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Sucata.net

O único banco que não dá certo no Brasil é o banco de teses. Quem escreveu isso foi o Élio Gaspari num artigo na Folha de São Paulo, no ano de 2003. A sentença infelizmente continua em pleno vigor. Às vezes, é uma verdadeira epopeia encontrar-se na internet brasileira mera referência, que dirá um texto acessível. Mas muitas vezes não se chega mesmo é a lugar nem um.

O caos é infinito. É ao mesmo tempo sintoma e consequência da falta de sistematização científica do país. As consequências disso tudo são muito graves: o estado da arte de muitas pesquisas simplesmente não pode ser confirmado ou refutado, a comunicação científica é fraturada, as coisas não saem do lugar, ficam girando em falso no próprio eixo.

Seja porque parte dos seus autores prefere o sigilo para uma possível publicação futura ou porque a política de divulgação é falha, a comunidade acadêmica brasileira decidiu ignorar sem solenidade alguma a Portaria 13 de 2006 da Capes, que instituía a obrigatoriedade da divulgação digital das teses e dissertações produzidas pelos programas de doutorado e mestrado no Brasil. O descaso foi tanto que, em 2018, uma Portaria superveniente revogou expressamente a anterior sem sequer mencionar a questão das teses e dissertações. A obrigatoriedade caiu. Simplesmente instalou-se a anomia normativa, ou seja, o laissez-faire que vigora e permite que cada qual faça como bem entender.

Lá em 2006, o então Ministro da Educação Fernando Haddad inocentemente chegou a cogitar que teses e dissertações fossem organizadas no Portal Domínio Público. O Portal nunca chegou a se tornar referência nem para o ensino fundamental e até hoje é dependente de contribuições voluntárias. Um projeto que em qualquer país do mundo seria razão de vergonha.

Outra iniciativa promissora de organização científica em nível nacional, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT/MCT), também mantém-se ainda apenas por iniciativa voluntária a que as universidades e seus cursos aderem livremente, ou seja, os resultados ali obtidos não podem ser tomados como definitivos. Uma simples consulta aos “indicadores” do projeto é suficiente para verificar-se que nem o controle de áreas de conhecimento e metadados é confiável. Mas é o que há. O que, no caso, não há.

Biblioteca Digital de Teses Brasileira (BDTD)

Outra iniciativa paleolítica do IBICT/MCT é o Catálogo Coletivo Nacional (CCN), cujo objetivo é intercambiar produção científica entre bibliotecas e cursos cooperantes. A janela de pesquisa do CCN é, não mal comparando, uma viagem à internet do milênio passado. Não há sequer recursos de ordenação, reservas, pedidos, contatos… O catálogo, mesmo assim, é a única fonte nacional centralizada de localização de publicações periódicas. Sem conteúdo on-line, sem comunicação com outros sistemas de controle do lado do usuário, o CCN é, tecnologicamente falando, como uma espécie de astrolábio. Defasadíssimo, mas melhor do que nada.

É difícil tentar explicar a quem usa a internet apenas para o próprio e-mail, e-commerce e redes sociais de que a internet brasileira vem se transformando no começo deste século numa grande rede de sucatas. A causa disso o Élio Gaspari vaticinou lá na virada do milênio: como aparentemente não se perfaz lucro, ninguém investe. Mas o prejuízo está mais do que consolidado. Isso explica em muito as dificuldades presentes e futuras do desenvolvimento científico nacional. A irrelevância de boa parte da produção local e a emigração dos pesquisadores para lugares mais avançados são os efeitos mais evidentes. Mas não ficamos por aí. Ainda tem mais.

De um modo geral, a internet está cada vez mais concentrada em donos de conteúdo que logo cobrarão para acessarmos os dados que nós mesmos criamos. A internet, o território inesgotável de liberdades oceânicas, ele vem sendo silenciosamente privatizado.

Enquanto as pessoas tornaram-se obcecadas pelos seus “dados pessoais”, piratas legais perceberam que poderiam transformar os “dados públicos” em objeto lucrativo. O data mining está aí, diariamente no nosso nosso email, vendendo soluções virtuais de informação pública que ninguém se dá ao trabalho de sistematizar. Não é crime, não é ilícito, mas é vergonhoso… Enquanto nos preocupamos com o “algoritmo”, empresas mais espertas estão de olho nos nossos cookies, rastreando o movimento de milhões de usuários e nos dirigindo como um grande coletivo. Alta tecnologia não é para amadores.

E as redes sociais? As redes sociais nos mantém ocupados como o Sol sorridente no mundo dos teletubbies. Uma Baby TV interativa. É o parque de diversões perpétuo, repleto de normas, vigilância e restrições e alguma sociabilidade eventualmente autentica.

Há poucos dias, o MCT lançou os editais que visam promover o desenvolvimento de aplicações em IA no Brasil. É o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, cuja ambição é mobilizar bilhões de reais e muitos royalties pagos, claro, à inteligência estrangeira, OpenIA, Meta, Amazon…

É preciso uma fé que eu não tenho.

Eu olho os sites do Portal Domínio Público, da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, do Catálogo Coletivo Nacional e outros projetos do MCT e não consigo ver nada além de burras de ouro sendo despejadas ao léu, para quem nem compromisso com o país tem.

Eu vou é ver o meu Teletubbies. E numa TV de tubo, para não perder de vista a nossa verdadeira idade tecnológica.