Arquivo da categoria: Poesia

Tea time

Naufragam na tarde luminosa
dias inteiros adiantados.

O que vieram fazer aqui, ao meu lado,
coisas que nem aconteceram?

A ponte que sem dúvida já sabe
o que lhe passará por cima amanhã.

A sombra inerte da paineira
e o que já a espinha por dentro.

Não é que se chega antes, às vezes,
mas, então, tudo está esclarecido

como o pó do chá no fundo da xícara
e a água que nunca esfria.

Passei por tudo, mas o que passou?
Eu não entendo por que ainda

continuo olhando o que não há.
Coisa do coração que diminui dia a dia…

Lunar

Vivo numa cidade onde não posso morrer.
E esbarrando em coisas não construídas
na seguinte, paralela a esta, mal distingo
em suas sombras uma da outra.

Na mesma penumbra onde adormeço,
evito a todo custo sabê-la. Meus pés
não a tocam direito nem permito
a mim mesmo que a tome por minha.

Eu não morreria aqui, não mereço
o sol falso gelando meu sangue.
A ter a face na bandeira sozinha, melhor
a solidão lunar do dragão já lançado.

Para que as viva como se fossem a mesma,
a triste ou a que se alegra por nada,
criei para mim um lugar descampado
onde é para sempre domingo.

Sem título

Minha vida não é tua,
mas as pálpebras da noite
quando se fecham em teu sono
e a graça que teus músculos sentem
em meu corpo, como desavisassem
de que chego novamente sem dizer
nem o quanto fico
nem o quanto me preservo em ti,
os números que faço, o que eu tento,
o espetáculo que é abrir teus olhos
para o que não vês
são para ti como se fosse eu.

Eu também percebo a geografia
batendo de encontro às janelas,
o inverno do passado, a infância,
o fogo tênue crepitando,
as roupas pesadas, a lã
pinicando o corpo.

Teus olhos, se então pudessem ver,
saberiam que para ti
eu um dia chegaria.

E as coisas que eu te digo
para que soem compreensíveis
são para ti como se fosse eu.

A porta aberta da casa,
o pátio interno,
a calçada defronte às ruas
já esquecidas dos teus passos,
eu tive meios de refazê-las em tempo
para que voltasses a passar
e dentro de casa quem te espera:
os tapetes, cadeiras,
os quadros na parede, cristaleiras…

As coisas que eu te mostro
para que sejam um pouco familiares
são para ti como se fosse eu.

Para ti, as palavras me precedem
e eu faço um comboio delas,
um comboio infinito, e uma ferrovia
descarrila teu sangue pelo corpo,
doura a face, enrubesce os lábios,
intumesce o púbis, te estremece
e as trilhas íngremes das pernas
pela manhã nos raptam o sono.

As coisas que eu faço
para que sejam tuas
são para ti como se fosse eu.

Há uma viagem que não fizemos,
mas onde ainda estamos.
Essa em que ninguém pode nos saber
pois só entre nós sabemos.

E se buscamos refazer
aquele encontro, o primeiro
em que nos encurralamos,
é porque há coisas
que de nós não têm saída.

Tu não tens para ti a minha vida,
é impossível,
mas as coisas que eu sei de ti
e que me deste
serão sempre para mim
como se fosse eu.

𝟬𝟯/𝟬𝟰/𝟮𝟬𝟭𝟮 – 𝟮𝟯/𝟬𝟰/𝟮𝟬𝟮𝟯

Na floresta, no amanhecer

𝘈 𝘵𝘩𝘰𝘶𝘨𝘩𝘵 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘪𝘦𝘴 𝘢 𝘶𝘯𝘪𝘷𝘦𝘳𝘴𝘦
𝘈 𝘴𝘦𝘦𝘥 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘪𝘦𝘴 𝘢 𝘧𝘪𝘦𝘭𝘥 𝘰𝘧 𝘨𝘳𝘢𝘪𝘯
𝘓𝘰𝘷𝘦 𝘭𝘪𝘦𝘴 𝘪𝘯 𝘵𝘩𝘦 𝘢𝘳𝘮𝘴 𝘰𝘧 𝘤𝘩𝘢𝘯𝘨𝘦
𝘈𝘴 𝘢 𝘫𝘰𝘺 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘪𝘦𝘴 𝘢 𝘱𝘢𝘪𝘯
𝘈𝘯𝘥 𝘯𝘰 𝘰𝘯𝘦 𝘬𝘯𝘰𝘸𝘴
𝘏𝘰𝘸 𝘸𝘪𝘭𝘥 𝘵𝘩𝘦 𝘸𝘪𝘯𝘥 𝘣𝘭𝘰𝘸𝘴

𝘔𝘰𝘭𝘭𝘺 𝘋𝘳𝘢𝘬𝘦, 𝘏𝘰𝘸 𝘞𝘪𝘭𝘥 𝘛𝘩𝘦 𝘞𝘪𝘯𝘥 𝘉𝘭𝘰𝘸𝘴

1

Quando o vento se fechou em minha boca
vi minhas palavras dormindo no amanhecer.

2

Fora, uma longa estrada derrubada em minhas costas,
um lago tão escuro e denso e que não me devolviam nada.

3

Eu hoje esvaziei meus sonhos e finalmente agora
posso ver outras palavras acordando pela primeira vez.

4

Mais cedo expulsei as memórias pelas janelas de dentro.
Preciso de distância e só mais tarde ver o que irá acontecer.

5

Eu preciso ficar longe um pouco
e ver o que isso dirá em mim.

6

E não lamentar mais nada.
E deitar os velhos sonhos na estrada.

II

1

Agora, coisas soltas adormecem ao lado do sol
e nem uma árvore sorri. Tão diferente…

2

Um elemento novo, de assombro,
me apruma com um som de catástrofe.

3

Mas ninguém virá em minha busca
e o que eu sei é inútil, não me serve de nada.

4

Num momento solitário, como o dos frutos,
espero ter o que preciso.

5

Dessa vez não direi nada às memórias
e, em recompensa, elas nada me dirão.

6

O universo de antes se adiantará outra vez
como a mesma dentada do cão.

7

Mas eu já disse que nada me ataca. Só tenho futuro.
O passado resulta de uma conta errada.

Porto Alegre, 8

Porque nunca me disseste, tive eu mesmo
de descobrir: não há nada dentro de ti
e o que te anima somos nós, a carne
em que te aferras, memórias que roubas
e o passado que nos jogas aos pés
a cada instante, vencidas as promessas
fúteis, de tua boca, tão mal cumpridas…

Não tentes me enganar. Eu sei que
a minha melhor figura não guardaste
nem conheceste. E se eu quero te contar,
nunca queres saber, como se eu fosse
um fruto estranho, só espinhos,
em quem não ousarias tocar.

Mas o que eu sou não importa.
Quem importa para ti? Com um sorriso
intransigente, abres tua imensa boca
e nos devoras por inteiro. Para ti, somos carne,
os músculos de quem te abriu as veias.
Mas também não te importa quem fôramos.
E quem te abriu os olhos não viu nada,
só um espelho às avessas
nos confundindo em espírito e vida,
em vida e espírito e, afinal, em morte.

Bastava entender tua voz
e inércia. Bastava mais aceitar
que compreender. Bastava
que te amasse desse amor servil,
mas aí encontramos um problema:
não dou para isso. Em troca,
redobras tuas punições. Não permites
que eu descanse. Adias o outono
e decretas um tempo de paz fantasiosa.
Na verdade, o tempo pouco te
deteriora, se comparado a nós.

Nos domingos pela manhã, encontro
a mesma velha mulher passando a vassoura
no piso. A noite não a interessa, só
mesmo aquele momento da aurora
em que as esperanças perduram. Ela passa
a vassoura outra vez e só então se descortina o dia.

Olhando em minha direção, vejo
que não reconhece quem sou (eu também não…).
Aqui mudei e fui mudado, mas não guardo
nada. Dei tudo o que sou. Que me impeça
o verão interminável, eu não aceito.
De ti, nada, Porto Alegre… De qualquer modo,
não vais te saciar comigo. Um dia,
se me procures, desço à porta, toco teu ombro,
e eu mesmo digo que não estou.

Alquímico

Sequer um caminho
entre os espelhos
parece possível.

Só essa imagem antiga
que se persegue
como a uma sina.

Numa pintura, com uma pedra
foi tapada a única porta
para esta rua

e só por isso
o que eu entendo
é equivocado.

Mas tantas cidades couberam
eu meus sonhos,
tantas vidas felizes…

O que eu não tive
é meu
embora o recuse.

O que passa não me passa
e desdenho o bem e o mal
em minha desgraça.

Meu, o sonho errado.
Uma alquimia inútil
sem resultado.

O trapézio

Uma casa nunca é reencontrada da mesma forma. Pela manhã, primeiro o sol ilumina cada reentrância do telhado, move sombras sobre as janelas entreabertas, deposita o quanto pode seu amarelado nas madeiras dos móveis e dos ladrilhos, rebrilhando. A casa se acorda e se lá dentro alguém vive foi acordado pelos sons dos bem-te-vis que vazam para dentro e deste vento que em algum momento despercebido passou também a soprar como se desejasse ventilá-la do interminável sono noturno. Mas se ela sobrevive sem quem a viva, ela mesma parece assumir uma forma paquidérmica, trapezoidal, como um imenso animal dorminhoco que ao abano do sol ensaia erguer as pestanas e então vai pouco a pouco voltando ao estado letárgico do sono profundo, mais adequado para onde não há ninguém. Para aparentemente onde não há ninguém.

Ao voltar para casa, não se pode encontrar o que os outros veem, só o que nós mesmos vemos. Ali estão os chapéus desde a última vez que foram pendurados ao cabide, após o último verão, antes da última chuva que tocou o solo e pintou as folhas do jasmineiro com pintas de suçuarana, e depois inundou tudo levando o que vivia ao subterrâneo.

A casa nunca sabe de quem se trata cada qual que se assoma aos degraus e à sua entrada. É o filho mais velho, os inúmeros filhos do meio, e o último deles. Qual foi que guardou alguma coisa na última visita? Quem roubou retratos com a esperança de manter vivas as mais apagadiças memórias? Também não sabemos. Em seu testemunho silencioso, o que ela diz nem todos entendem. Ela, que viu uma a uma as tentativas de partida e os passos de quem nunca voltou, é indiferentemente majestosa e parece guardar em segredo a ideia de que todos sejam como suas paredes e que dali de dentro ninguém nunca sai completamente.

Mas como se tivesse vida própria, com olhos às janelas ela expulsa o que não lhe pertence e se purifica do alheio. Disso é que se dá a sua vida. Ela prefere manter-se de saudade, só, e nada mais, do que de quem a depenaria em pedaços. E espera quieta, como sempre, e por que a encontrem num passeio sem pressa, numa visita ao acaso. Entre os ramos das árvores mais altas, a fisionomia hercúlea de quem suportaria tudo e voltaria a amanhecer ainda que as cidades sejam cada vez menos gentis, que não a encontrem menos severa do que o esperado e que guarda ainda em seus armários doces de um lado, venenos do outro.

Ao adentrá-la depois de tanto tempo, quem ela pode reconhecer? Quem a reconheceria? Não importa… Na noite escura, quando mesmo a lua desiste de dar as caras, ela vai se confundindo pouco a pouco ao fundo de uma moldura que escapa ao tempo. E desaparece.

II

Aqui nasceste
sem que alguém
te dissesse
bem vinda ao mundo.
E te apropriaste
do tutano das paredes,
faminta. A sede
que havias saciado
no azul do céu
cegou-te de tudo o mais:
deveres, pesares
e de quem te habitava.
Do nada me flagro
pensando: o que dirias
ao notar que não vicejo?
Eu não sei… Apenas
vejo as paredes ruindo
e, tu, nossa história.

A porta, 2

A mesma porta ainda espera
a passagem de quem já foi.

Do tempo, a madeira amoleceu.
Mas quem ela espera? Ainda eu?

Duvido… A cada vez que a encontro,
eu sou um novo. O mais recente

a descobri-la é esse mesmo
ou o outro, o que morreu?

A porta e, do outro lado, quem?
Se nunca alguém voltou, ninguém…

O cão

Da vida do cão que passa
não há muito para saber.

Há quanto ele não come? Não sei.
Onde dormiu pela última vez? Não sei.

E a quem eu perguntaria isso,
o não sabido por ninguém?

Não sei. Não sei. Não sei.

A luz desmaia. No cão, é âmbar.
O uivo derreteu ainda alvorada.

E agora está tudo lido.
E visto. E esquecido.

Mas o que não houve nunca,
com quem tirarei a limpo?

Não sei. Não sei. Não sei.

O cão passou hoje mais cedo.
Ainda não havia nada. Ninguém.

Evernia Prunastri

Mais nada ataca a árvore
quando a casca lhe excreta a seiva.

E os galhos que estendem as mãos
às unhas que a arranharam.

No vale, dez outras iguais
curvam-se ao sabor do vento

ou morrem de um raio, de uma
tormenta. Mas ela, não.

Ela sangrou cinquenta vezes
ou até mais. O que me dizes?

Se a visses bem, entenderia
o que a suporta: a sombra escassa

com que acalenta… E a chuva escorre
só o necessário. Das folhas

que se desprendem não morre mais.
Ela suspira.