Minha vida não é tua,
mas as pálpebras da noite
quando se fecham em teu sono
e a graça que teus músculos sentem
em meu corpo, como desavisassem
de que chego novamente sem dizer
nem o quanto fico
nem o quanto me preservo em ti,
os números que faço, o que eu tento,
o espetáculo que é abrir teus olhos
para o que não vês
são para ti como se fosse eu.
Eu também percebo a geografia
batendo de encontro às janelas,
o inverno do passado, a infância,
o fogo tênue crepitando,
as roupas pesadas, a lã
pinicando o corpo.
Teus olhos, se então pudessem ver,
saberiam que para ti
eu um dia chegaria.
E as coisas que eu te digo
para que soem compreensíveis
são para ti como se fosse eu.
A porta aberta da casa,
o pátio interno,
a calçada defronte às ruas
já esquecidas dos teus passos,
eu tive meios de refazê-las em tempo
para que voltasses a passar
e dentro de casa quem te espera:
os tapetes, cadeiras,
os quadros na parede, cristaleiras…
As coisas que eu te mostro
para que sejam um pouco familiares
são para ti como se fosse eu.
Para ti, as palavras me precedem
e eu faço um comboio delas,
um comboio infinito, e uma ferrovia
descarrila teu sangue pelo corpo,
doura a face, enrubesce os lábios,
intumesce o púbis, te estremece
e as trilhas íngremes das pernas
pela manhã nos raptam o sono.
As coisas que eu faço
para que sejam tuas
são para ti como se fosse eu.
Há uma viagem que não fizemos,
mas onde ainda estamos.
Essa em que ninguém pode nos saber
pois só entre nós sabemos.
E se buscamos refazer
aquele encontro, o primeiro
em que nos encurralamos,
é porque há coisas
que de nós não têm saída.
Tu não tens para ti a minha vida,
é impossível,
mas as coisas que eu sei de ti
e que me deste
serão sempre para mim
como se fosse eu.
𝟬𝟯/𝟬𝟰/𝟮𝟬𝟭𝟮 – 𝟮𝟯/𝟬𝟰/𝟮𝟬𝟮𝟯