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Poesia e mito indo-europeus

Eu não entendo uma linha de hitita, do antigo nórdico, do avesta, do protocelta, do védico e nem do grego. Mesmo assim, desde que o abri pela primeira vez, não consegui largar mais esta lindeza de livro que a editora Mnema lançou há poucos anos por aqui, do filólogo inglês Martin L. West. É o livro que tenho lido neste período extenuante que temos vivido aqui no RS.

Eu certamente tenho me valido dele como forma de levar minha mente para muito longe daqui, ao menos pelo tempo possível, da leitura. Mas isso se deve muito mais à fluência com a qual o livro foi escrito do que por uma razão “escapista”.

Mas M. L. West, o autor, ele tem me feito acreditar que, se não conheço os antigos idiomas a que ele se refere, consigo compreender perfeitamente como estes povos antigos articulavam linguagem e arte poética.

Para além da constatação de que os recursos retóricos e linguísticos de que dispomos hoje têm uma história mais antiga do que presumimos, o livro em si é uma viagem muito completa (e complexa, mas não inacessível) através do tempo, comunicando culturas que se transformaram e dissociaram séculos afora, mas mantendo equivalências que os filólogos revelam com a mesma facilidade com que eu, por exemplo, posso abrir uma janela ou folhear um livro. É uma naturalidade espantosa e acachapante.

Também não demora muito para que se dê a percepção de que seu autor não é apenas versado num ramo linguístico x ou y, um especialista, mas que detém aquela condição meio que do magnífico, que é a capacidade de transitar entre ciências sem vacilar, algo bastante incomum quando comparado às fragmentárias ciências humanas do séc. XX, nas quais as teorias tornaram-se disciplinas mais ou menos auto suficientes e, talvez por isso, pareçam aos leigos, como eu, sem muito apoio no tempo e nem no espaço.

O leigo é como um aluno, um desiluminado. E não são todos os autores (na verdade, uma minoria) que mantêm a dignidade de estabelecer contato com a sua condição precária. A quinta-essência desse distanciamento parece se dar justamente na filosofia da linguagem e suas hipóteses teóricas contemporâneas, as quais a linguagem poética, sustentada na metaforização e suas figuras, esclarece às vezes com mais sutileza do que em teses que chegam ao extremo hermético da algebrização. Os leigos, exaustos e impotentes, não tomam parte nessa especialização, até porque o caminho oposto, o da historicização, é muito mais encantador, como costumam ser os nomes em relação aos números, pelo menos no meu gosto..

Apesar de ser um livro de filologia antiga e centrado no estudo comparativo das línguas indo-europeias, é um trabalho de encantamento no qual o autor se dirige à mitologia mais ancestral com uma facilidade desconcertante. Então, pode-se pensar que se trata também de um livro de mitologia e religião comparadas. Mas não foi dessa forma que eu o li, ou melhor, estou lendo ainda. Eu estou lendo como literatura, como se as referências que ele realiza sobre o mundo da antiguidade clássica fossem personagens.

É dessa forma que eu sempre li os livros de história antiga e mitologia, desde J. Frazer até M. Eliade e Jung. É uma leitura parcial, sem dúvida, mas que me desobriga da tarefa de me deter no incompreensível do detalhismo e de aproveitar a escrita como uma tarefa “homérica”, de quem se serve da eloquência alheia para desnutrir os limites da própria ignorância.