fatos políticos fazem confusões como a escalação dos clubes. E ninguém liga. Parece muito natural. Num alvoroço comedido, eles dizem que o Manga não podia ter tomado aquele gol tão fácil assim. Que o Brizola está na Austrália sem o que fazer, podia voltar e agitar a cabeça de quem às vezes nem parece tê-la. E outras sandices que parecem começar numa década, passar por outra e acabar em nenhuma, com seus olhos meio parados lamentando o futuro que não conhecerão.

Hoje cedo passava ali e notei um livro numa livraria nova e parei para olhar melhor. Nas mesas do café, um velhinho só, como um farol à espera de uma fisionomia conhecida. Sempre resta um, eu já disse. Menos quando as portas fecham no fim da tarde e eles somem como uma espécie de fantasmas vivos. Na calada da fatalidade da noite.

É o último dia da livraria, ela diz. Amanhã não estará mais ali. O ponto, diz a vendedora, se tornou caro demais para tão poucos leitores. O lugar é estranho e a vendedora diz que é a última livraria do centro. É a última que tenta vender ainda livros novos, de acordo com ela. Mas me parece que há outras, digo-lhe. Ela não sabe. As outras são sebos nas quais os velhinhos vivem a resvalar os olhos desinteressados em livros que não lerão mais do que o nome na capa e o título, pois eles já leram demais.

Apesar dos passos lentos, os velhinhos do centro desenham itinerários precisos nas ruelas. Mal um foi visto entrando ou saindo da Martins ou da Aurora, outro está atravessando a Praça da Alfândega. Sem sentarem-se, lógico, pois há os assaltos previsíveis e os achaques infalíveis.

Os passos lentos procuram caminhos mais curtos e às vezes somem nos táxis sem mais explicações. Para voltar amanhã, se o futuro assim permitir.

Ainda estrangeiro aqui, depois de tanto tempo, o único destino que me permito sonhar em Porto Alegre é me tornar um velhinho destes. Se é que já não me tornei..

A Pedra do Segredo

Numa das estreitas furnas que se podem ver nessa rocha gigantesca, diz uma lenda corrente na região de Caçapava do Sul ser o lugar onde foram depositados os ossos do cacique guarani José Tiaraju, o Sepé. Junto aos ossos, haveria também incertos tesouros em prata e ouro dos jesuítas que muitas pessoas se animam ainda a procurar. Até hoje, nem uma pataca parece ter sido efetivamente encontrada.

O lugar fica nas bordas do escudo rio-grandense, na Serra de Santa Bárbara, não muito distante do centro da cidade de Caçapava. Apesar da aparência monolítica, na verdade trata-se de um imenso amontoado de pedras gigantescas desabadas umas sobre as outras desde que não havia vida no planeta. É o que explica as grutas e cavernas que atravessam de lado a lado o monte de pedras gigantescas. Nas frestas entre as pedras sobraram espaços de circulação e escoamento e assim se formaram as furnas.

Chama-se Caverna da Escuridão o lugar no qual o enterro de Sepé supostamente possa ter acontecido. Lugar assombrado, dizem, onde as fogueiras se extinguem e fantasmas dos indígenas afastam os visitantes mais atrevidos.

Eu nunca estive lá. Conheço a história de ouvir falar e ler a respeito. Como é uma lenda, também tenho minhas suposições.

O que eu mais fico pensando é como se poderia ter certeza mesmo que o Sepé supostamente enterrado ali se trate do alferes guarani.

“Sepé” é um nome que muitos caciques adotaram entre os guaranis reduzidos e também entre as nações infiéis. É um termo, aliás, originado na nação charrua e não na tupi, das pouco mais de 70 palavras que resistiram do idioma original dos indígenas que povoavam os campos do Uruguai e o sudoeste do Rio Grande do Sul.

Na língua dos charruas, significa o correspondente a “sábio”. É o que diz o Códice Vilardebó, que sistematiza a sua língua e foi compilado em torno de 1840 por um dos fundadores da Biblioteca Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico do Uruguai.

Não que seja improvável que o alferes de São Miguel tenha andado por aquelas bandas que integraram antes da Cisplatina a maior de suas vacarias, chegando ao limite do Forte de Santa Tecla, em Bagé. A cavalo e com pouca carga, uma viagem de duas luas bastava para ir até os limites dos territórios em domínio dos jesuítas e guardados pelo exército de guaranis. Nos campos de Bagé, há registro de sua passagem, inclusive do diálogo com os demarcadores dos dois países ibéricos, logo do tratado de Madri que deu origem à guerra guaranítica.

Não muitos anos depois que Tiaraju morreu em combate, em 1756, a nação charrua do sul foi espremida em direção ao massacre de Salsipuedes, em 1831. Salvaram-se cerca de 70 indígenas, fora os que foram foram levados a Paris para estudo e exibição. Em plena campanha de independência, os charruas foram declarados inimigos públicos dos novos governantes e encontraram guarida nos acampamentos dos republicanos farroupilhas. O último cacique charrua chamava-se Polidoro e adotou (mais certo que adotaram para ele) o nome de Sepé, decerto uma homenagem a sua liderança. Nas escaramuças dos farrapos, viajaram o Rio Grande inteiro, inclusive Caçapava do Sul.

Este segundo Sepé teria vivido até o ano de 1864 e morrido em Tacuarembó, no Uruguai. Antes disso, viveu no Brasil e assistiu os remanescentes de seu povo morrerem um a um de varíola, até restarem os três últimos do seu toldo, ele e seus filhos, que não deixaram descendentes. Diziam ser o mais destemido dos charruas e antes que o passassem a cuchillo safou-se sempre com um sexto sentido inato para a guerra. Um guerreiro como poucos. Como não há um livro ou filme sobre uma pessoa assim até hoje?

Antes da colonização, como a maioria das cidades da fronteira, Caçapava do Sul foi um acampamento dos indígenas. Eles escolhiam para viver lugares estratégicos, de passagem, com boas aguadas e fartura de caça e pesca. Mas à chegada dos colonos, eram espantados para o interior dos campos, tornando-se ainda mais nômades e dependentes do roubo dos animais que agora povoavam a região. Um povo que vivera pelo menos 5.000 anos numa grande nação estável, em menos de 200 desapareceu completamente e de uma forma especialmente cruel: pelas mãos de um antigo amigo militar uruguaio a quem haviam servido, mais tarde vingado, dizem, por este Sepé menos conhecido. O militar era sobrinho do presidente Fructuoso Rivera.

Daí que ser um povo sem paradeiro nunca foi uma escolha dos indígenas, mas uma contingência. Que andaram entre as margens da Lagoa Mirim e do Rio da Prata é sabido. Seus vestígios são escassos como precária era sua tecnologia. Para guerrear, nunca usaram as armas dos homens brancos. Seus túmulos eram de pedra e tinham nos minerais sua fonte de setas e ferramentas. Quando morriam, matavam seus cavalos, que cobriam seus túmulos. As mulheres amputavam um dedo da mão a cada membro que perdiam da família. Há relatos militares de mulheres e anciãs encontradas sem nem um dedo nas mãos… No luto, ao invés de pranteá-los, gritavam seus mortos por uma lua. Depois, seguiam viagem.

Se há um Sepé que deveria ser enterrado ali dentro desse magnífico geomonumento é este segundo, mas é provável que não haja vestígio de nem um deles. O nome do primeiro ter batizado o segundo deve ser o bastante para servir de amostra do que foi o vulto de Tiaraju, e seu poder.

É triste que se saiba tão pouco a respeito dos povos originários, os chamados índios-vagos: aqueles sempre arredios e esquivos do convívio com o homem branco. Certamente intuição não lhes faltava, muito menos disposição para enfrentar a luta pela sobrevivência e a morte. Os azares da guerra.

O mais é como o nome da imensa rocha. É segredo.

Eufrates

Nesses dias chuvosos de julho, para mim é impossível não lembrar da campanha.

Lá fora, os campos da família ficavam entre o arroio do Tigre e o Camaquã, vulgo Eufrates por ali.

Quando chovia muito, não dava vau. Até determinado volume, abafando-se o motor e passando muito vagarosamente pela ponte, fazíamos a travessia às vezes com a caminhonete quase sendo suspensa na água.

Não é uma experiência lá muito confortável..

Para decidir se era viável a travessia, era preciso ter bom olho para aquelas águas que haviam levado consigo muito gaúcho a tobiano… Nos seus melhores tempos de vaqueano, o pai tinha esse olho e nunca se colocou em risco. Sobreviveu às cheias, quero dizer. Diz ele que algumas vezes por um pouquito só..

A alternativa ao caminho das águas consistia no caminho de dentro, o “das porteiras”… O caminho das porteiras competia em atravessar o passo do Tigre por dentro dos campos dos vizinhos e as porteiras eram várias mesmo. Alongava a viagem em algumas horas e alguns repechos, mas se chegava à cidade.

Em situação extrema, de necessidade de estar na cidade, era a única forma. As porteiras eram livres à passagem, mas, sendo inviável por um atoleiro mais pesado, ninguém se importava que se removesse um ou dois moirões e deitasse o arame para cruzá-lo. Lembro-me bem de segurar com as mãos a guajuvira mais pesada que a força disponível nos meus braços de guri. Lembro-me também que, a despeito da trabalheira, molhaceira e embarramento, tinha tudo aquilo um gosto de aventura verdadeira. Divertido não era, mas a cumplicidade pagava o custo daquelas jornadas. Uma latinha de figada era a refeição de um dia muito maior que o normal dos dias…

A estrada que liga Olhos d’Água a Bagé ainda hoje é a mesma. Caminhozinho de terra batida que na ida levava a família como força de trabalho, às vezes um adolescente contrariado, mas que na volta às vezes tinha disso. Se é que completamente de lá se volta um dia.

Laranja mágica

Quando eu tinha acho que uns oito ou nove anos, mais provável que nove, fiz amizade com um menino muito pobre, de uma família que consistia nele apenas e sua mãe.

Moravam os dois numa casinha porta e janela de uma transversal da nossa rua, num prolongamento de chão batido que margeava o arroio morto e alagadiço do Povo Novo, em Bagé. Um lugar sempre úmido e que, nos meses de inverno, parecia de um frio ártico, mas, na realidade, era ainda um pouco mais frio que isso, porque lá a geada chegava antes.

Lá eu estive pela primeira vez a seu convite porque seria o “dia da laranja mágica” e como eu havia lhe emprestado a minha bicicleta para ele dar duas voltas no quarteirão sem pedir de volta, ele disse que seria sempre meu amigo e que, pela minha amizade, dividiria a única laranja mágica daquele ano comigo.

Era um anúncio estranho porque, afinal, para mim, laranja era tudo igual. Não entendia como poderia haver uma que fosse mágica do modo que eu entendia as coisas mágicas, isto é, soltando raios e etc.

Na sua casa, atravessamos um corredorzinho tão estreito que quase precisamos passar caminhando de lado e chegamos a um portão que parecia dar para um pátio, mas um pátio sem fim, sem muros, sem margens, como fosse a campanha. A menos de dois passos, uma laranjeira quase nua, com os galhos tomados de parasitas, limo e líquen e uma barba de ancião. Árvore anã que alcançaríamos mal estendendo o braço e na qual uma laranja só, uma única laranja de tamanho normal, aparência levemente ruim, cascarrenta mesmo, parecia dormir na árvore miserável. Eu entendi que era ela a laranja mágica, mas respeitosamente silenciei quando ele ergueu o braço, arrancou o fruto e o depositou em minhas mãos.

Eu estava tocando o seu umbigo quando ele me chamou com um “Vem!” para dentro de casa. Disse mais com o gesto de cabeça do que com o convite e fui seguindo seus passos até dar numa pequena cozinha na qual cabia apenas uma mesa de fórmica e duas cadeiras, um armário de chão, o fogão a lenha e uma geladeira que devia regular de idade com a árvore.

“Onde tá tua mãe?”, perguntei-lhe intrigado com a casa totalmente aberta, sem chaves, com apenas a porta encostada. “Limpando”, explicou e entendi que estava fazendo isso a trabalho, mas não perguntei mais nada. Sentados um de frente para o outro, com a laranja posando como um troféu dentro de um prato Duralex, ele disse para que eu me preparasse e, mais rápido que eu entendesse, ele como que enrolou e desenrolou a laranja das mãos voltando completamente descascada, branca como uma lua nova, sem uma rugosidade, sem um naquinho de casca.

“Prova!”, ordenou, e colocou-a de volta no prato.

“Anda, come toda!”, impacientou-se. “Come duma vez!”, repetiu como se estivesse bravo e eu obedeci. Como um favo de mel, o fruto drenou para dentro da minha boca e eu percebi que tinha uma sede imensa, ancestral, que a laranja me saciava e era como eu sentisse a sede morrendo e o bem estar da fruta me inundava e, então, engoli toda aquela laranja enquanto ele ria, ria a não poder mais, como se eu lhe providenciasse um espetáculo insólito, uma bestificação.

De volta ao pátio, a noite fria de inverno, escura, anunciava-se tenebrosa ali, pois a rua não tinha iluminação pública. Pela vidraça, notamos que sua mãe regressara e já acendera a luz da cozinha. Sem mais frutos, a laranjeira parecia estéril e nua como o contorno da lua nova no céu marinho.

Minha hora de voltar estava chegando e eu não sabia o que dizer ao meu novo amigo, mas precisava voltar para casa. Olhei a bicicleta encostada junto à porta e passei por ela sem remorso, não a levei comigo. Minha casa não era tão longe que eu não chegasse a pé e logo haveria um Natal que o pai me desse outra, se tudo andasse bem no colégio. Que me custava andar? Diria ao pai que a perdera numa aposta, uma questão de honra incontornável. Eu já ia pra dez anos dali a um pouco, uma boa idade pra sentar o juízo.

Artes do esvaziamento

Não sabia que Dan Brown, do “Código da Vinci”, fosse pianista e compositor. Parece que é. É de sua autoria uma certa “The Wild Simphony”, peça sinfônica muito bem elaborada, pelo menos na minha opinião. É inspirada na vida animal e com apelo infantil.

Não conheço muitos escritores bem sucedidos que também sejam compositores musicais. O outro que lembro é Anthony Burgess, de “Laranja Mecânica”. Não dá pra dizer que é coincidência, mas ambos têm uma visão muito semelhante da relação da música com a escrita narrativa.

Numa entrevista a Paris Review, Burguess disse que “aprende-se bastante (no planejamento de romances) com formas musicais.” Dan Brown, noutra oportunidade que “escrever e compor são atividades muito, muito parecidas”, e que teriam a mesma espinha dorsal.

É um raciocínio simples: artes de composição demandando organização e etc.

Interessante notar que, por outro lado, compor ou executar um instrumento não tem a mesma capacidade, ou seja, não ensina ninguém a escrever. Não quero contradizê-los simplesmente, porém essa me parece uma conversa meio de botequim. Claro que tem fundamento a analogia, mas não é uma necessidade. Desnecessário também contra argumentar apresentando-se autores completamente analfabetos musicais.

Prova de que eles estão errados? Não é isso. O que eu penso é que essa intercambialidade no que diz respeito a narrar empobrece poeticamente o gênero narrativo. Os livros de Dan Brown, por exemplo, me parecem padecer desse problema, são secos como roteiros. Os de Burguess eu não posso comentar, só conheço “Laranja Mecânica” e é um livro pancada mesmo, literalmente duro de doer. Parece que ele tem uma vasta obra inédita, não sei bem, realmente não conheço.

Mas o que me soa mal nessas declarações, afinal de contas, é que ambos buscam na música uma razão quase estruturalista de justificação, quando a música é por excelência a arte da intuição e sugestão.

Hoje passei a tarde escutando esse disco de Keith Jarrett, um programa de pouco mais de uma hora de duração com algumas sonatas e adagios. Eu realmente gosto muito de Jarrett e sua capacidade de improvisação é um dom espantoso que atendeu a poucos seres humanos (hoje Jarrett não toca mais, após ter sofrido pelo menos dois acidentes vasculares graves). Essa peça, de acordo com ele, também é uma improvisação. Ele diz que se guiou com toda a liberdade possível e por um desejo não de exibir uma obra, mas de meditar e louvar a beleza da arte musical.

“Na verdade, todas estas peças nascem de um desejo de elogiar e contemplar e não de um desejo de “fazer” ou “mostrar” ou “demonstrar” algo único. São, de certa forma, orações para que a beleza permaneça perceptível apesar das modas, intelecto, análise, progresso, tecnologia, distrações, “questões candentes” do dia, a falta de modismo de crença ou fé, programação de concertos e o não natural “cena” da “arte”, do mercado, dos estilos de vida, etc., etc., etc. Não estou tentando ser “inteligente” nessas peças (ou nessas notas), não estou tentando ser um compositor. Estou tentando revelar um estado que acho que está faltando no mundo de hoje (exceto, talvez, em particular): um certo estado de rendição: rendição a uma harmonia contínua no universo que existe conosco ou sem nós”, é o que diz na contracapa do disco e que encontrei na Wikipedia.

Não tenho dúvidas que Jarrett nunca foi um romancista, pelo menos nos moldes preconizados pelos dois primeiros. Mesmo assim, sua linguagem é intercambiável com a literatura, ao menos com a poesia, pois a coluna cervical da poesia é música. Não estou falando em métrica, mas em música (ritmo, harmonia, melodia).

A minha forma de ler e escrever poesia (não só poesia) é pela música. Uma vez, uma amiga compositora e cantora me disse exatamente isso: aqui tem música. Não música canção, de cantar, mas música interna. E outra amiga querida, excepcional leitora e editora, uma vez também me revelou quase o mesmo: disse ela que lê poesia de ouvido. Esse estado rarefeito da música, encantatório, também é o que me traz a poesia. Quando eu sinto que ela por sua vez consegue o mesmo, como imitar a música, é porque ali deu certo. Ali funcionou. É como fosse uma germinação e que, depois, adquire vida própria. Em verdadeira arte de crueldade, o poeta só fica mesmo com a falta. É o mesmo que me acontece com a música: um esvaziamento do espírito.

Em casa de respeito não se entra pela janela

Nem que eu quisesse podia entrar na casa da minha avó pela janela. A bem da verdade, sempre faltaram-me pernas para isso e uma repreensão silenciosa da minha mãe fazia com que eu rapidamente entendesse que era bom que ali eu suspendesse as molecagens. Estávamos indo na casa da vó e era bom para a minha saúde que eu me comportasse. Tivesse modos, como ela dizia.

Ao invés disso, eu deveria percorrer passo a passo os corredores do prédio de poucos andares até chegar, quase ao fundo do corredor, à porta que separava o mundo da cidade daquele mundo privado onde viviam meus avós e sempre tinha alguém de passagem ou visita.

A casa da minha avó sempre foi uma casa de visitas e, a despeito da sala espaçosa, nós, seus familiares, preferíamos ficar no quarto do casal. Lá, eu tinha a impressão (ou certeza) de que era um lugar onde o frio jamais poderia entrar. Era como se a temperatura ideal fosse combinada previamente com alguma divindade meteorológica que mantinha a salvo do vento Minuano o ambiente que mais frequentávamos no apartamento de frente ensolarada onde eles viveram enquanto viveu o meu avô.

Depois de sua morte, a vó veio viver em Porto Alegre e o apartamento em que veio para morar com uma tia logo adquiriu aquela mesma propriedade térmica: nunca frio demais, nunca exageradamente quente. A verdade é que aquela condição partia dela mesma. Embora não fosse pessoa espalhafatosamente calorosa, a vó tinha uma energia e vitalidade realmente impressionantes. E essa vitalidade contagiava o ambiente.

De repente, do nada sinto uma saudade absurda de ser conduzido à casa da vó para visitar alguma tia que estivesse de passagem na cidade – o que significava também a oportunidade de reencontrar primos que moravam longe e via muito esporadicamente. Criança, no entanto, não me permitiam que fosse muito longe e desse modo eu ficava mesmo era “ao pé” da mãe, como um bezerro em cria, ouvindo a conversa dos adultos enquanto o solzinho cozinhava vagarosamente o ambiente ensolarado do quarto da vó sob o olhar econômico e silencioso do meu avô.

Às vezes, mandavam-me à padaria comprar alguma bolachinha (em algum outro lugar do mundo se diz “bolachinha”?) ou alguma coisa na mercearia da esquina. Naquelas tardes intermináveis em que o futebol da rua havia sido suspenso por liminar materna e, claro, sem celular nem wi-fi, tudo o que havia para fazer era ficar sabendo da vida social (às vezes particular) por comentários aleatórios que elas faziam enquanto tomavam o chimarrão com florzinha de macela e espocavam a crocância das bolachinhas que eu havia buscado. É ridículo falar em internet naquela época, mas assim quero dizer que estávamos sempre presentes no próprio corpo, algo que hoje é sempre duvidoso nas pessoas.

Quando a gente é levado pela mãe, entende que há uma hora que não há retorno possível para a vida normal e planejada. É como se a gente fosse guardado na bolsa dela e submetido à sua condução inclemente e suplícios tais como dar só uma passadinha “ali” e conversar um pouquinho só com não sei quem mais. É condição inescapável e indiscutível. Parece que a liberdade recém avistada na infância foi suspensa por uma autoridade intransponível e irrecorrível: autoridade de mãe.

Às vezes sinto uma saudade absurda (e contraditória) de quando a minha mãe pegava de minha mão e levava-me consigo para ir não sei aonde e depois passar o resto da tarde na vó. Íamos a pé, atravessando as ruas friorentas de Bagé, tão familiarmente estranhas agora.

Então é nostalgia que chama? Pode ser, mas eu penso então que essa nostalgia é das perdas de tempo mais interessantes que existem, porque ela permite justamente que se salve da passagem do tempo alguma coisa que não seja a escravidão momentânea, permanente, da atenção no que aparentemente vai se desfazendo sem parar e, principalmente, do que já parece irremediavelmente perdido.

Do que eu comento é outra coisa. É como um efeito vítreo que a luz solar deposita em tudo e que depois não se descola mais. Adere indefinidamente às coisas justamente por esse caráter indefinido e consolida-se, realmente, é na memória de cada um e de modo totalmente particular. Pode ser qualquer coisa e, na verdade, qualquer um pode evocar quando viu pela última vez essa película acomodando-se em lugares, cenas e imagens que, incrível, não são instagramáveis. Essa luminosidade está nas coisas, objetivamente, mas, subjetivamente, em quem as observa.

Nesses dias não é que eu quisesse melancolicamente estar onde seria impossível voltar a estar, mas como evitar me sentir eventualmente como se por um momento estivesse?

O próximo e o outro

Eu não sou muito religioso (também não já sou mais tão ateísta), pelo menos no sentido estrito do termo, mas me comove muito a ideia cristã de igualdade e proximidade. No Natal eu não me sinto muito cristão, mas a Semana Santa sempre mexe comigo, isso que nem nunca comunguei na vida. Nem a ideia da ressurreição ou de vida eterna, muito mais a da paixão.

Como quem se apega às palavras, eu acho mesmo muito bonita a ideia de amar ao próximo. E acho nem tanto pelo “amor”, muito mais pelo “próximo”. É uma maneira delicada e especial de tratar as pessoas, como os que estão e são próximos. Uma ideia sequencial, em certo sentido. Sermos “o próximo” e não “o outro”.

Se há uma coisa que eu implico na psicanálise lacaniana é certo jargão que foi se sofisticando ao ponto do total hermetismo. E o hermetismo é uma reserva discursiva, não se pode esquecer. Eu não curto o tal “outro”. Na minha opinião, é de um distanciamento egocentricamente gélido chamar todos os demais seres humanos de “outro”. Por milhares de anos, a ideia cristã foi chamá-lo de “próximo”, mas tal ideia de proximidade foi varrida pela modernidade. Em seu lugar, ficamos com a diferenciação, a hipertrofia da alteridade e uma série de conceitos em sua maior parte abstratos cuja significação depende de um intérprete, ou seja, não é um código comunicativo comum, partilhável.

Eu, que sempre achei incompreensível a santíssima trindade, acho igualmente inexpugnável a teoria do grande outro. Olho aquela fórmula gráfica, semiótica, e não me parece se relacionar aos seres humanos, mas ao contexto de sua própria formulação, uma espécie de auto-referência. Porém, quando os religiosos falam no “próximo”, trata-se sobretudo de reconhecer um destino comum, idêntico e geral.

“O outro desempenha sempre na vida de um indivíduo o papel de um modelo, de um objeto, de um associado ou de um adversário”, disse Freud. Acho isso uma ideação do humano muito estranha. Para o cristianismo, basta amar ao próximo como a si mesmo. É uma ideia moral ao mesmo tempo rudimentar e muito complexa. Uma exigência que o próprio Jesus encarnou como exemplo ao morrer pelo injusto.

Eu comparo as duas proposições e concluo que a mensagem freudiana cai muito bem no sentimento moderno, mas que também traz em si mesma o sentido de desagregação comunitária que leva à fragmentação e ao estupor emocional. “Amar ao próximo”, todavia, apesar da aparente banalidade, consiste num desafio de auto-proposição. Não é com “o outro” que deve ocorrer, mas consigo mesmo. Pode que seja falacioso em muitos casos, um discurso enganoso, mas é uma questão da subjetividade e, principalmente, de largo alcance e simples compreensão.

Jesus não deixou uma teoria, apenas algumas poucas palavras ocasionais e muito silêncio. Não é sua imagem positiva que nos ficou, mas esse vazio que nos pergunta há dois mil anos, o que fazemos silenciosamente e a sós do amor pelos demais?

Desculpem-me os amigos psicanalistas, mas o indivíduo lá, seja filho de Deus ou não, ele tocou a eternidade. Enquanto a ciência decai, as teorias fracassam e os homens matam-se uns aos outros real e simbolicamente, a sua escassa palavra e exemplo não cessam nunca. Mesmo sendo um ateu ou uma rocha granítica de racionalidade, não tem como não se comover com o pobre do nazareno..