Ó deixe essas lágrimas para amanhã..
Os dias de antes, a bebida de muitos,
outros amores vividos já além das mãos,
caminhos distantes também não tocam os pés.
Não vá inventar nada agora, chorar mesmo
de vai nada adiantar, ó deixe
as lágrimas para amanhã, enquanto sente
outra vez que o céu sorri para os demais.
Deixe também as moedas
no fundo do bolso, acaso ainda precise
ou a fome ou a sede retornem.
Não deve esquecer a sorte que teve o cão
ao fugir de casa, dos olhos turvos
do animal mais dócil do mundo esteja livre
e da forma que ele enganava a noite
com seu canto engasgado parecendo
que vinha de outra vida a nascer.
Ainda uma vez, olhe as táboas do cais
e mais uma vez essa ponte que nunca cai
e o que ao levante do dia foi posto a dormir.
Os velhos e suas sobrancelhas espetadas —
a revolta que há nestes fios, ó entenda,
é mais feroz que a revelação da verdade.
Marilia, a quem você julga que amou, foi mais doce
com outros antes e você, seu último amor
e que a amparou nos braços ao desfalecer,
nem assim pensou que não aguentaria,
afinal, é para isso e não outra coisa
que há no seu peito o tal músculo, o valentão.
Nunca houve quem defendesse como você.
Esqueceu como defendeu a ofensa de um amigo
igual fosse a si mesmo?
E toque de novo aquela maldita canção
para que a noite resulte alegre e as estrelas
virem-se um momento só em nossa direção.
Estão bem guardadas as coisas acontecidas
para que nunca mais seja preciso vê-las.
E ao lado das vividas, as destruídas
estão apagadas como numa tevê enguiçada
que nunca mais ligou, um rádio velho
preso na mesma e eterna estação.
A essa hora, o olho arde tanto quanto um estômago.
A essa hora, o estômago vira quanto um oceano.
Mágoas ao fundo do mar borbulham
e um resto de vida quer viver, mas nada se pretende
e a portaria está por fechar e é devido
sair em silêncio e que nada indevido aconteça
ainda mais se for chamado “felicidade”.
Os cães fugitivos cumprem um destino melhor..
As portas estão bem fechadas, janelas, chão e paredes.
Os olhos de Marilia, lembre bem, eram mais fundos
que uma prisão e tampouco foi amor de verdade.
Que seja, é o que você pensou.
A parte dos livros? Despeje no pote dos micos..
Assim haverá alguém mais feliz
eliminadas da face do mundo essas tristezas,
essas infâmias, essas pobres parolas.
Mas antes derrame contra o muro a fel amarga
e volte para casa com a alma mais doce..
E sem, é óbvio, muito mais exigências.
Na vida lhe chamaram de tudo, santo, corvo, chacal,
ameba, quadrúpede, besta, pai, animal..
Também noivo da morte, santo, viuvinha —
do fundo do quintal nada disso de flor,
seu erva daninha..
Entre em acordo com o nome que sua mãe deu
(e quase ninguém além dela mesmo conheceu).
Vá até lá, e em paz, ao menos na noite de Natal —
é permitido a quem viveu toda a vida na condicional.