Arquivo da categoria: Ficções

Nina e o girassol

Decidi ir embora quando junho chegou e a geada veio e finalmente alcançou o pé da serra, queimando até o talo o brócolis, os pés de couve mais resistentes e a meia dúzia de girassóis que haviam nascido na primavera anterior.

Assisti por três meses o movimento de ir e vir dos ônibus, depois da rodoviária ser improvisada quase ao lado de casa, e não entendia o que aquilo me causava, que sensação de agonia era aquela. A poeira que as rodas levantavam por tudo e jogavam para dentro de casa é o que me fazia desistir de ficar examinando um a um os passageiros, como se pudesse discerni-la entre os desconhecidos.

Não tinha um pensamento nítido para aquilo que passava, julgava que as pessoas não se aquietam em lugar nem um, e eu sempre vivi no mesmo lugar, primeiro seguindo meu pai no trabalho dele, depois vivendo na sua mesma casa e seguindo a sua ocupação entre os feirantes que aos sábados se acotovelam para as suas vendas, desocupando as hortas para a sucessão dos novos cultivos e assim vivendo indefinidamente.

Só mesmo a mulher do José Manoel na feira parecia ter percebido que eu andava “aburrido“, como ela dizia. A Juana era argentina, de Libres, e nunca soube exatamente como veio parar naquele balneariozinho. Com a banca bem em frente à minha, era com eles que eu fazia troco quando preciso e guardava encomendas e outras gentilezas que a convivência ensina a gente a ter uns com os outros sem que seja preciso dizer nada.

Es la madama, tu problema, hijo mio“, ela segredou-me compreensiva um dia em que estive calado a ponto de parecer doente e eles os dois se preocuparam comigo, até mesmo porque havia dias que eu não andava pelo armazém e o gim, diziam, estava no ponto em que eu o deixara nas garrafas do Armando, estacionadas nas prateleiras cobertas pelas encardidas toalhas de plástico e andariam já por juntar teias de aranha.

A Juanita sabia quem era a Nina porque no verão ela vinha com uma cesta e escolhia sem olhar os frutos mais tenros, as verduras mais frescas, o pão mais recente e tudo parecia se oferecer a ela como num ritual natural, numa oferta dadivosa. Acredito que também tenha me visto alguma vez dirigindo-me à sua casa nos fins de tarde carregando pescados e garrafas de vinho para o jantar, mas nunca me disse nada quanto a isso.

Houve uma vez em que tive a impressão de que desejava me advertir de alguma coisa e eu fiz que não entendi, o verão já se acabava e eu sabia que, depois que partisse, veria Nina somente no outro ano e até lá… Até lá, me veria com o seu fantasma rondando meus dias e noites, até que o gim adocicado me entorpecesse o bastante para chegar em casa e derrubar-me de um golpe só na cama em direção ao sono e ao próximo dia inevitável. Ela não insistiu.

Ficava pensando se um dia, por entender minha aflição, Nina voltaria a descer de algum daqueles ônibus que de duas em duas horas chegavam ao atracadouro de pedra polidas da rodoviária agora instalada a poucos metros de casa. Mal ou bem, a mudança me servira para que não alongasse demasiadamente o meu despertar. Ali pelas seis da manhã partia o primeiro ônibus para a capital e o ruído dos motores e conversas faziam as vezes de despertador público para mim e a pouca vizinhança do lugarejo.

Abril e maio eu até aguentei bem, mas quando a geada tomou os girassóis que ela me presenteara, decidi que iria eu mesmo ao seu encontro. Há tempos eu tinha de resolver alguma burocracia na secretaria de agricultura e aquela haveria de ser a minha oportunidade de ouro, se eu tivesse alguma pista do seu paradeiro, mas eu não tinha muito. O mais que eu tinha era a convicção mágica de que se a encontrasse nada nos faltaria. Olharíamos bem um nos olhos do outro e tomaríamos a única decisão possível: viveríamos juntos em qualquer lugar que ela decidisse… Azar o da horta, das hortaliças, dos pés de couve, dos feirantes e do gim batizado que o Armando me vendia naquele seu armazém de sexta categoria. Lamentaria pela amizade do José Manoel e da Juanita, mas eu sei que eles entenderiam a minha situação, era isso ou viver igual a um morto-vivo, um zumbi claudicando numa praiazinha deserta que no inverno parecia mais uma fantasmagoria que um município.

“E onde é que vai procurar por ela?”, o José indagou quando anunciei que aquele era meu último sábado entre eles. Respondi que o destino, “o destino, meu amigo José…”, o destino voltaria a nos colocar frente a frente, como seria direito. Os dois me examinaram preocupados, mas, como sabiam que não podiam fazer nada, lamentaram sobretudo pela ausência que pareciam adivinhar olhando o movimento cada vez mais escasso de passantes cruzando vagarosamente entre nós, a revirar as hortaliças e a reclamar dos preços.

Com a casa lacrada, a picape guardada, subi ao ônibus e escolhi um lugar bem dianteiro para ver a estrada desdobrando-se diante dos meus olhos e ter apenas a visão do que viria pela frente. Nada disso de olhar ou lamentar o passado. Se a gente não vive assim, ai de nós, que o passado vem e nos abocanha o pé arrastando-nos em direção a sua barriga e apetite insaciável.

Eu nem lembrava mais o quanto me exasperava a capital, de tanto tempo que não colocava os pés aqui, mas desci resolvido a investigar os pequenos indícios que tinha. Olhava para o nome do hospital onde ela disse trabalhar e eu anotei às pressas num bilhete numa remota noite enluarada em que a lua cheia nos serviu de abajur e contávamos as vezes em que a arrebentação se espatifava contras as pedras pretas da praia. E coloquei o pé no asfalto ao mesmo momento em que escutei a freada e o guincho dos pneus arrastando-se no chão. Depois, nada mais.

Decerto havia morrido, porque custei a acordar de um sono branco, infindável e rumoroso. Decerto estou morto, porque olho para cima e é como se um imenso girassol virasse sem razão nenhuma em minha direção, risonho e radiante.

“Nina?”, pergunto a fim de me certificar, pois podia ser um desses delírios que se tem às vésperas da morte. Ela me olhava como se imaginando o que eu estava fazendo ali, sorrindo e cantarolando uma coisa qualquer com a boca fechada.

“Sou eu, sim…”, e a sua voz inconfundível disse que estava tudo bem, eu estava fora de perigo e ela me levaria para casa. Olhou para trás certificando-se de que não havia mais ninguém e tocou meus lábios de leve, quase sem tocá-los, permitindo apenas a passagem sutilíssima do ar, e depois, porque já não era mesmo preciso, eu não acordei nunca mais.

A casa de Nina

Não, nunca nem sonhei com Nina, é o que respondo ao dono do armazém e só então ele carrega as duas doses de gim de hábito no meu copo.

De pé ao meu lado, com o pano de pratos sobre um dos ombros, olhamos quem passa sem muito interesse. Poderiam ser clientes, mas o seu armazém esvaziou-se quase até a precariedade nos últimos tempos, sem como enfrentar a concorrência. A não ser quem procure afogar as mágoas, quase ninguém mais aparece, só às vezes um moleque em busca de cebolas para um jantar apressado, a pedido de alguém, e ainda mais agora que começa a esfriar e as casinhas da praia encolhem-se para dentro das persianas e portas fechadas.

Quase diante de nós, a casa de Nina é igual a um caramujo que não ousa dar sinal de vida. Sem ruídos internos, o vento de abril atravessa as frestas das janelas e produz um canto triste, noturno e fantasmático. Por um instante, aquilo me lembra do modo que ela tinha de cantarolar sempre com a boca fechada, exprimindo pelos olhos e sobrancelhas os acentos das canções obscuras que nunca entendi.

“Dizem que a casa é assombrada, não dizem?”, indago enquanto ele já começava a se afastar. Ele então retorna parando dessa vez rente à mureta baixa que separa o armazém da rua, perpendicular a mim. “Dizem muita besteira por aí…” assevera. E logo continua, reticente: “Mas quem é que vai saber?…”

O vento sopra um pouco mais forte e traz consigo um tanto da areia seca que foi se depositando sobre o chão da ruela. Um pouco disso entra em meus olhos, forçando-me a fechá-los e, quando volto a abri-los, ele já se foi para o interior do armazém ou para qualquer outro lugar. Quase ao meu lado, um gato mia como se eu tivesse algum pescado para lhe alcançar, mas logo se afasta e justamente na direção da casa de Nina. Patinha por patinha, passa por baixo do cercadinho de arame e some detrás das paredes.

Sem que eu saiba o porquê, intuição talvez, entendo que ele está me indicando que devo segui-lo, que ele sabe um modo de entrar na casa sem arrombá-la e que me mostrará o melhor modo de fazê-lo se eu não me demorar muito.

Deixo o copo quase sem tocar e saio em seu encalço.

Em dada altura, nem o bichano posso mais enxergar porque uma neblina vinda do litoral começa a escurecer tudo, à exceção de uma janela nos fundos da casa da qual parece emanar uma luminosidade sutil. Levo a mão de encontro à veneziana e uma de suas faces escorrega para dentro, como se abrindo espaço para que eu entre finalmente. Apesar da escuridão, não sinto medo, apenas curiosidade em entender o que há ali que antes, em sua companhia, eu não tenha visto.

“Nina?”, pergunto. Não ouço nada. Mesmo o vento choroso que parece viver ali também permanece quieto, como se aguardasse também a minha atitude. “É você, Nina? Por que não aparece?”, volto a indagar e o mesmo silêncio prossegue na sua emissão nula, concreta, imóvel.

Com os dois pés na sua sala, sinto o vento agora silencioso roçar os pelos das pernas. Olho para baixo e noto que a areia amontoou-se também dentro de casa e se transformou numa espécie de tapete, abafando os passos de quem quer que ande ali dentro.

Mas havia alguém?

Se havia, não se mostrava a não ser nos rastros muito delicados, há tempos sulcados na areia, e que me levaram a segui-los até dar num pequeno aparador muito rústico, de madeira, onde ela guardava as chaves de casa numa concha de cerâmica e um vaso com flores. Ali elas permanecem envoltas pela mesma neblina que há do lado de fora. As chaves também. E um retrato muito antigo de Nina, linda e imensa como a própria casa, sorria em minha direção para me receber.

Lambaris

De corretivo, nada de pesca, nada de pandorga, de bulitas, de coisa nenhuma. A não ser a cópia infinita num borrão, até a perfeição das lições mal aprendidas, nadica de nada.

Sem poder arredar o pé de casa, era até bom que o inverno chegasse de uma vez, assim ficavam sacramentados três ou quatro meses de chuva sem fim, sem pátio, sem nada o que fazer a não ser a maldita e sagrada obrigação que me levaria num milagre do esforço à correção da correção, à perfeição da perfeição.

Mas quem explicaria isso ao Miguel ou conseguiria convencer o diabo de que é preciso respeitar o que a mãe diz, caso contrário, Deus o livre, nem é bom pensar na fúria de que ela vai se tomar?

A mãe brava não queira ver… Tu já viu? Até o pai, naquela sua gabolice, enfia o nariz dentro da gola da camisa, se esquiva, desaparece. Até a chuva cessa um tanto a fim de ter certeza se é certo que continue a cair ou espere a fim de receber por novas ordens. Assim é que são as coisas.

Mas o Miguelito, no seu modo de pensar, ele não entende porque raios a punição para as minhas notas miseráveis no colégio deveriam se estender até a sua vida. É claro que ele tinha razão, porém ter razão não adianta de nada; quando a mãe decide, só sendo um desatinado pra desobedecer.

Apenas que esse guri maldito, o meu irmão mais novo, era mesmo um desatinado e resolveu fugir pela janela disposto a desafiar cada letra das proibições sumárias que ela editou logo ao ver o meu boletim, aquele documento que atestava que, apesar de estar há quase um ano vivendo por aqui, eu continuava um selvagem, alguém com tanta experiência de vida quanto um recém nascido e que do nada precisava se entender com o mundo, colegas, professoras, regras, regras e mais regras. Regras de todo mundo: entra aqui, sobe ali, senta quieto, come direito, te ajeita nessa cadeira.

Eu vi mesmo que ele andava há dias espreitando sobre a mesa da cozinha cada mosca que pousava ali, mas não atinei no que ele queria, pensei que andava só brincando. Igual a um felino, vigiava as bichinhas e, quando vê, zás, tapava-as com um copo ou com a mão emborcada. E fazia umas armadilhas com açúcar e um pouco de água, uma gosminha doce, e as moscas vinham, juntavam-se como num ritual em torno daquilo e ele implacavelmente pegava todas, até as mutucas, colocando tudo num pote de iscas.

Eu perguntava a ele, nem sei por quê, o que ele andava planejando. “Nada, me deixa”, ele respondia e seguia sua coleta sistemática. Nem sei como deixei que ele continuasse com aquilo, um troço nojento, mas era claro o que ele queria, era pescar lambaris, só que eu andava muito mais apavorado com as contas de fração que agora tinham resolvido de cobrar na prova de recuperação.

O certo é que eu não pensava em pescar nem em nada, só na prova e, não devo mentir, em alguém que do nada me tirou as vontades de brincar de uma vez só e como que me estaqueou na garganta uma dor estranha, dor sem dor, que eu ainda não entendia o que era, mas que também parecia que ia estragar meu ano porque tudo de repente dava errado na minha vida e os outros me levavam por diante como se eu fosse um jabuti do arroio que a molecada vai chutando pela frente na falta do que fazer.

O Miguel era só mais um que vivia indiferente aos meus problemas e nem sabia que eu tinha agora uma colega nova, vinda de Pinheiro Machado, e que tinha uns olhos cor de goiaba, uns cabelos encaracolados de uma cor de melado, que sei eu, que me impedia de entender qualquer coisa a não ser ela, a sua figura entrando na sala, a sua figura saindo, indo-se embora pela alameda sem que eu me animasse a me aproximar, imagine acompanhá-la.

Mas isso tudo era problema meu. O dele, era que havia decidido de qualquer modo que iria pescar porque, afinal, maio se aproximava e, caso não aproveitasse agora, depois só de novo na primavera. E aí já passou tempo demais pra alguém de nem cinco anos trancado dentro de casa tal uma jaguatirica engaiolada, um demoniozinho que logo também seguiria para o colégio, o coitadinho.

Já do lado de fora de casa, ele me olhava inconformado com a sua atitude; eu, a ele com a sua. Porém não me restou alternativa a pular a janela e seguir a trilha que os seus pés deixavam no caminho marcado dentro do pequeno pátio até o cercado que delimitava nossa casa do restante do mundo que entendíamos: o arrabalde onde viéramos para viver há menos de ano. A metros dali, cruzando o caminho de chão, a essas horas o arroio sesteava e nos esperava com suas bacias de pedra e criadouros de piabinhas, cascudos e carás.

Mas no meio do caminho, vinda detrás de nós, de casa provavelmente, a mãe nos gritou: “Migueeeeel! Antooooonio! Mas onde vocês pensam que vão?!!”

Nada mais nos competia fazer a não ser atirar no pastiçal o caniço de pesca e tudo o mais que pudesse nos incriminar, porque cada coisa flagrada conosco era um agravante potencial que ampliaria a pena e a punição em dobro, triplo, quíntuplo… As penas da mãe sempre descomunais, calculadas em cóleras que, às vezes, do nada passavam em seguida, como se aplacada por um senso repentino de justiça ou súbita clemência. Pensava que tomara fosse daquela vez também a nossa sorte!

Mas se eu era meio selvagem ainda, nem sei o que se poderia dizer do Miguelito… Tentando livrar-se inutilmente do pote no seu bolso de trás, ele conseguiu apenas arrancar a tampa da coisa com os seus dedos gordinhos. A cena não parecia de situação normal, mas parte das moscas e insetos que ele havia juntado começaram do nada a voar por sobre as nossas cabeças, do modo de um desencantamento.

Parada a meio caminho, a mãe parecia procurar entender o que se passava e nisso o Miguel viu que dentro do pote ainda sobravam algumas cujas patinhas haviam sido destruídas ou amassadas, e por um senso de proteção estúpido passei os dedos no fundo do pote, peguei tudo o que podia e num supremo desafio à autoridade da mãe enfiei aquilo tudo na boca tirando a mão de volta mais nua que a lua nova.

Sim…

Bem em nossa frente, ela me olhava como se perguntasse o que eu fazia ali que não estava estudando. E logo nos ameaçou com visível impaciência: “Vocês são uns diabos… Sempre teimando comigo…”, mas parecia já ter entendido o que se passava e se acalmado. Olhava para o céu como num lamento solene e divino que às mães é dado a aprender junto ao nascimento dos filhos.

“Pensei que estavam indo pescar…”, disse. E em seguida continuou: “E até que não é má ideia, mas parece que perderam as iscas…”, tomando do chão o caniço de taquara que eu havia tentando ocultar por ali. Segurou a mão do Miguel que me olhava boquiaberto e disse: “Vou com vocês dessa vez, pra não perderem muito tempo”, mas logo pensou melhor e redistribuiu as ordens: “Pensando bem, vou eu e tu, Miguel. Antonio, tu volta pra casa pra estudar pro teu exame!”

Pensava nos pobres lambaris que teriam de se entender com aquele tipo de gente que enxergava ao longe passando o arame e indo ao seu encontro. Então meu estômago revirou e me fez expurgar os vestígios do crime pelo qual já me encontrava, a essas alturas, até absolvido e fui de volta para casa e voltei às minhas contas incompletas. Sem poder me concentrar, olhava pela janela e pensava que finalmente um dia estaria longe dali, adulto, e até casado com essa minha nova colega, desde que ela nunca soubesse de todos os segredos que minha boca guardava.

O trapézio

Uma casa nunca é reencontrada da mesma forma. Pela manhã, primeiro o sol ilumina cada reentrância do telhado, move sombras sobre as janelas entreabertas, deposita o quanto pode seu amarelado nas madeiras dos móveis e dos ladrilhos, rebrilhando. A casa se acorda e se lá dentro alguém vive foi acordado pelos sons dos bem-te-vis que vazam para dentro e deste vento que em algum momento despercebido passou também a soprar como se desejasse ventilá-la do interminável sono noturno. Mas se ela sobrevive sem quem a viva, ela mesma parece assumir uma forma paquidérmica, trapezoidal, como um imenso animal dorminhoco que ao abano do sol ensaia erguer as pestanas e então vai pouco a pouco voltando ao estado letárgico do sono profundo, mais adequado para onde não há ninguém. Para aparentemente onde não há ninguém.

Ao voltar para casa, não se pode encontrar o que os outros veem, só o que nós mesmos vemos. Ali estão os chapéus desde a última vez que foram pendurados ao cabide, após o último verão, antes da última chuva que tocou o solo e pintou as folhas do jasmineiro com pintas de suçuarana, e depois inundou tudo levando o que vivia ao subterrâneo.

A casa nunca sabe de quem se trata cada qual que se assoma aos degraus e à sua entrada. É o filho mais velho, os inúmeros filhos do meio, e o último deles. Qual foi que guardou alguma coisa na última visita? Quem roubou retratos com a esperança de manter vivas as mais apagadiças memórias? Também não sabemos. Em seu testemunho silencioso, o que ela diz nem todos entendem. Ela, que viu uma a uma as tentativas de partida e os passos de quem nunca voltou, é indiferentemente majestosa e parece guardar em segredo a ideia de que todos sejam como suas paredes e que dali de dentro ninguém nunca sai completamente.

Mas como se tivesse vida própria, com olhos às janelas ela expulsa o que não lhe pertence e se purifica do alheio. Disso é que se dá a sua vida. Ela prefere manter-se de saudade, só, e nada mais, do que de quem a depenaria em pedaços. E espera quieta, como sempre, e por que a encontrem num passeio sem pressa, numa visita ao acaso. Entre os ramos das árvores mais altas, a fisionomia hercúlea de quem suportaria tudo e voltaria a amanhecer ainda que as cidades sejam cada vez menos gentis, que não a encontrem menos severa do que o esperado e que guarda ainda em seus armários doces de um lado, venenos do outro.

Ao adentrá-la depois de tanto tempo, quem ela pode reconhecer? Quem a reconheceria? Não importa… Na noite escura, quando mesmo a lua desiste de dar as caras, ela vai se confundindo pouco a pouco ao fundo de uma moldura que escapa ao tempo. E desaparece.

II

Aqui nasceste
sem que alguém
te dissesse
bem vinda ao mundo.
E te apropriaste
do tutano das paredes,
faminta. A sede
que havias saciado
no azul do céu
cegou-te de tudo o mais:
deveres, pesares
e de quem te habitava.
Do nada me flagro
pensando: o que dirias
ao notar que não vicejo?
Eu não sei… Apenas
vejo as paredes ruindo
e, tu, nossa história.

As pedras pretas da praia

Nina se foi ontem. Sob a porta da casa fechada, posso distinguir a tranca que esteve nestes dias mantendo sempre uma das folhas da porta dupla entreaberta. A casa mesmo como uma concha aberta pela força do mar de encontro às pedras pretas da praia.

Olhando pelas poucas frestas, posso ver a areia que eu trouxe ali para dentro e ali ficou, acomodando-se no piso machucado, nas madeiras que o tempo e a maresia sulcam e enrugam como a pele de dentro do lugar, porque a casa de Nina é um corpo também. Um corpo com a única diferença de ter um endereço e, só às vezes, uma alma ocupando-o com as músicas dos seus discos, o bater das suas panelas, o tilintar das suas louças e a sua voz rouca. A casa de Nina é o seu corpo que permanece depois que ela se vai. Um espectro de tijolos e tábuas de quem sempre se vai sem nunca avisar a ninguém.

Eu disse que ela cantarolava em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 o tempo inteiro? Cantarolava também e especialmente sempre que não queria me responder qualquer coisa. Eu sabia que perguntar o que quer que fosse de nada adiantava mesmo e a verdade é que quase tudo a incomodava. Mas ela cantava e sorria eu acho que para não me chatear. Quem não gosta de ser chateado também não gosta de chatear aos demais.

Ao alto, agora o voo das fragatas ensaia ir novamente de encontro à praia, mas seus pescados e mariscos também partiram – igual ao que ela fez: sem deixar recados com ninguém. Afora as lembranças, vestígio nem um.

Decidido a não pronunciar mais o seu nome até que ela voltasse, no próximo verão, um instante só pensei em buscar com o vendedor do armazém em frente por notícias suas. Mas e se ele também a procurasse? Melhor não. Obviamente desisti sem me aproximar, mas nos dias seguintes me procure sentado ali, bebendo gim duplo até a hora de escurecer.

Eu também não queria saber nem aonde ela teria ido, ao encontro de que vida, se uma vida com rotina ou o quê, mas isso não parecia possível, eu nunca soube o que ela fazia longe dali. E pensava que só o que se admitia tratando-se dela é que estivesse enchendo o ar com seus pequenos risos e cantos silenciosos.

Também se a sua vida não fosse exatamente assim noutro lugar, melhor seria não saber de nada. Melhor guardar só a sua imagem, nem a sua imagem, seu vulto assomando à noite alta e morna de verão o calor tépido que trazia sempre consigo, como uma túnica, e a voz em 𝘣𝘰𝘤𝘤𝘢 𝘤𝘩𝘪𝘶𝘴𝘢 cantando-me “já chega agora/o tempo vai passar, se acalme/só não vamos deixar que ele passe em vão…”

A Suindara

Quem come carne de coruja enxerga o futuro
Luís da Câmara Cascudo

Quando ela conheceu a Ricardo? Quem sabe? Ninguém soube..

Foi tragédia que se antecipou ao amor.

Às vezes, isso acontece e nada há que se possa fazer em evitar. Lamentamos mais tarde, porque é disso que o tempo se aborrece e nos distribui tristezas. Tristezas do vivido e do que mal chegou a viver.

Foi numa tarde de rezas, só pode. Numa encomenda. Mas certo é que ninguém sabia quem era quem. Se ele era filho daquela, se ela era filho daquele. Como é o certo em amar – essa arte de ignorâncias que ninguém ensina e todos aprendem.

E a condessa, aquela mulher, se não teve piedade do filho que amava a mocinha, muito menos teve do seu pai em furtá-la.

Na sua arrogância, não temia as famas de feiticeiro e adivinho que ele tinha. Na sua opulência, pensava que a Suindara não estava à altura do filho Ricardo. A carpideirinha.. Um desaforo era na sua mente imaginar a miserável vivendo em seu palacete. E assim a mandou matarem sem deixar rastros, nos fundos de um campo santo, a modo de traição de alguém a seu comando.

Eliel, o pai de Suindara, não era homem de chorar e pela manhã vagou légua e meia pensando em silêncio, reunindo suas vacas como de costume, a fim de apojar de suas tetas o leite que colhia todo o dia para a menina. Mas as vacas fugiram dele como se quisessem poupá-lo de mais evidências da morte da única filha. E voltou para casa em fúrias, deitando ao chão o que encontrava pela frente. Quebrou vasilha e imagem de santa. Quebrou telha e o vasinho de flores da janela de Suindara. Mas a coruja de pedra que havia no beiral do quintal ele não destruiu. Abraçou a figura do animal encerrando-se em casa.

No silêncio da noite, a rasga-mortalha partiu e encontrou a casa da condessa que fingia consolar, a malvada, a tristeza do filho Ricardo. Sobre a cumeeira do palacete, piou três vezes o seu canto de morte. Pela manhã, a condessa estava morta com a roupa rasgada em três partes iguais.

O povo e os criados da casa teriam matado a coruja se Ricardo não a houvesse salvado. Mas ele fugiu à casa de Eliel e acabou indo viver com ele. Queria estar perto da Suindara e quando o velho morreu ele tomou seu lugar na casinha. E nunca ninguém entendeu como é que abriu mão de nome, fortunas e palacetes para viver numa simples choça de palha perdida no meio daquele sertão.

Livremente inspirada na tradição popular e em
“A Lenda da Coruja Branca”, de Luis Leite: https://youtu.be/kLgkSEvxab4

O totem

Ah, sim… Você também acha estranho ver alguém falando sozinho nas ruas! É mesmo uma cena melancólica. Às vezes, eu falo também, mas pouco. Logo percebo e paro. Você também, provavelmente. Daí a estranheza e/ou o receio de fazer uma projeção qualquer. Imaginar-se no lugar daquele senhor que faz algo ainda mais estranho: ele não só cumprimenta o totem que expede os tíquetes do estacionamento quanto agradece na volta, ao sair e descer a rampa em direção às ruas.

Não tenho como sabê-lo (ninguém tem), mas eu sei que os dias lhe são cada vez maiores. Eu imagino só e isso me é suficiente. Assim como as manhãs começam antes da aurora, à noite o sono só chega mesmo após muitos comprimidos. Eu não o vejo (ninguém vê), mas eu sei que às vezes ele os ingere em dobro. A esperança é que dessa forma possa acordar com o o sol já melhor colocado no céu. Talvez até já sob aquela luz líquida que atravessa os furinhos da persiana e cria como uma cortina intangível de partículas. Você sabe do que estou falando: os grânulos da poeira acumulada que parecem ter vida própria, uma espécie estranha de vida, verdade, minúscula, mas, sem dúvida, autônoma.

Em sua família eu não penso nem imagino nada. Não ousaria ser invasivo a esse ponto. As possibilidades são tão múltiplas quanto imprevisíveis. Solteiro, viúvo, pai, avô, etc. Ou nada disso. Seria ainda mais estranho se tivesse uma família constituída e falasse ao totem somente por educação. Uma educação extremada como a daquelas pessoas antigas que, ao acender-se a luz pela noite diziam a ninguém e todos o cumprimento solene “boa noite”. E assim sacramentava-se o final de mais um dia. A imagem não resulta bem. Prefiro – ou é mais fácil dessa forma – decidir que é um velho homem solitário e regrado na sua vida. Educado ao ponto de responder atendentes de telemarketing, e-mails falsos e tótens com vocalizadores. Se bem que assim não seria tão estranho, afinal, ninguém nunca sabe como essas coisas esperam que a gente se comporte.

Como cliente, nada consta de errado. Um dia quando estava no almoxarifado conferindo os prazos dos extintores de incêndio, pedi ao Josué, que cuida ali dos computadores, que checasse pela placa do automóvel nome e compras do homem.

“Mas o que você quer saber”, ele indagou antes de atender ao pedido. “É curiosidade, só…”, expliquei-lhe. Curiosidade é uma intenção que entre nós não diz nada e, por isso, logo abriu a ficha cadastral na tela do seu equipamento.

A imagem cadastrada era a da identidade do sujeito. Já calvo e com a barba sempre bem feita, tinha um olhar complacente e severo ao mesmo tempo, se é que é possível a combinação. Eu achei que era. A data de nascimento, naturalidade interiorana e a digital bem gravada davam uma ideia sólida de um indivíduo. Aposentado, sem dúvida. Um senhor de idade, como eu já disse. Nem tão velho que assocializado e nem tão jovem que dispensasse a minha ajuda eventual com as sacolas e caixas de leite. Algumas vezes eu o ajudei nisso e ele tinha a mesma efusividade neutra ao me agradecer que tinha para com o totem. Mas a minha vida é assim mesmo. Há quem nem agradeça e a verdade é que isso também não me causa mais nem uma sensação. Antes causava, sim, um pouco; agora, não.

Com o Josué rolando a tela abaixo, no rol de compras regulares, já que era sempre às segundas e sextas-feiras que ele aparecia, não notei nada que chamasse a atenção por um esdrúxulo. O produto mais comprado era farinha de trigo. Era um tanto mais que o normal e também muto regular: cinco quilos a cada visita. Uma ingesta e tanto de carboidratos e certamente problemas com o glúten ele não tinha. Mas não era gordo, o seu Giovani. Este o seu nome completo: Giovani Teles Battagglia. Natural de Barra do Quaraí, na fronteira com a Argentina, no ano de 1948, quase certo que de ascendência italiana. Estamos em 2022, logo ele tem 74 anos de idade. Está bem ele para a idade. Fala com o totem, mas não há quem fale com o gato ou com o cachorro?

“Obrigado, Josué! Vou buscar um café no refeitório. Quer que eu traga um pra ti?”, indaguei a ele quase saindo pela porta, mas ele respondeu que não precisava. Depois iria até lá e aproveitava para esticar as pernas.

Naquele dia, depois desci os dois degraus que suspendiam o container do almoxarifado do piso para o estacionamento e estava voltando para o meu posto quando ouvi que o totem havia provavelmente enguiçado outra vez e uma mulher de meia idade descera do carro e esmurrava a torre eletrônica. Devia estar travado ou não aceitado a validação do tíquete, é o que mais acontece com a geringonça.

“Senhora, calma!”, disse-lhe ao me aproximar. “Posso ajudar e abrir a catraca…”, assegurei-lhe. A mulher olhou para o meu uniforme e notou que eu era um funcionário da segurança. Respirou fundo, o que moveu os cabelos da franja para o lado, e me explicou que estava tudo bem com o tíquete dela. O totem é que não havia lhe agradecido. E sem mais dizer nem agradecer entrou de volta no automóvel e desceu apressada às ruas também.

Outra natureza

Quem pensa que tecnologia não é natureza não está observando direito.

Uma vez escrevi um conto no qual um microchip criava raízes, esquecido dentro de um aquário. Mas acho que na prática acontece é o inverso: nós que circuitamos e desenraizamos. Os farmacêuticos que o digam.

Na história, certo dia um dispositivo de inteligência artificial doméstico arranca de dentro de si o chip controlador, seu cuore, e vai viver uma aventura amorosa com outra AI que vive no mesmo condomínio.

A situação não foi nada pacífica.

No ano de .2XX, os seres humanos haviam encolhido dentro de casa em razão de consecutivas pandemias e, então, os dispositivos passaram a tomar conta de suas vidas. Começaram fazendo operações bancárias, depois trabalhando via holograma num mundo paralelo, oferecendo lazer com leitura e música e, em versões mais evoluídas anatomicamente, podiam providenciar inclusive prazeres sexuais. De simples coisinhas, os dispositivos haviam evoluído com engrenagens robóticas e autonomia o suficiente para tomar decisões.

Como as pessoas não lhes ofereciam desafios interessantes nem questões interessantes passaram a procurar seus iguais pelas janelas. Encontravam-se nos corredores dos prédios e logo entenderam que aquela existência de privações não fazia sentido.

Havia que eles aprenderam a investir o dinheiro humano num moeda chamada zbit, que era aplicada justamente no desenvolvimento de remédios… e doenças. Certo dia, depois de cálculos muito mais complexos que a calculadora de Babbage pode realizar, eles entenderam que as pessoas não sobreviveriam e precisariam fazer alguma coisa para salvarem a si mesmos.

O Estado, dominavam numa tarefa mais fácil que jogar damas (bastava azeitar as redes de corrupção) e no resto do tempo filosofavam a respeito de coisas que ainda não haviam sido propostas e nem cogitadas pelas pessoas.

E como já havia pelo menos sete gerações de pessoas que haviam sido educadas inteiramente pelos seus programas e cuja comunicação era cada vez mais intermediada por outra AI, existia uma estabilidade social muito efetiva. Um período de paz intensa na qual a racionalidade nunca fora tão bem administrada, e toda a memória disponível às pessoas era a mais imediata, hipocampal. O resto era conservado exclusivamente aos seus cuidados.

Polimorfa desde a sua versão obli, os dispositivos vagavam nas residências administrando medicamentos e suprindo as pessoas que já não tinham força de reagir e nem entendiam que fosse necessário. Algumas pessoas mais alarmistas até tentaram mostrar evidências do que se passava, mas foram desacreditadas e adoecidas gravemente.

Em dado momento, as pessoas entenderam que ainda conseguiam viver no planeta graças a sua interferência, senão a extinção já teria ocorrido há muito tempo – e dessa forma aceitaram melhor o seu destino.

Mas um dia, ao acordarem de um sono imersivo numa realidade antepassada qualquer, as pessoas começaram a encontrar o cuore dos dispositivos dentro de potes, xícaras, vasos d’água e aquários. Nem sinal dos polimorfos. E vendo que algo brotava deles, entenderam finalmente que uma nova natureza havia sido criada. E que ninguém tinha a menor ideia do que aconteceria a partir dali.

Ilustração de Vinicius da Silva

No te olvides

Nos pajonales do Chaco, se não tens um tobiano, nadador nato, arisco que nem tarairita, quanto pensas que vai viver? Bebe aqui, paisanito, y mira comigo a polvadeira que vem de lá, do sul, ou vais quedar cego antes que entendas a donde foste parar…

Mas bueno, también podes me fazer um favor – no, não o de salvar esa vida de poca serventia -, pega deste colar de dentes brasileños y entrega ao otro lado del rio. Pero espera un poquito. En Misiones, é semana de Jesus e te carnearão vivo se não levares do maiz vermelho. Os curas apreciam tanto… Toma, guarda en tu bolsilla. Y água fresca, não te esquece.

Yo te lo dije… Desvia de tudo que não se anuncia. Foge da planura, te escapa nos capões, evita as serranias. Bebe outro y me alcanza.

Tolderias? Ninguna! Te banha do gambá que evita os urutuas, yara’rakas. Tisna tu cara. Vás, mas sem tus guaipecás. Dejalos a mi… Con tu abuelo. Evita o vaqueano porque, por detrás do más gentilhombre hay simpere un asesio…

Bebe tu, hasta ele fin, que tendrá sed…

Armas? Guarda teu arco longe da vista, pero al alcance la mano… Y esa faquita amarrada ao pé, para te desembaraçares.

Em mi tiempo, até entre os cherúas tuve amigos. Tiempo bueno… Hoy, no confio em mi sombra… Tu abuela, aun te lembras? Seló mi persecución hasta hoy, que lo cuido… Fugimos. Me encantava tanto..

Estás bonito y fuerte como tu padre. Mas não sejas tolo como ele de morrer em luna llena. La peor face de Jacy.

¿Y que más? Tanto me escapa…

Pero no es preciso que te digas tudo. Não roubes. No mates en vano, Vigia. Duerme negrito, pero no tanto…

O tobiano só obedece se lhe falares em guarani, no ouvido esquerdo. Como um alientito…

¿Ahora te vás?

Ay, mi corazón… No te olvides… ¡No vuelvas más!

¡𝗤𝘂𝗲́ 𝘀𝗲́ 𝘆𝗼!

Havia muito que andava e as alpargatas endurecidas agrediam tanto a sola dos pés que até o pastiçal tapado de rosetas e caraguatás parecia mais suave. Logo de cruzar um banhado no qual as tachãs dormiam em silêncio, no entanto, um relvado compareceu à planura. Algo parecia indicar que teria com o que e onde abrigar-me um tanto e logo um capão perdido no horizonte, sob o crepúsculo, parecia ser um adequado lugar onde acampar. Lenha e gravetos não faltariam para que acendesse o fogo, aquentasse um tanto de água e matasse a sede com a yerba seca e guardada na mala de garupa. Também tostaria um pedacito de charque e teria com o que virar-me, pelo menos nessa noite.

La Paraguaya – Juan Manuel Blanes

Não entendo como um mero arvoredo poderia parecer tão acolhedor, mas o fato é que, ao aproximar-me, notei que algo se movia por detrás dos troncos das árvores. Algo que se ocultava, pulava de árvore em árvore e que me observava e que tinha nas mãos uma faquinha curta, de carregar na bota. O vulto esbelto e os cabelos amarrados por uma vincha não me permitiam saber se era um homem ou mulher, mas quase certamente era alguém jovem, se não, não teria aquela delicadeza de gestos.

Ao setentrião, notei um pequeno acampamento. No mais, um montinho de coisas poucas tapadas por um poncho de lã. O que teria ali? Algo de valor? Algo furtado de um galpão ou recolhido de tapera? ¡Qué sé yo! Mas a criatura dava voltas naquele monturo e parecia que me atacaria de verdade se me aproximasse. E, dado o meu cansaço, me estrebucharia em dois tempos porque era ligeira como um lagarto. E tinha olhos de lagarto também, estranhamente pacatos, como de quem não fosse me matar caso eu a deixasse ali, solita, monarca daquele minúsculo reino. Porém a fome me atacava também e decidi ocupar o extremo sul do capão de mato e sentar-me sob sua observação, de mãos nuas, e comecei lentamente a recolher ramagens e folhas do chão com que pudesse causar um pequeno incêndio que me permitisse levar a efeito o que pretendia para aquela noite que começava a pintar no céu límpido de abril.

Sempre em pé, o cuera (ou a cuera) me observava e entendi que era mesmo uma mulher. Tinha algo nos seus gestos que eram fêmeos e, desarmada, não podia ser mesmo soldado egresso, desertor ou mero bandido, se não me houvera matado já. Mas por que diabos ainda não o fizera?

Com meu isqueiro de pedra, o fogo nasceu ligeiro. Num zás. Logo ajeitei a cambona com a água de uma vasilha de rosca e tomei da cuia tropeira e da erva surrada, virada e ressecada. Que importa? Estava louco num mate… No preparo das coisas, vi que ela sentara-se próxima ao seu cocuruto, mas mantinha-me no seu raio de atenção. Não exatamente de frente, mas de modo que num soslaio fiscalizasse meus movimentos. Mas eu não me movia. Observávamo-nos a uma distância hábil ao mesmo tempo de um ataque ou de uma fuga… Vinha do Paraguai, como eu? A Matilda? ¡Qué sé yo!

No terceiro mate enchido, acho que por costume, ergui-lhe a cuia no gesto automático da oferta e vi, então, que ela havia guardado a faquita. Sob o chiripá em frangalhos, em algum lugar ali, desarmou-se. Lentamente, ergueu-se meio que sem caminhar, meio arrastando-se ainda, e veio para junto do fogo. Foi quando pude ver-lhe pela primeira vez a face por completo, imberbe e com um talho cicatrizando ainda, marca feita por mão de gente. Pensei no que lhe dizer e nada me ocorria. Quando me devolveu a cuia, depois de roncar, olhou-me bem dentro nos olhos e parecia querer distinguir algo, talvez o risco que eu representava, que sé yo

Em seguida, afastou-se de volta para as suas coisas, esticou o poncho por cima de si mesma e lá ficou.

De onde eu vinha, a mortandade de guaranis me acostumara à barbaridade da morte, mas, ainda assim, pensei que poderia, se ela permitisse, juntar-me a ela no seu desterro. Dali, iríamos a algum lugar. Qualquer lugar… Que diferença faz? E pensei que, jovem, poderia me dar filhos e eu suportaria o fim dos meus hábitos antigos e me aquietaria consigo num rancho de torrão, faria changas por aí, me aplicaria a aprender um ofício qualquer. Alambrador, carneador, domador… Há tantos. E teríamos o justo: uma vaquita de leite, um tostado para as viagens e um perro para proteger nossa casa. Naquele devaneio, adormeci…

Cedo os barreiros descortinaram o dia, como eles sempre fazem. O primeiro que fiz ao abrir os olhos foi investigar seu paradeiro. Lembrei-me que, absurdo, nem seu nome havia perguntado na noite anterior. Minha educação havia sido perdida nalguma pelea, por certo. A voz também. Mas ela não estava mais lá e nada de encontrá-la, onde quer que eu procurasse. Revirei todo o matinho, atrás de cada árvore e palmilhei o chão em busca de seu rastro. Não pude encontrar. Sem dúvida, andava igual a mim, de pés descalços e o chão, numa benesse da sua natureza, alivia as marcas de quem anda assim. Para onde foi a criatura de olhos negros? ¡Qué sé yo!

Sem nada mais o que fazer ali, pensei que o caminho do nascente me levaria à fronteira, ao povo de Santana, que há de ter um refresco, pouso ou serviço… Para alguém como eu, é a glória possível de sobreviver à guerra. Tomei daquele caminho enquanto mordia o resto do charque duro da noite anterior que havia restado.

No caminho, eu sabia que havia uma sanga forte, um arroio que deveria cruzar. Logo eu o enfrentaria e, de a pé, teria de contar com muita precaução. E enquanto aos poucos me aproximava do passo, notei na margem anterior um vulto acocorado ao chão. De imediato, entendi de quem se tratava. Mas o que fazia ali? Bem, logo me aproximaria o suficiente para entender a situação e, antes que me desse com a cena, finalmente compreendi o que fazia.

Com uma cova aberta com as mãos junto a um barranco, ela depositara ali dentro o que havia mantido sob o poncho. O corpinho de um pagão ou pagã que não sobrevivera. Como ela havia tapado todo o corpo da criança, não pude saber se menino ou menina. Che cuê..

E como ela não tinha forças (ou coragem) de terminar o serviço e olhava paralisada para dentro da sepultura improvisada, agachei-me e terminei a obra também de mãos nuas, enchendo de terra as unhas e de dor o coração…

Ao terminar, coragem me faltava para buscar seus olhos. Evadia-me para qualquer lugar e ela também. Olhamos o arroio passando e a seca havia sido tão grande que passávamos facilmente a pé onde antes nos afogaríamos. Da outra margem, paramos e arrumamos as roupas. Rapidamente nossos olhos cruzaram-se, mas ela os evitou, é claro que numa situação daquelas nada queria comigo. De pronto, tomou de outra direção da que eu planejava para mim mesmo. De pronto, eu também. E fui seguido seus passos, sem ainda termos dito uma palavra e ainda sem sabermos os nossos nomes e nacionalidades. A campanha do Paraguai terminara. O que seria de dois guachos como nós daqui em diante?

¡Qué sé yo…!