Não sei em quantos, nunca contei, mas em boa parte dos poemas que escrevi costumo falar “em negativo”. Não o negativo da negatividade “psíquica”, me refiro à negatividade “narrativa”.
Escrever “em negativo” não tem nada de mais. É dar a ver o presente pela ausência, o aparente pelo oculto, enfim, o positivo pelo negativo.
A mim me agrada eu acho que pela sugestividade, quer dizer, pelo que se consegue entregar de incompleto ao leitor e que ele terá de por si mesmo preencher com a sua imaginação “positiva”. É como se fosse escrito apenas um baixo relevo, para depois ser preenchido por quem estiver lendo, com a sua matéria-prima, repertório, etc.
No mundo da poesia, a perspectiva nem sempre é bem reputada. Especialmente por aqueles devotos à concretude poética e à racionalidade — os detratores da subjetividade. Alguns diriam que se trata de uma impossibilidade, porque o que assim se procuraria narrar é o não acontecido, o não-fato, a inexistência. Seria um esforço, portanto, inútil.
Eu nem discordo quanto à “utilidade”, embora o conceito seja exógeno à arte, mas o que eu acho é que é apenas pouco imaginativo nos limitarmos pelo mundo visível, das imagens verbalizadas, e marcá-los na linha do tempo para que existam.
A vida mental, do espírito, é muito mais larga que essa pequena ruela da realidade visível. É claro que alguma pessoa pode desejar muito isso e fixar-se nestes limites e neles encontrar tudo do que precisa de simbólico, mas daí a uma generalização instrutiva vai uma grande distância, já que do lado do leitor felizmente não temos qualquer possibilidade de controle.
Nada me aborrece mais, como leitor de poesia, quando sinto que o/a poeta quer me tanger página afora, conduzir ou delimitar meu campo mental e imaginação. Esta perspectiva de apreciação “plástica” do poema não funciona bem comigo. Não por acaso, funciona bem com as artes plásticas. A perspectiva que me motiva é muito mais musical – mas não no sentido matemático da música, senão por sua capacidade de induzir o aparelho sensorial e perceptivo.
É claro que isso não significa que não posso ou não consigo apreciar um poema “positivo”, “solar”, “assertivo” ou “concreto”. Não apenas posso como costumo apreciá-los. No entanto, eu aqui estou dizendo do que prefiro, e prefiro os “negativos”, “sugestivos” e “lunares”.
Isto também não significa que prefiro o mundo desconhecido e místico ao palpável e tridimensional. Até porque quanto ao “desconhecido” não se pode fazer muito mais do que um grande silêncio, porque para ele não temos nem palavras. Ao menos me parece que não deveríamos ter.
Não, não é quanto a esse “assombro” que me refiro, mas à sutileza de notar no mundo a sua incompletude, as coisas que o tempo fez acabar, o residual das coisas materiais e a permanência da ação humana sobre o mundo, que é impalpável, certo, mas que pode ser percebida se não estivermos limitados pela condução inclemente do aqui e agora arbitrário e informativo.
O que me faz pensar nisso é que a nossa atenção e pensamento são constantemente desviados para camadas não aparentes da realidade. Há um mundo invisível ocupando o visível. Isto é uma obviedade fisicamente comprovada, basta pensarmos na atmosfera e no que a compõe. Embora não a vejamos, está ela sempre interferindo diretamente em nossa condição existencial. Também os microorganimos e as ondas de radiofrequência que transportam mensagens para lá de complexas. E o que mais pudermos imaginar mesmo sem o ver.
O que acontece é que muitas vezes apenas conseguimos demonstrar algumas coisas por exclusão. Se isto vale na lógica, que demonstra a forma pela qual pensamos, por que não funcionaria em outras formas de pensamento? Mas com isto eu não quero dizer que podemos forjar qualquer imagem e significação a uma realidade passada ou narrada. Na verdade, podemos, mas, ao fazermos, positivamos esta historicidade e então precisamos confrontá-la com a experiência dos outros.
Com essa minha “defesa” da negatividade, eu somente quero mesmo é demonstrar que não é apenas por um juízo moral ou amoroso que se pode ou deve ler um poema. Uma leitura assim, na verdade inutiliza o poema. Um poema que “diz muito”, “assevera” ou “instrui” torna-se, no meu juízo, ainda que belo e correto, intragável. E como diz Hannah Arendt em “A vida do espírito”, o pensamento sempre lida muito mais com ausências do que com o que lhe é reconhecível e óbvio.
Não “é o que temos”, como diz o bordão conformado das redes sociais. Por outro lado, é “o que não temos”. É o que precisamos imaginar, até mesmo para poder ambicionar mudar o que somos e assim nos sentirmos, talvez, um pouco menos vegetativos e dependentes da identidade.
Sair de si mesmo exige uma mudança profunda de perspectiva. E se a poesia me deixa no mesmo lugar onde estou sempre, não sei do que me serviria. Um auto-encanto, um narcisismo de motivos, coisas que não me importam. Eu preciso mesmo é de que me leve, como a música, para o mais longe possível do mundo das aparências, das reais e das inventadas. Mesmo que às vezes ela se dissolva no instante mesmo de sua apreensão.
