Decidi ir embora quando junho chegou e a geada veio e finalmente alcançou o pé da serra, queimando até o talo o brócolis, os pés de couve mais resistentes e a meia dúzia de girassóis que haviam nascido na primavera anterior.
Assisti por três meses o movimento de ir e vir dos ônibus, depois da rodoviária ser improvisada quase ao lado de casa, e não entendia o que aquilo me causava, que sensação de agonia era aquela. A poeira que as rodas levantavam por tudo e jogavam para dentro de casa é o que me fazia desistir de ficar examinando um a um os passageiros, como se pudesse discerni-la entre os desconhecidos.
Não tinha um pensamento nítido para aquilo que passava, julgava que as pessoas não se aquietam em lugar nem um, e eu sempre vivi no mesmo lugar, primeiro seguindo meu pai no trabalho dele, depois vivendo na sua mesma casa e seguindo a sua ocupação entre os feirantes que aos sábados se acotovelam para as suas vendas, desocupando as hortas para a sucessão dos novos cultivos e assim vivendo indefinidamente.
Só mesmo a mulher do José Manoel na feira parecia ter percebido que eu andava “aburrido“, como ela dizia. A Juana era argentina, de Libres, e nunca soube exatamente como veio parar naquele balneariozinho. Com a banca bem em frente à minha, era com eles que eu fazia troco quando preciso e guardava encomendas e outras gentilezas que a convivência ensina a gente a ter uns com os outros sem que seja preciso dizer nada.
“Es la madama, tu problema, hijo mio“, ela segredou-me compreensiva um dia em que estive calado a ponto de parecer doente e eles os dois se preocuparam comigo, até mesmo porque havia dias que eu não andava pelo armazém e o gim, diziam, estava no ponto em que eu o deixara nas garrafas do Armando, estacionadas nas prateleiras cobertas pelas encardidas toalhas de plástico e andariam já por juntar teias de aranha.
A Juanita sabia quem era a Nina porque no verão ela vinha com uma cesta e escolhia sem olhar os frutos mais tenros, as verduras mais frescas, o pão mais recente e tudo parecia se oferecer a ela como num ritual natural, numa oferta dadivosa. Acredito que também tenha me visto alguma vez dirigindo-me à sua casa nos fins de tarde carregando pescados e garrafas de vinho para o jantar, mas nunca me disse nada quanto a isso.
Houve uma vez em que tive a impressão de que desejava me advertir de alguma coisa e eu fiz que não entendi, o verão já se acabava e eu sabia que, depois que partisse, veria Nina somente no outro ano e até lá… Até lá, me veria com o seu fantasma rondando meus dias e noites, até que o gim adocicado me entorpecesse o bastante para chegar em casa e derrubar-me de um golpe só na cama em direção ao sono e ao próximo dia inevitável. Ela não insistiu.
Ficava pensando se um dia, por entender minha aflição, Nina voltaria a descer de algum daqueles ônibus que de duas em duas horas chegavam ao atracadouro de pedra polidas da rodoviária agora instalada a poucos metros de casa. Mal ou bem, a mudança me servira para que não alongasse demasiadamente o meu despertar. Ali pelas seis da manhã partia o primeiro ônibus para a capital e o ruído dos motores e conversas faziam as vezes de despertador público para mim e a pouca vizinhança do lugarejo.
Abril e maio eu até aguentei bem, mas quando a geada tomou os girassóis que ela me presenteara, decidi que iria eu mesmo ao seu encontro. Há tempos eu tinha de resolver alguma burocracia na secretaria de agricultura e aquela haveria de ser a minha oportunidade de ouro, se eu tivesse alguma pista do seu paradeiro, mas eu não tinha muito. O mais que eu tinha era a convicção mágica de que se a encontrasse nada nos faltaria. Olharíamos bem um nos olhos do outro e tomaríamos a única decisão possível: viveríamos juntos em qualquer lugar que ela decidisse… Azar o da horta, das hortaliças, dos pés de couve, dos feirantes e do gim batizado que o Armando me vendia naquele seu armazém de sexta categoria. Lamentaria pela amizade do José Manoel e da Juanita, mas eu sei que eles entenderiam a minha situação, era isso ou viver igual a um morto-vivo, um zumbi claudicando numa praiazinha deserta que no inverno parecia mais uma fantasmagoria que um município.
“E onde é que vai procurar por ela?”, o José indagou quando anunciei que aquele era meu último sábado entre eles. Respondi que o destino, “o destino, meu amigo José…”, o destino voltaria a nos colocar frente a frente, como seria direito. Os dois me examinaram preocupados, mas, como sabiam que não podiam fazer nada, lamentaram sobretudo pela ausência que pareciam adivinhar olhando o movimento cada vez mais escasso de passantes cruzando vagarosamente entre nós, a revirar as hortaliças e a reclamar dos preços.
Com a casa lacrada, a picape guardada, subi ao ônibus e escolhi um lugar bem dianteiro para ver a estrada desdobrando-se diante dos meus olhos e ter apenas a visão do que viria pela frente. Nada disso de olhar ou lamentar o passado. Se a gente não vive assim, ai de nós, que o passado vem e nos abocanha o pé arrastando-nos em direção a sua barriga e apetite insaciável.
Eu nem lembrava mais o quanto me exasperava a capital, de tanto tempo que não colocava os pés aqui, mas desci resolvido a investigar os pequenos indícios que tinha. Olhava para o nome do hospital onde ela disse trabalhar e eu anotei às pressas num bilhete numa remota noite enluarada em que a lua cheia nos serviu de abajur e contávamos as vezes em que a arrebentação se espatifava contras as pedras pretas da praia. E coloquei o pé no asfalto ao mesmo momento em que escutei a freada e o guincho dos pneus arrastando-se no chão. Depois, nada mais.
Decerto havia morrido, porque custei a acordar de um sono branco, infindável e rumoroso. Decerto estou morto, porque olho para cima e é como se um imenso girassol virasse sem razão nenhuma em minha direção, risonho e radiante.
“Nina?”, pergunto a fim de me certificar, pois podia ser um desses delírios que se tem às vésperas da morte. Ela me olhava como se imaginando o que eu estava fazendo ali, sorrindo e cantarolando uma coisa qualquer com a boca fechada.
“Sou eu, sim…”, e a sua voz inconfundível disse que estava tudo bem, eu estava fora de perigo e ela me levaria para casa. Olhou para trás certificando-se de que não havia mais ninguém e tocou meus lábios de leve, quase sem tocá-los, permitindo apenas a passagem sutilíssima do ar, e depois, porque já não era mesmo preciso, eu não acordei nunca mais.