O homem velho

𝘖𝘭𝘥 𝘮𝘢𝘯, 𝘭𝘰𝘰𝘬 𝘢𝘵 𝘮𝘺 𝘭𝘪𝘧𝘦
𝘐’𝘮 𝘢 𝘭𝘰𝘵 𝘭𝘪𝘬𝘦 𝘺𝘰𝘶 𝘸𝘦𝘳𝘦

𝘕𝘦𝘪𝘭 𝘠𝘰𝘶𝘯𝘨

Então é isso a velhice. Nada de sabedoria, apenas ideias abstrusas do que é feito o mundo e quase nada a respeito do que faz os outros.

Em seu desdém vertical, as árvores do caminho de casa sabem do que estamos dizendo porque são iguais a nós. Para elas, é indiferente a sonoridade das aves que a ocupam. Ou mesmo a plumagem. E a quantidade. Tudo se resume no quanto elas suportam — e parecem suportar muito.

Tu já não suportas tanto…

E mesmo que durem centenas de anos e nós apenas um átimo, as árvores velhas têm uma casca que nos lembra a pele que nos encasaca. E nomes que nos emprestam e caem tão bem: Oliveira, Pereira, Nogueira… Só nunca conheci ninguém de sobrenome Jacarandá. Seria insuperável.

De dentro de um armário, tomas uma peça de roupa que te caía bem, mas agora é provável que te deixe apenas ridículo. É o que pareces pensar enquanto os dedos examinam indecisos a frágil trama do tecido.

Havia ali também um chapéu que te protegeria a calva do sereno da madrugada, mas não está mais, pelo jeito. Tu também já não vais à madrugada.

Pela casa, as molduras das lembranças, perenizadas, parecem te observar. A ti e ao teu próximo esquete. Não caberias em muitas mais, mas, nas poucas ainda possíveis, gostarias de aparecer. E mesmo que naquele momento estejas pensando noutra coisa qualquer, são essas as coisas que fazem sentido.

Mas não é apenas no mundo mesquinho e doméstico que pensas. Este é um engano que cometem os que pensam em ti sem nada saber do que se passa em tua mente. Pensas em muito, ao inverso dos poucos que pensam em ti. Os arquipélagos que manterão, é óbvio, as ilhas inóspitas e selvagens a salvo dos teus pés. A astronomia que não te permite entender se há mesmo vida superveniente a esta, o que talvez redimisse nossa tamanha precariedade.

Já as rotinas menores, que se fazem dentro de casa, estas consumirão a maior parte do teu tempo e energia. E quando estiveres descansado, e a poltrona cessado seus rangidos, poderás pensar melhor nessas coisas distantes, e nos fatos do jornal dobrado e intacto ali perto, no que deverias fazer pela tarde se não fosse melhor, muito melhor, entregar-se à preguiça que aos devaneios do mundo real.

Se a chuva começa é sempre melhor. É o subterfúgio ideal. Não irás molhar os pés nem as costas. Deves cuidar dessa tosse.

Sentado, lembras que gostavas de ouvir uma gravação de Albeniz, e aquele acento fatal. E filmes de máfia. E crimes de amor. Traições e negociatas. E revanches indefectíveis. Mas a chuva… De onde ela tem esse poder encantatório de nos dar certeza de que fazendo nada se obtém mais?

Súbito, levantas. Essa mania de falar a ti como se fosse outro parece erguer outra pessoa ante teus olhos, mas são teus músculos e ossos que notam o esforço. Então és tu mesmo.

Vais à janela. Em redor, a cidade e suas milhares de rotinas em trânsito. Já estiveste ali como os demais, mas não tens saudade.

Num café próximo, ainda notável pela fachada, neste instante parece estar entrando alguém familiar no modo de andar e subir os degraus e de acenar aos funcionários e tomar da mesa que mais apreciavas para olhar o movimento da rua. Parece que te enxerga, a criatura incômoda, mas deve ser apenas impressão.

A velhice, então, é isso. É poderes fazer e preferir não fazê-lo. É gastar tua atenção no essencial, ainda que te escape o que possa ser isso a essa altura da vida. Apesar de tudo, é bom ter a certeza de que ganhas mais em saber do que não precisas no lugar do que ainda poderias aspirar. Se isso é ruim ou bom, tu não sabes. Nunca soubeste. Teu juízo, sempre particular — e ao mesmo tempo o mais inclemente.

Chamam-te à porta, na campainha. Pelo olho mágico, não vês ninguém. Ainda brincam disso as crianças? Que estranho… Prepara-te para sair à rua para investigar e a poltrona, convidativa, parece te chamar em contrário. Dorme mais um pouco… Vais aonde mesmo? Não. Deixa. Contanto que vás, não é preciso explicar. Eu também não preciso mais entender.

Deixe um comentário