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Beatriz Bracher e a regência da Guerra do Paraguai

Revista Parêntese, ed. 268

Cartas de antepassados, um livro perdido, relíquias, diários e outros recursos mirabolantes são artifícios mais que conhecidos por autores e leitores de ficção histórica. Recursos alegóricos via de regra utilizados pelos escritores como forma de estilizar a realidade e remover sua impenetrabilidade, facilitando o acesso dos leitores ao tempo histórico em suas tentativas de renovar sentidos e significação de momentos nebulosos do passado. No entanto, as fórmulas nem sempre funcionam, e permanece o desafio à imaginação literária dos escritores para que fujam ao clichê e suas alegorias escapem aos estereótipos. Embora situada num mundo entre o inesgotável e o repetitivo, o acesso ao tempo histórico pela ficção histórica é mais complexo que uma operação de verossimilhança. Quando satisfatório, escritores obtém o assombro de revelar enredos embaçados pela névoa histórica e encoberto pelos nossos olhos vidrados no presente contínuo.

Um livro que entre direto no assunto, como acaba de fazer Beatriz Bracher com a publicação de Guerra I, o primeiro volume da sua trilogia a respeito da Guerra do Paraguai, é no mínimo incomum, se não for de todo inédito. Com um romance todo composto por recortes organizados cronologicamente a fim de “narrar” com autonomia e literalmente os momentos e registros da guerra no seu próprio tempo e por quem efetivamente os viveu, Guerra I é o volume que descreve a ofensiva paraguaia de 1864 e prossegue até 1866, trazendo documentos, correspondência e relatos de inúmeras figuras históricas que participaram do confronto. Na sequência, os demais volumes devem chegar a momentos posteriores e definitivos do conflito.

A rigor, não há em Guerra I um narrador destacáveI, e é por esta razão que o “narrar” do parágrafo anterior precisa ser grafado estre aspas. Todo o livro é uma grande colcha de retalhos que se organiza temporalmente a partir de recortes documentais e que de imediato coloca o leitor a bordo de uma viagem inesperada e até certo ponto exaustiva, porque na forma escolhida por Betariz, não existem paradas, alívio ou o refresco de uma narração distanciada. Recortes literais de documentos recuperados em arquivos, outros livros, jornais, diários e tantas fontes quantas a autora encontrou em sua pesquisa para reorganizar uma memória coletiva, dada pelas impressões não de um sossegado narrador externo, mas dos indivíduos efetivamente envolvidos no confronto que acelerou a derrocada do Império no Brasil e a proclamação da República. Trata-se de uma memória linear e assimétrica, vez que as vozes em discurso muitas vezes são dissonantes e exigem da autora uma espécie de regência, de direção de cena. Narrar apenas, neste caso, mostra-se insuficiente, e a fidedignidade de cada linha do conteúdo é tanta e tão convincente que a impressão pode parecer mais a de um documento, um dossiê, do que um romance conforme o gênero é mais difundido e conhecido.

De certa maneira, Guerra I confronta a noção do romance histórico e do próprio romance. Não se poderia dizer, no entanto, que se trata da primeira iniciativa realizada no Brasil que se vale das técnicas de recorte (os cut-ups de William Burroughs e Brion Gysin). Na década de 70, pelas mãos de Ignácio de Loyola Brandão, o Brasil conheceu as desventuras de certo protagonista chamado José, por meio de artifícios que impactaram sensivelmente a literatura nacional. A narratividade suportada em documentos, em ambos os livros causa certo desconforto intelectivo, afinal, podemos saber hoje o que estava em curso, mas não aquelas pessoas que se encontravam efetivamente comprometidas nas condições do seu próprio tempo. Todavia se o impacto de Zero deve-se ao enredo entrecortado e marcado pela violência do período do regime militar, em Guerra I esse impacto ocorre principalmente pela espontaneidade das vozes que destacam um momento e conflito que de certa forma afirmou para o Brasil uma posição de vantagem na América Latina, ainda que com um custo terrível em vidas e déficit público.

Já nas pequenas notas que antecedem o livro, nas quais Beatriz explica seus critérios e metodologia, pode-se antever que o livro a seguir tem uma proposta ousada. Composto por fragmentos inteiramente não-ficcionais, logo a autora ressalva que seu método procurou “revelar a verdade que apenas a ficção é capaz de revelar”. Trata-se de uma salvaguarda que não lhe compete definir, pois esta revelação apenas pode se completar (ou não) aos olhos dos leitores. De todo modo, sabe-se já que sua empreitada não é mera montagem, busca revelar um sentido e uma verdade que escapam aos contribuidores do romance. Seu romance, afinal, ou anti-romance, trabalha mais com a ignorância do que com o esclarecimento. É o destino do humano, que desconhece o que lhe compele às matanças e demência coletiva, traçando num território ora sem males (o Paraguai) o mero horror e o nonsense, mas legando um romance que a autora se propõe mais a desvelar do que construir.

É pelas palavras e ideias de criaturas socialmente tão díspares quanto o Conde d’Eu, o ex-comandante farrapo Davi Canabarro, os jovens Visconde de Taunay e André Rebouças, e tantos outros, que somos conduzidos aos combates e acampamentos dos aliados. Ali encontramos pessoas sem muita noção do que estavam enfrentando e combatendo, mas que sabiam identificar o isolamento em que se encontravam numa guerra até hoje controversa, onde loucura e morte espreitavam como feras nos aguaceiros que fazem margem ao Chaco paraguaio.

De um livro como Guerra I não se consegue tomar aspas, citar trechos em que se evidencie o horror que a guerra instala. O horror está em cada página, em todas elas. Mortes fúteis, estupidez, o alheamento político coordenando a escalada da violência, doença, fome, mais mortes, chuva sem fim. Se há algo de simbólico no romance é essa presença da natureza completamente alheia à piedade humana. O calor é sempre mais insuportável do que pode ser, a chuva sempre excede ao tolerável. A condição humana pesa em dobro ou triplo. O fardo de viver é conradiano, mas não há o narrador de Conrad refletindo a desumanização que cada um flagra em si mesmo e ao seu redor.

Ali, são as pessoas se encontrando ao destino de ninguém, pois na guerra não há destino, há desespero pela sobrevivência, o homem reduzido ao estado mais elementar. O livro de Beatriz nos entrega isto, estas vivências. Não é uma versão de algo encontrado numa anotação romântica, mas os leitores somos simplesmente jogados ao campo de guerra sem muitas chances de compreendermos de imediato o que aquelas pessoas estão fazendo ali, o porquê daquele conflito ou como iremos sobreviver sabendo que o horror está acontecendo ao nosso lado e, se não nos cuidarmos o bastante, chega a parecer que acontecerá conosco mesmos.