O ano era 1985 e o folclorista e historiador Barbosa Lessa refletia e registrava no seu fundamental “Nativismo: um fenômeno social gaúcho” que o nascimento do cancioneiro riograndense fora extremo e dificultoso, havia nascido “por paus e por pedras”. Afirmava, inclusive, que este teria sido o maior problema na consolidação do primeiro movimento tradicionalista: a constatação de um acervo musical muito pobre no Rio Grande do Sul. Desde aí, viram-se o folclorista e seus companheiros na situação de recolher o pouco disponível e de ele mesmo contribuir com o cancioneiro local, compondo letra e música da toada Negrinho do Pastoreio e outras melodias que mais tarde foram compiladas e difundidas no Brasil especialmente pela cantora e apresentadora Inezita Barroso, em seus discos e coleções de música “de raiz”.
Passadas várias décadas desde o livro e mais ainda desde o momento seminal do movimento tradicionalista, não é arriscado dizer que o acervo musical de “extração folclórica” no Rio Grande do Sul tornou-se neste período nada menos que descomunal. Barbosa Lessa, em 1985, falava a respeito do momento excepcional que o nativismo vivia, com o sucesso popular dos festivais musicais, especialmente a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana. Além disso, a propagação do movimento cetegista havia se tornado um fenômeno nacional e até internacional, com a instalação de mais 800 centros tradicionalistas nos mais diversos pontos do país e do mundo. Ao fim do mesmo livro, o folclorista ainda assim afirmava não possuir distanciamento suficiente para avaliar a influência do movimento nem os caminhos que se seguiriam no que viria a ser, para ele, uma “nova fase” do gauchismo.
Um diagnóstico do que ocorreu nesse lapso, de fato, ou pelo menos uma avaliação crítica, não parece ter sido discutida e difundida. Embora o assunto tenha sido e seja ainda bastante pesquisado, e sob os mais variados vieses, o ciclo comercial de exibição, gravação e transmissão parece ter se imposto como um fenômeno cultural autosuficiente, isto é, em condições de sustentar a cadeia econômica erguida em torno da massiva produção autoral do nativismo. O complexo é ainda imenso: são dezenas de festivais musicais espalhados pelo interior e centenas de edições acumuladas ao longo dos anos. Em cada edição, dezenas de composições inscritas, ou seja, uma profusão exponencial de criatividade e influências.
No entanto, provavelmente a “nova fase” do gauchismo antevista por Barbosa Lessa tenha mesmo é derivado para a massificação comercial. E se perdido um tanto da produção de projeção folclórica arduamente laborada e que foi, de acordo com um dos fundadores do movimento tradicionalista, “garibada” de um repertório muito elementar, motivos rústicos e uma linguagem eivada por espanholismos e expressões e termos típicos e passadistas. É natural, pois Lessa também adverte em seu livro que tanto ele quanto Paixão Côrtes foram buscar na experiência dos grêmios gaúchos de João Simões Lopes Neto e Cezimbra Jacques inspiração para a conformação do seu edifício folclórico. Além disso, a projeção do folclorismo platino, seus motivos, estilos, danças e músicas colaboraram numa aproximação inevitável, tendo-se em vista que apoiadas na vida provinciana e no gauchismo como um fenômeno sem fronteiras.
Enquanto o folclorismo riograndense engatinhava, por assim dizer, o argentino já se encontrava consolidado numa estrutura institucional e comercial que encontrou nas ambições nacionalistas o fermento ideal para o seu crescimento. Especialmente pelo trabalho do folclorista Juan Alfonso Carrizo, o conhecimento da cultura local argentina havia frutificado em espetáculos, gravações e publicações que resgatavam para a Buenos Aires metropolitana a cultura espontânea das províncias. O seu trabalho de décadas havia favorecido a primeira onda folclórica no Rio da Prata, em torno da década de 50, com a evidência maior de Atahualpa Yupanqui, o principal coletor, intérprete e autor de projeção folclórica nesse momento — embora os primeiros registros de exibições folclóricas em Buenos Aires datem das primeiras décadas do séc. XX.
Nesse mesmo período, em solo rio-grandense, o modernista Augusto Meyer finalizava a primeira edição do seu “Guia do Folclore Gaúcho”. A sugestão do livro partira do seu amigo Mário de Andrade, escritor e pesquisador musical do folclore nacional, e consistia na consolidação do possível. Em seu prefácio, Meyer dizia que um livro como o dele deveria trazer mais folhas em branco do que texto. E afirmou sem pejo que, por falta de fontes, muitas vezes colaborou intensamente na criação final dos objetos fixados. Pelo seu exemplo e pela mesma dificuldade encontrada pelos primeiros tradicionalistas, o que se pode deduzir é que estes vazios foram compensados por uma resolução muito forte na fixação do imaginário e identidade cultural do Rio Grande do Sul ao tempo que o mundo se recompunha da Segunda Guerra Mundial e a UNESCO fôra criada no sentido de fomentar políticas em prol da diversidade cultural e da valorização dos povos. No Rio Grande do Sul, também a figura do historiador e folclorista Dante de Laytano teve um papel fundamental no estímulo ao grupo formado no colégio Júlio de Castilhos e liderado por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa.
Mas se o primeiro momento da investida tradicionalista foi árduo e o terreno encontrado árido, a frutificação do nativismo, e em especial no que diz respeito à música como produto cultural, logo se tornou imensa. Se a princípio tanto Lessa quanto Paixão Côrtes controlavam as influências uruguaias e argentinas, pujantes, em torno da virada do milênio o movimento abstraiu de qualquer controle interno, influenciando-se por outras ondas culturais. Lessa, que morreu em 2002, certamente não opinou na decisão do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), de 2006, em vetar a participação da emergente “Tchê Music” nos espaços cetegistas. Em suas prerrogativas normativas, o MTG procurava conter o contato intercutural nacional e a manutenção de uma tradição intocada, sendo que em sua própria origem o movimento havia se inspirado em influências extra-nacionais.
Como é de se imaginar, os influxos culturais não podem ser parados por decreto e, mais recetemente, o que vem se flagrando em muitos festivais nativistas é a presença de uma sonoridade e elementos da música “sertaneja” em sua versão contemporânea. Além da sonoridade e entoação, destaca-se até por contraste uma sensibilidade diferenciada daquela consagrada ao gaúcho e o estereótipo da masculinidade altiva e etc. Para além da curiosidade, o que resta é um estranhamento que implica indiretamente na alteração da linguagem, dos costumes e, por estranho que pareça, da própria “tradição”.
Por certo quem viaje ao interior, planalto, fronteira ou a serra do Rio Grande do Sul há de encontrar variações culturais e dialetais importantes. A região do pampa rio-grandense, por ser a mais característica e identificada com o ethos gauchista, supostamente estaria mais “a salvo” dessa influência, no entanto a proliferação do cultivo da soja em detrimento da produção pecuária parece que vem alterando a cultura em redor. Esta é a opinião do escritor José Francisco Botelho, hoje radicado em Bagé, na fronteira com o Uruguai. De acordo com ele, trata-se de uma observação empírica, com base na experiência da realidade. A observação é coerente com o que se reflete, pelo visto, na produção musical nativista. Fato é que as negociações culturais em torno do vocabulário e práticas de vida sem dúvida se alteram em função das necessidades presentes de trabalho e demais elementos da vida cotidiana. Talvez isto signifique que o mesmo impasse na variabilidade da expressão cultural se encontre expresso nas práticas econômicas. A influência econômica sobre a cultura, como se sabe, nunca pode ser completamente desprezada.
Nesse contexto, se refletisse sobre o assunto, uma pessoa incauta indagaria inocentemente: mas pode o folclore pode mudar? Está ameaçado o legado de Barbosa Lessa, Paixão Côrtes, Dante de Laytano e talvez até mesmo o de Augusto Meyer? Pode estar, é claro. Se um repertório folclórico é dado por pessoas que o sistematizem da voz popular, o que for sistematizado hoje logo a seguir o integrará ou substituirá. Esta é a natureza mutável e espontânea do folclore, a concepção popular da vida e do mundo (não apenas uma coleção pitoresca), conforme o anotado por Antonio Gramsci no seus anos de cárcere. Se determinado repertório deixa de atender às necessidades expressivas de uma comunidade, naturalmente ele será substituído. Afinal de contas, ele mesmo nascera de uma mutação histórica ou se encontrava em estado líquido, volátil.
Como se sabe, a busca por reter a história costuma ser um esforço inútil, e mesmo que não identificado com um furor conservador a René Guenón, o tradicionalismo cultural do Rio Grande do Sul permanece na mesma encruzilhada que Barbosa Lessa viu em 1985. Curiosamente, agora mais desafiado pelo próprio Brasil do que pela cultura dos países vizinhos (voltar olhos e ouvidos ao produzido nos demais países latinos, aliás, poderia oxigenar em muito a produção local). Suas opções estão entre cristalizar-se numa resistência tresloucada à mudança ou em descaracterizar-se do arcabouço constituído a duras penas pelos seus fundadores, numa amostra de maleabilidade por ser comprovada. Poderia também, talvez isso seja possível, colar-se a uma noção mais dinâmica de cultura e colher do próprio povo as suas razões de ser, mantendo-se fiel ao escrúpulo de seus idealizadores. Não mal comparando, a opção está como que entre a prudência de apear do cavalo e a busca por refazer seu contrato com a população ou ser derrubado pela passagem do trator da história. Não é questão de apostar nisso ou naquilo, mas, que o desafio está posto, isto ele está. É um contato que já existe, resta ver qual será o impacto ao final do encontro.